sábado, 20 de outubro de 2018

Por que "O Fantástico Jaspion" foi e continua a ser um grande seriado




Como quase toda criança nascida em meados dos anos 80, assumi Jaspion como um de meus heróis favoritos naquele período, quando sua série – então exibida sob o título de O fantástico Jaspion na saudosa Rede Manchete – desfrutava de enorme popularidade. Na verdade, até onde posso me lembrar, Jaspion foi meu primeiro herói favorito. Recentemente, motivado por um sentimento de nostalgia, resolvi rever os episódios daquele que se tornou o arquétipo do herói japonês para a geração de brasileiros que viveram os anos 80 e início dos 90. E fiquei surpreso com a qualidade do seriado. Não, não estou me referindo aos efeitos especiais, bastante ultrapassados (aliás, esse é o destino de todo efeito especial). Estou me referindo àquelas características que são as únicas capazes de predispor uma obra à eternidade: a belíssima trilha sonora, o padrão estético elegante, o carisma dos atores e, acima de tudo, a qualidade das histórias.

E é exatamente este último aspecto que mais me surpreendeu em Jaspion, durante minha primeira revisão da série depois de tantos anos. Arrisco dizer que as histórias de Jaspion são capazes de agradar universalmente. É por isso que as mesmas me encantaram tanto em meus primeiros anos de vida, e me encantam novamente agora, quase 30 anos depois. E qual o motivo do encanto? Acredito que a resposta seja simples: Jaspion é literalmente emocionante

Não raramente, suas histórias versam sobre os aspectos mais trágicos da vida humana. Enquanto se assiste ao desenrolar da história, é fácil compadecer-se do sofrimento dos personagens, o que gera no espectador o desejo de presenciar a resolução do drama apresentado. Assim, por exemplo, no episódio 34 (“a fortaleza indestrutível”), temos a história de um garoto que sofre com a ausência de seu pai, o qual na verdade ama demais seu filho, porém é forçado a distanciar-se dele em razão de sua profissão. No episódio 23 (“o monstro do século”), é-nos contada a triste história do monstro Sion, uma criatura de coração puro, mas que ao final é enfurecido pela magia do vilão Satan Goss, ficando totalmente descontrolado. Nestas circunstâncias, o herói Jaspion não tem escolha senão destruir o pobre Sion. Esta é, seguramente, uma das histórias mais tristes com as quais já tive contato em minha vida. Jaspion não expressa apenas o heroísmo triunfante, mas também o heroísmo trágico (1).

Aliás, este mesmo episódio revela uma outra constante em Jaspion: a exigência de respeito e compaixão pelas criaturas de alma inocente e, sobretudo, a reverência por valores como a  amizade e a pureza das crianças. Emblemático neste sentido é o terceiro episódio (“O sonho do menino galáctico”), que narra a história de amizade entre um garotinho e o bondoso monstro Namaguederaz, que adoece após ser atingido criminosamente por uma flecha envenenada. Para salvá-lo, Jaspion impõe-se o objetivo de encontrar a “fruta da vida”, que contém o único antídoto capaz de salvar a vida de Namaguederaz.

Com base nestas pequenas descrições, já é possível perceber que uma das grandes características das histórias de Jaspion consiste no fato de que as mesmas induzem-nos a um profundo comprometimento emocional com o drama apresentado, na medida em que exibem uma espécie de “doçura” muito similar a de obras como o Pequeno Príncipe.

Em muitos aspectos, Jaspion é apenas uma produção “b” marcada pelo desejo provinciano de emular as grandes produções hollywoodianas de ficção científica da época (impossível não perceber a influência de Star Wars em Jaspion). Mas a mencionada “doçura” de suas histórias, consistente naquela apaixonada reverência ao amor e na emocionada exaltação da pureza da alma inocente, faz de Jaspion uma obra independente e até superior, em muitos níveis, relativamente às produções norte-americanas de ficção científica e heróis. Pessoalmente, jamais me emocionei assistindo a qualquer filme da série Star Wars. Por outro lado, revendo os episódios de Jaspion, tive de me esforçar em diversos momentos para não chorar.

Portanto, Jaspion não é entretenimento vazio, mas verdadeiro exercício de imaginação moral, na medida em que fortalece no espectador seu senso de compaixão, conditio sine qua non da prática do verdadeiro amor. Trata-se de uma obra verdadeiramente artística, atemporal, tão agradável quanto educativa (2).


                                                                             NOTAS


1 Todas as produções cinematográficas de heróis da atualidade falham em suas patéticas tentativas de reproduzir o heroísmo trágico. Por exemplo: quando Thanos destrói metade da existência em “Guerra Infinita”, isso dificilmente gera qualquer compadecimento no espectador. Mas quando o monstro Sion morre (inesperadamente) no final do episódio citado de Jaspion, é difícil segurar as lágrimas. Um real sentimento de perda e desamparo simplesmente invade o ambiente, e o espectador não tem saída senão comover-se profundamente.
2 Em função de minha redescoberta de Jaspion, resolvi assistir a uma produção Tokusatsu recente, Space Squad, centrada no herói Gavan (de quem, aliás, Jaspion foi apenas um continuador). Sinto dizer isso aos fãs de Tokusatsu, mas sem os elementos éticos e emocionais ricamente explorados em Jaspion, o gênero Tokusatsu não passa de uma tentativa um tanto desajeitada – e até triste – de copiar o cinema americano. Assistindo a Space Squad, eu tinha a sensação de estar vendo algum filme amador protagonizado por estas pessoas que se fantasiam em convenções de super-heróis. Esta incômoda impressão fica ainda mais evidente quando se assiste Kyuranger vs Space Squad, produzido neste ano.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Superman #17: o Homem-de-aço não mata?




O Superman publicado pela Panini neste mês traz um encontro entre o kriptoniano e o Exterminador. Mas o que poderia ser uma boa história foi arruinado pelo roteiro de James Bonny  (e pelos traços quase “anime” de Tyler Kirkham, que fazem o Superman parecer extremamente tolo e imaturo).

O maior de todos os heróis foi aqui vítima daquele inexplicável fetiche pela regra do “não matar a qualquer custo”. Já discuti sobre isso anos atrás, quando Mark Waid teve chiliques ao assistir Man of Steel de Zack Snyder (1). Hoje eu faria uma concessão a Waid: talvez o lendário escritor estivesse certo ao dizer que o Superman não deveria ter sido colocado numa situação como aquela apresentada na conclusão do filme de Snyder. Hoje me sinto cada vez mais tocado pela inocência da Era de Prata. Heróis como o Superman devem mesmo existir para representar o que há de melhor em nós, e talvez isso signifique que os mesmos não devam ser confrontados com certos intrincados problemas da vida real, para os quais mesmo a melhor solução não deixa de ser um tanto grosseira. Mas, caso o Superman seja forçado pelas escolhas do roteirista a enfrentar um problema moral como aquele da conclusão de man of steel, se o Superman precisar mesmo escolher entre a vida do agressor ou da vítima, neste caso minha resposta permanece a mesma: nestas circunstâncias, o agressor deve ser morto, e a vítima, preservada.

Mas não é assim que o escritor James Bonny pensa. Numa tentativa desajeitada de responder ao Man of Steel de Zack Snyder, Bonny coloca novamente Superman diante daquele mesmo problema. Mas desta vez, o agressor é o Exterminador, e a vítima, Lois Lane.

Para resumir: basicamente Slade Wilson aponta uma pistola para a cabeça de Lois, e impõe este (falso) dilema ao Superman: ou este o mata com a visão de calor, ou ele mata Lois.

O Superman resiste, enquanto reflete que “tirar uma vida é matar uma parte de si... matar corrompe, e leva à destruição de mundos”. No final das contas, o Exterminador deixa Lois ir. Tudo era um jogo (arquitetado por Amanda Waller) para testar o caráter do Superman. 

“Ó tempos, ó costumes!” diria Cícero... O Superman estava mesmo pronto para deixar sua nobre esposa Lois morrer, permitir que seu próprio filho Jon ficasse sem a mãe, apenas para preservar a vida de um verme como Slade Wilson (que, diga-se de passagem, provocou toda a situação por livre e espontânea vontade) e para preservar a si mesmo, pois ele, Superman, não poderia correr o risco de corromper-se. Pois eu digo que um Superman deveria ser capaz de olhar para o abismo, sem se impressionar quando este olhasse de volta (2).

Na verdade, o raciocínio de Bonny é totalmente absurdo, incapaz de resistir a qualquer análise mais séria. Vejamos. Por que a vida há de ser preservada a qualquer custo? Certamente, porque o valor da vida é absoluto, incondicional. Pois bem. Mas então justamente por isso é que Slade Wilson (ou qualquer outro psicopata do gênero) haveria de ser sacrificado naquelas circunstâncias, uma vez que ele põe em risco a existência deste valor absoluto (que é a vida). Negar aquele que nega a vida é afirmar a vida, pois a negação de uma negação equivale à uma afirmação.    E se o valor em questão é absoluto, então os atos de preservação do mesmo também podem ser irrestritos. 

Além disso, estritamente falando, o Superman não teria causado a morte de Slade Wilson caso fritasse o cérebro deste último naquelas circunstâncias. Pois assim como não é razoável esperar de um ser racional que ele queira a causa sem ao mesmo tempo querer o efeito (em função da necessária ligação entre ambos), também não é razoável esperar de um ser racional que ele coloque em risco a vida de alguém sem esperar que outras pessoas (incluindo aí a própria vítima da agressão) se utilizem de todos os meios para impedi-lo de cometer crime tão terrível, uma vez que aqui também se verifica uma ligação necessária entre as escolhas do agressor e as reações dos envolvidos que desejam impedi-lo. Portanto, aquele que põe vidas em risco sabe que está pondo em risco  a sua própria. Nestas circunstâncias - isto é, enquanto reação à iminente subtração da vida -, todo ato de execução se torna legítima defesa, e, portanto, é mera extensão da escolha do próprio criminoso. Nesta situação, o agressor executado executou a si mesmo, uma vez que não deixou escolha a ninguém. Somente ele tinha escolha.

Esta dissociação entre causa e efeito - como se fosse possível querer a causa sem ao mesmo tempo querer seu efeito - em vista de evadir-se da própria responsabilidade moral, faz-me lembrar daquela piada sobre o réu acusado de homicídio, o qual, quando questionado pelo tribunal se ele de fato havia matado a vítima, respondeu serenamente: "é claro que não. Eu apenas o empurrei do vigésimo andar de um prédio. Foi a queda que o matou". Se o juiz da causa fosse o James Bonny, provavelmente este réu teria sido absolvido. Pois tanto o hilário argumento de defesa do réu quanto a condenação aos atos necessários à preservação da vida da vítima diante do risco iminente imposto pelo agressor, conforme mostrado na história em quadrinhos aqui discutida, possuem o mesmo fundamento: a mencionada dissociação entre causa e efeito. 

Nossas intuições morais podem comprovar estas asserções um tanto abstratas. Pois convido o leitor a usar sua criatividade e imaginar um desfecho diferente para a história de Bonny: o Superman se omite (pois não deseja corromper-se), Slade Wilson puxa o gatilho e estoura os miolos de Lois Lane. E depois este super-banana teria que explicar ao seu pobre filho Jon que permitiu que sua mãe Lois morresse, pois "matar é errado". A isso o garoto poderia replicar aos prantos: “Mas e permitir que alguém inocente morra... não é?”.

Desagradável, não? Para evitar este inconveniente (que certamente revoltaria o leitor e faria do Superman um personagem tão imbecil quanto este código moral fetichista) Bonny teve de recorrer a alguns tipos de “deus ex machina” pra lá de ruins: explosões que interrompem o clímax, a história de que era tudo um “teste”, etc. Assim, para o leitor sem imaginação e de julgamento raso, tudo parece ter acabado bem: ninguém morreu e ao mesmo tempo o Superman permaneceu fiel ao código moral de nunca matar, não percebendo que, a prevalecer essa regra, todo ato de legítima defesa teria de ser condenado como algo que “leva à destruição de mundos” (conforme as palavras do próprio Superman escrito por James Bonny). Sim, proteger vidas (incluindo aí a própria) diante de ataques injustificados de psicopatas sádicos virou crime de genocídio. Ou, mais precisamente... mundocídio

Espero que ninguém julgue mal este texto. Não estou dizendo que o Superman deveria bancar o Justiceiro e sair por aí eliminando a escória do mundo. Minha análise se limita àquela situação específica, onde há um risco atual (e não apenas potencial) à vida de um inocente, de modo que não seria razoável esperar outro desfecho senão a morte do mesmo. Digo que, neste caso, seria moralmente absurda a omissão por parte daqueles que dispõem de meios suficientes de evitar o assassinato da vítima. 

Agora devemos nos perguntar: se o Superman de Bonny tivesse enfrentado o monstro Apocalipse em seu primeiro encontro, o que teria acontecido? Resposta: ao perceber que só poderia vencer o monstro matando-o, teria desistido. Aí apanharia até morrer. Em seguida, o Apocalipse teria matado o resto da Liga da Justiça, depois destruído Metrópolis, depois o mundo. Isto é: para não flertar com o terrível delito de mundocídio, o Superman teria permitido que o Apocalipse destruísse o mundo. Bem-vindo à fantástica (e tão covarde quanto incoerente) Ética dos homens do século XXI. 


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Notas

(1) http://herosinvictus.blogspot.com/2013/07/man-of-steel-mark-waid-e-dilemas-morais.html

(2) De acordo com Nietzsche, "quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para você". Pra mim, o heroísmo consiste basicamente nisso: olhar para o abismo sem se deixar corromper por sua escuridão. Talvez não exista teste maior e mais louvável da virtude humana. O Superman de James Bonny tremeu diante deste teste, e por isso preferiu fugir do mesmo.

(3) Sim, isso mesmo. Para ficar de consciência limpa, o Superman estava disposto a cometer crime de omissão de socorro. Que tipo de consciência fajuta é essa?

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Jean-Luc Picard e sua falsa noção de justiça




Após assistir ao sétimo episódio da 1º temporada de Star Trek - A nova geração (intitulado “Justice”), ganhei mais motivos para ficar ao lado de Kirk no clássico debate sobre quem foi o melhor capitão da Enterprise - se o icônico capitão interpretado por William Shatner ou o (talvez) igualmente icônico capitão Jean-Luc Picard (1). E o motivo é que, a julgar pelo citado episódio, o personagem interpretado por Patrick Stewart parece sustentar algumas falsas noções sobre o significado de justiça. 

Mas antes de esclarecer esta assertiva, convém descrever os pontos fundamentais do episódio em questão, pois é no contexto deste que Picard comete uma grave falha.

Em “justice”, o capitão Picard e sua tripulação encontram um planeta paradisíaco, com habitantes extremamente pacíficos, saudáveis e belos, dedicados apenas ao lazer e ao hedonismo. Mas todo paraíso tem seu lado sórdido - e esta parece ser uma mensagem constante em Star Trek. Pois esta comunidade aparentemente maravilhosa é sustentada pela aplicação de uma lei extremamente severa: a pena de morte para qualquer delito, mesmo o mais insignificante. Porém, ninguém da Enterprise foi avisado sobre isso. Então quando o jovem Wesley Crusher cai acidentalmente sobre as flores de um jardim (o que constitui uma infração neste mundo), ele é imediatamente sentenciado à morte. Para completar, este "paraíso" ainda é vigiado e protegido por uma entidade alienígena extremamente poderosa, chamada de “deus” por seus habitantes (2).

Diante desta circunstância, o capitão Picard se vê em uma difícil situação: se salvar Wesley, ele colocará a vida de toda a tripulação em risco, pois isso enfureceria o “deus” do planeta paradisíaco; mas se ele não salvar o garoto, então o mesmo será vítima de uma terrível injustiça. 

O androide Data chega a sugerir a opção utilitarista a Picard: “o senhor escolheria salvar uma vida ao invés de outras mil?”. A isto, Picard responde brilhantemente: “eu me recuso a deixar que a aritmética decida questões assim” (3).

No fim das contas, Picard resolve salvar Wesley, e com isso desafiar as leis do planeta paradisíaco e enfurecer seu “deus”. Quando este começa a demonstrar seus primeiros sinais de fúria, Picard resolve dialogar, numa tentativa desesperada de apelar ao bom senso da entidade:

- A questão da justiça tem me preocupado muito ultimamente. E digo a qualquer criatura que possa estar me ouvindo, que não pode haver justiça enquanto as leis forem absolutas. Até a própria vida é uma prática de exceções.

Poucos poderiam dizer pior. O que Picard não parece entender (claro, claro... não exatamente Picard, mas o escritor do episódio) é que aquilo que escandaliza nossos sentimentos morais não é o fato de que o garoto Wesley Crusher não é perdoado pelos habitantes daquele planeta, para assim constituir uma exceção à regra, mas o que escandaliza é a regra em si. Condenar alguém à morte porque pisou acidentalmente em um jardim é simplesmente absurdo, e parece contradizer os sentimentos morais de qualquer indivíduo minimamente inteligente. Garanto que, se o condenado fosse um habitante do planeta paradisíaco em vez de Crusher, o telespectador se sentiria igualmente inconformado.

Mas para Picard, a justiça consiste na obediência a regras escritas, desde que as mesmas permitam certas exceções. O importante é que a justiça das leis escritas não seja absoluta! Pois eu digo que essa é a justiça dos tiranos. Afinal, quem decidirá sobre as exceções às regras? Aqueles que detêm o poder, é claro. E quem serão os privilegiados, aqueles que constituirão estas exceções? Certamente aqueles que detêm o poder e seus amigos mais próximos. Ou a justiça é a mesma para todos, ou não há justiça (4). Qual o mérito de salvar Wesley Crusher, enquanto outros seres igualmente sensíveis e inteligentes continuam a poder morrer sob estas mesmas circunstâncias tão esdrúxulas?

Não estou dizendo com isso que a igualdade diante da lei seja o único elemento ético que define a justiça. A igualdade formal é aqui um fator necessário, mas não suficiente. Pois além disso, devemos acrescentar que a ideia de Justiça comporta proporcionalidade, isto é, deve haver um certo equilíbrio entre crime e castigo, e é justamente a ausência desta proporcionalidade que torna tão injusta a pena aplicada a Wesley Crusher.

Portanto, acredito que Picard falhou miseravelmente em seu discurso de defesa. Ele não deveria ter implorado para que um membro de sua tripulação constituísse uma exceção à regra (uma regra que matou e continuará a matar muitos outros), o que é vergonhoso. Ele deveria ter exposto a ideia universal de Justiça, que requer proporção ou equilíbrio entre crime e punição, e que há de ser a base de todas as leis positivas, pois do contrário estas últimas degeneram em mera injustiça institucionalizada. Mas a grandiosidade de Picard como capitão parece estar na proporção inversa de suas capacidades para a advocacia. 

De qualquer forma, no final Wesley é absolvido pelo poderoso alienígena guardião daquele paraíso de inúteis. Mas considerando o péssimo nível do discurso de defesa de Picard, acredito que a absolvição se deu por benevolência, e não por convencimento racional. Afinal, embora não fosse Deus, a tal entidade alienígena super poderosa certamente queria se parecer com Ele...







NOTAS

(1) Embora eu tenha carinho e admiração por Picard, devo admitir que, em minha opinião, poucos personagens fictícios modernos conseguem representar, como o capitão James T. Kirk interpretado por William Shatner, aquele que é o mais excelso ideal de formação humana, e que se destina a tornar o indivíduo "constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito" (JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. 2010, p. 13), ou simplesmente a prepará-lo "para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações" (JAEGER, op.cit., p. 30. O trecho é tirado da Ilíada, canto IX, verso 443). Em meu modo de avaliar, o James T. Kirk de William Shatner é um destes poucos epítomes do perfeito equilíbrio entre a inteligência e a ação, da perfeita união entre virtudes físicas e espirituais (que se subdividem em morais e intelectuais). Comparado a esta versão do capitão Kirk, o capitão Picard sempre me pareceu mais unilateral, rivalizando com Kirk apenas no quesito intelectual. Como homem de ação, Picard é inteiramente subjugado por Kirk. 


(2) E esta parece ser uma outra constante em Star Trek: a tendência em confundir Deus com máquinas avançadas ou alienígenas poderosos. Esta insistência em sempre explicar o metafísico pelo simples físico é um dos traços que mais me desagradam em Star Trek, e neste ponto (e talvez apenas neste), Star Wars mostra-se superior, ao menos em minha opinião.


(3) Aliás, aqui Picard ganhou alguns pontos em relação ao meu favorito Kirk, que em “A ira de Khan” pareceu pactuar com aquele utilitarismo grosseiro de Spock, quando este disse (sempre com seu pedante ar de sabedoria) que “o interesse de muitos se sobrepõe ao interesse de poucos”. Ora, para perceber que semelhante regra, considerada em si, não tem qualquer valor moral, basta nos perguntarmos: e se este interesse de muitos for um interesse sórdido, cruel, desumano? Mesmo nestes termos, ele deverá ter prevalência sobre o interesse justo, ainda que de poucos? Óbvio que não. Logo, o critério de decisão moral não pode ser o número de interessados, mas a natureza do interesse. E para sabermos que tipo de natureza possui o interesse (se é bom ou mau), então devemos escolher um princípio moral que funcionará como critério de escolha, princípio este que não pode ser definido em termos aritméticos, sob pena de cairmos em um círculo vicioso. Afinal, acabamos de provar que o número de interessados não oferece qualquer critério seguro de julgamento moral. A democracia pode ter seu valor enquanto processo de escolhas políticas, mas não enquanto mecanismo de definição de princípios morais (aliás, neste assunto toda forma de governo é insuficiente). O sábio capitão Kirk, que sempre soube equilibrar sua racionalidade e seu coração (diferentemente do seu  arrogante amigo vulcano metido a guru) deveria saber disso. 
Esta falha de Kirk parece ter sido corrigida no filme "Em busca de Spock". Já ao final, quando Spock é resgatado, este questiona a Kirk o motivo de ele ter se arriscado tanto para salvá-lo. Kirk responde, invertendo a máxima proferida por Spock na conclusão de "A ira de Khan": "porque as necessidades de um se sobrepõem às necessidades de muitos". Com isso demonstra-se que o critério não pode ser aritmético, quantitativo, conforme pensava Spock. O critério há de ser qualitativo, tendo em conta a própria natureza dos interesses ou necessidades em questão, e não o número de necessitados ou interessados. Portanto, a depender da natureza do interesse/necessidade, tanto a maioria quanto um único indivíduo podem adquirir a prevalência moral. 
Por isso, seria tão correto dizer que "as necessidades de muitos se sobrepõem às necessidades de poucos, ou de um só", quanto dizer "as necessidades de um se sobrepõem às necessidades de muitos". Tais sentenças não são verdadeiras máximas, mas apenas regras particulares igualmente válidas a depender das circunstâncias. Elas pressupõem a definição do valor das necessidades às quais se referem. Esta definição, por sua vez, há de ser feita a partir de algum verdadeiro princípio moral, como por exemplo a fórmula do imperativo categórico de Kant.

(4) Kirk sabia disso. Vide seu discurso na conclusão do episódio “The Omega glory”.

sábado, 7 de julho de 2018

Morre Steve Ditko, criador do Mr. A e do Homem-Aranha



Ontem foi noticiada a morte de Steve Ditko, amplamente conhecido por criar, junto a Stan Lee, o Homem-Aranha. O desenhista/escritor contava com 90 anos, e se caracterizava por possuir uma postura bastante reservada, além de ser quadrinista excepcional.

Mas Ditko possuía uma outra qualidade e que estimo muito, tornando-o um dos meus artistas favoritos: seu comprometimento com o absolutismo moral, isto é, com a ideia de que entre Bem e Mal não há elementos intermediários, e que aqueles que buscam a mistura ou relativização daqueles dois elementos contribuem apenas para a destruição do primeiro e enaltecimento do segundo. Assim como uma meia verdade não passa de mentira, o relativismo moral não passa de ofuscamento do Bem e consequente afirmação do Mal.

Tais ideias encontram acolhimento em qualquer mente estruturada dentro de padrões minimamente lógicos. Mas também ganharam forte expressão por meio da filosofia objetivista da filósofa Ayn Rand, cujas ideias compunham o centro em torno do qual gravitavam as aventuras daquela que considero a melhor criação de Steve Ditko: o Mr. A.

Os quadrinhos do Mr. A foram extremamente inovadores, mesmo para qualquer padrão atual, e por isso permanecem relativamente desconhecidos até hoje. Aqui, pela primeira vez (e até onde sei, pela última), vemos o herói de quadrinhos lutar pelo bem não de maneira intuitiva, mas de forma plenamente consciente a partir de princípios morais rigorosamente expostos em seus diálogos. Ao Mr. A não interessava apenas lutar contra o mal: era necessário explicar detalhadamente por que ele o fazia.

Portanto, os quadrinhos de Mr. A não eram destinados apenas a mero entretenimento. Eram verdadeiras aulas filosóficas sobre Ética. Por isso, os diálogos apresentavam sempre uma rigorosa lógica interna, pelos quais Ditko esperava demonstrar, mediante detalhadas explicações e monólogos, a necessidade de distinguir entre o Bem e o Mal, e, consequentemente, de conservar o primeiro e de se opor ao último. Creio que este seja o motivo mais evidente pelo qual o Mr. A nunca se popularizou. Ele pressupõe leitores com cérebro.


Neste texto estão expostos algumas das principais características do Mr. A de Ditko. 1) A demonstração de que princípios morais estão subordinados a princípios lógicos. De certa forma, todas as verdades pressupõem o princípio lógico da identidade. Pois assim como A é igual a A e, portanto, diferente de B, então A não pode ser A e B ao mesmo tempo. Do mesmo modo, o Bem é diferente do Mal, e por isso não pode haver algo que seja bom e mau ao mesmo tempo. Com isso, repudia-se o relativismo moral. 2) É dito que a prática do mal só conduz o indivíduo à autodestruição. Isto é uma referência direta a uma das premissas da filosofia moral de Ayn Rand, segundo a qual a Ética não é um capricho, mas uma necessidade vital. Consequentemente, a ação imoral é sempre uma agressão imediata ou mediata à vida, inclusive daquele que crê se beneficiar da própria imoralidade. A longo prazo, o criminoso sempre coloca sua própria vida em risco.


Mas ainda há um segundo motivo. Já vi em alguns sites estrangeiros certos sabichões cheios de amor no coração demonstrarem horror diante do rigorismo do Mr. A, taxando-o inclusive de "psicopata". Não vejo as coisas desta forma. De fato, Mr. A exibia pouca piedade para com criminosos. Mas sua violência sempre se mantinha dentro dos limites da justiça retributiva. Ele somente devolvia a morte àqueles que já haviam oferecido-a gratuitamente às suas vítimas. Para Mr. A, qualquer outra postura fugiria à relação de proporcionalidade(1) intrínseca à justiça retributiva e, portanto, seria injusta.

Por outro lado, se alguém ainda tem problemas com a justiça retributiva e seu senso interno de proporcionalidade, a este alguém devemos lembrar que a justiça é uma virtude e, como tal, pressupõe certa força e firmeza em sua aplicação. De fato, a palavra “virtude” é composta por “vir” em seu radical, que em latim significa “varão”, o que revela seu originário sentido de força e rigor. Ser justo não é tarefa fácil, e por isso a virtude da justiça dificilmente encontra acolhimento em corações melindrosos. Em todo caso, arrisco dizer que mesmo os portadores de semelhantes corações jamais aceitariam trocar seu ouro pelo cobre de alguém. Mesmo os melindrosos afirmam a justiça retributiva nas pequenas coisas. Falta-lhes apenas o rigor necessário para afirmá-la nas grandes coisas.

Poderíamos criticar Mr. A por ele ser alguém que faz justiça com as próprias mãos. Já tratei deste assunto neste mesmo blog meses atrás, quando escrevi sobre a rivalidade entre Justiceiro e Demolidor. E naquela oportunidade busquei demonstrar que este problema só pode ser decidido por meio da avaliação cuidadosa de circunstâncias empíricas. Em um mundo onde há Estado organizado, o justiça pelas próprias mãos é certamente condenável; mas em um mundo sem Estado (ou onde há um Estado apenas formalmente organizado, mas omisso na prática), então não haveria como condenar semelhante atitude.

Em todo caso, acredito que este dilema não seja o ponto central de Mr. A, cujas histórias são sobre Ética, e não sobre Política. O foco não é oferecer um modelo de sociedade organizada, mas um modelo individual, e ao mesmo tempo coerente e, portanto, universal, de julgamento moral.

Portanto, o ponto central é o combate ao relativismo moral, à tendência tão contemporânea de neutralizar as fronteiras entre o Bem e o Mal, o que serve apenas para desacreditar o primeiro e afirmar o segundo, conforme já dito. Acima de tudo, é uma crítica à nossa tendência pessoal de fugirmos de nosso dever de adotar aquelas posições e princípios admitidos pela lógica e pela razão, mas que muitas vezes parecem árduos diante das exigências idiossincráticas de nossas confusas e débeis emoções. 

Afinal, no mundo há o Bem e o Mal, e ambos se distinguem entre si. Além disso, é preciso escolher entre ambos. Este é um dado da realidade que não pode ser negado, e por isso tentar misturá-los como um meio de fugir daquela escolha equivale a fugir da realidade. 

Obrigado por nos apresentar estas lições, Steve Ditko. Não sei se você acreditava em Deus. Mas eu acredito, e por isso espero que você esteja com Ele neste momento.

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Notas



(1) Não levo em conta aqui as complicadas explicações aristotélicas, expostas em “Ética a Nicômaco”, sobre as diferenças entre igualdade e proporcionalidade. Tomo este último termo em sentido lato para me referir a toda relação de troca de valores na qual prevalece equilíbrio entre aquilo que é dado, e aquilo que é recebido. Além disso, pessoalmente considero que toda proporcionalidade guarda sempre uma igualdade, embora não literal. Assim, se troco um livro, por uma quantia de R$ 80,00, esta troca não se dá dentro de uma igualdade literal (que assim seria se fosse uma troca de um livro por outro livro, de preferência idêntico), mas dentro de uma igualdade proporcional (supondo, é claro, que o valor do livro seja mais ou menos de R$ 80,00 segundo padrões estabelecidos pelo mercado). 

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Comentários sobre o texto "o mito do Superman", de Umberto Eco






Em sua coleção de ensaios intitulada Apocalípticos e Integrados (1964), o livre pensador italiano Umberto Eco escreve sobre a “cultura de massa” e uma de suas expressões literárias mais populares: as histórias em quadrinhos. Analisando de modo bastante geral as ideias de Eco, pode-se dizer que as histórias em quadrinhos estariam repletas de conformismo com o status quo, e por isso seus leitores – típicos consumidores formados pelos parâmetros impostos pela “indústria cultural” (impossível não notar aqui forte influência da “escola de Frankfurt”) – fariam parte do grupo de “integrados”, pessoas que veem com bons olhos os produtos da cultura de massa, mais receptivos a seus símbolos e resultados, e por isso pouco inclinados ao dissenso. Do outro lado, temos os “apocalípticos”, críticos severos desta mesma cultura de massa, a qual analisam sob uma perspectiva profundamente escatológica, e por isso consideram-na a morte da verdadeira cultura. O Superman insere-se como um personagem de forte expressão arquetípica no contexto da cultura de massa. Em grande medida, ele é tomado por Eco como o grande herói da cultura de massa, e por isso torna-se digno das análises do famoso escritor italiano. Analisando o mito do Superman, Eco espera desvendar algumas das principais estruturas ideológicas que se colocam na base desta cultura de massa, estruturas estas que tanto podem ser o resultado de processos inconscientes quanto de objetivos inconfessos, mas muito bem planejados.

E quais seriam as teses principais de Eco sobre o mito do Superman?

Destacarei sua tese mais política sobre o Superman, e que já foi em parte expressa nas primeiras linhas deste texto. Logo no prefácio da obra, Eco escreve que o Superman, típico herói da cultura de massa, “usa das suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta passividade, renunciando a todo projeto que não tenha sido previamente homologado pelos cadastros do bom senso oficial, tornando-se o exemplo da proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução” (p. 10). Logo, Eco busca contrastar no Superman suas incríveis habilidades físicas e suas modestas (na verdade, inexistentes) ambições políticas. Com isso, Superman realiza um ideal de passividade política, que vem ao encontro dos interesses daqueles que não desejam perder seu poder. É por isso que mais adiante, já no capítulo quase exclusivamente dedicado ao Superman, Eco questiona se o Superman não é, na verdade, um instrumento pedagógico de “heterodireção”, isto é, um mecanismo simbólico que existe para impor sutilmente ao inocente leitor um conjunto de ideologias. Segundo Eco, o Superman é produzido para ser consumido por homens “heterodirigidos”, isto é, “homens a quem constantemente se sugere o que deve desejar e como obtê-lo” (p. 261). Em suma, o Superman é instrumento de manipulação, e seus leitores, são pessoas manipuláveis. Ao que parece, este processo de manipulação se dá em dois níveis. Vale lembrar que o ensaio fora escrito na década de 60. Portanto, o Superman analisado por Eco é aquele da chamada Era de Prata dos quadrinhos.

1. Seria o Superman um destruidor de consciências?

Em um nível, Eco apresenta a tese de que o Superman, em função da estrutura de suas narrativas, contribui para a destruição gradual do senso de responsabilidade pessoal de seu leitor. Ok, vou explicar. Eco, baseado na filosofia de gente como Husserl, Sartre e Heidegger, sustenta que nossa consciência interna de nossa própria responsabilidade pessoal depende da consciência que temos de nossa própria temporalidade. Citando Husserl, Eco escreve que “minha temporalidade é minha liberdade” (p. 255), e depois conclui que “perdendo a consciência” do tempo, esquece-se dos problemas que no tempo se baseiam, “isto é, a existência de uma liberdade, da liberdade de fazer projetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provém” (p. 261). Em suma, só nos consideramos responsáveis em função daquilo que realizamos e que devemos realizar, e estas realizações projetam-se no tempo (como algo que já fora feito mas, principalmente, como algo que há de ser realizado). Somente na medida em que me coloco na temporalidade, é que sinto a angústia do dever de ter de realizar, bem como a esperança de redimir meu próprio ato já realizado, no passado. E assim, nas palavras de Husserl, “o passado me determina, (...) mas o futuro, por sua vez, ‘liberta o passado’” (p. 255). Portanto, em função do futuro – do que ainda há de ser realizado – nenhum fato passado impõe uma determinação completa sobre meu ser. Portanto, liberdade e existência temporal são noções indissociáveis.

Mas como a criação de Siegel e Shuster se encaixa em toda esta confusão filosófica? Ou pior: como o Superman estaria a serviço da destruição de tudo isso? Resposta: segundo Eco, a estrutura narrativa das histórias do Superman não é linear, e por isso não obedece a qualquer padrão de “consumo” do personagem: o Superman não envelhece, não se casa, não tem filhos, não muda de emprego, etc. Enfim, não se realiza nele nenhum daqueles fatos biográficos que expressam a temporalidade de qualquer biografia verdadeiramente humana. É como se o Superman não estivesse no tempo. E consequentemente, “o Superman só se sustenta como mito se o leitor perder o controle das relações temporais e renunciar a raciocinar com base nelas, abandonando-se, assim, ao fluxo incontrolável das estórias que lhe são contadas e mantendo-se na ilusão de um contínuo presente” (p. 260). Isto é: na visão de Eco, é como se o Superman - o herói não só invulnerável a balas de revólver, mas também à ação do tempo – retirasse do leitor a consciência de sua própria temporalidade, numa espécie de efeito hipnótico, na medida em que o segundo permite-se absorver na dimensão atemporal na qual vive o primeiro.

Porém, eu discordo inteiramente de Eco. Acredito que o ilustre escritor esteja sendo “apocalíptico” demais em suas análises. Se atentarmos para sua tese, veremos que ela se sustenta sobre uma premissa básica: a ideia de que liberdade/senso de responsabilidade e temporalidade estão profundamente ligadas, e de tal modo, que a primeira só pode ser pensada pela segunda. Ora, isso não parece inteiramente correto. Antes, é perfeitamente possível postular justamente a tese contrária, isto é, que de nosso senso interno de responsabilidade pressupõe uma consciência ainda mais profunda de que, em última instância, não somos seres meramente temporais (embora nossa existência se expresse temporalmente). Explico.

Segundo o filósofo Arthur Schopenhauer, a liberdade se opõe à ideia de causalidade, pois esta última impõe uma relação necessária – isto é, uma relação impossível de ser alterada ou manipulada – entre causa e efeito: tão logo se apresente uma causa, o efeito se seguirá dela necessariamente. O efeito não decide, não escolhe. E tão pouco a causa, que é nada além de um efeito de uma causa anterior, e assim sucessivamente, ao infinito... Pois bem: uma sucessão de causa e efeitos só se dá no tempo. Na verdade, jamais perceberíamos o tempo, não fosse nossa percepção das mudanças, e mudanças só se realizam pela relação de causa e efeito (por exemplo: eu percebo a passagem do tempo ao notar o movimento do ponteiro do relógio, o qual se movimenta devido a um mecanismo coordenado segundo relações de causa e efeito). Logo, se eu percebesse a mim mesmo como um ser meramente temporal, então eu me colocaria em uma relação causal, a qual se dá segundo relações necessárias, as quais não admitem poder de escolha, mas apenas uma sucessão de fatos segundo leis inexoráveis. Logo, temporalidade não é liberdade, mas ausência dela. Mas de onde vem meu inegável senso de responsabilidade pessoal por minhas ações? Segundo Schopenhauer, ao lado de nossa dimensão temporal, somos possuidores de uma dimensão atemporal, que não podemos julgar segundo padrões temporais. Esta dimensão atemporal seria precisamente nosso caráter, expressão máxima de nossa vontade. Minhas ações podem ocorrer no tempo, mas o fundamento de minhas ações, meu caráter, não. Minhas ações decorrem daquilo que sou, e aquilo que sou, embora se expresse no tempo, no entanto não tira deste seu fundamento. Não há uma razão suficiente pela qual eu posso explicar aquilo que sou. A constituição volitiva de cada um (o caráter) é um ponto terminal de qualquer explicação, para além da qual o intelecto simplesmente não consegue avançar através de seus esquemas causais de explicação. É por isso que, não importa o quanto sociólogos, psicólogos, psiquiatras, geneticistas e antropólogos se esforcem, nenhum deles consegue explicar satisfatoriamente por que cada ser humano é tal como é. Podemos deduzir que um homem egoísta terá atitudes egoístas ao longo de sua vida; mas não conseguimos concluir satisfatoriamente por que tal homem é, afinal de contas, egoísta. Um sociólogo poderia dizer que o egoísmo do indivíduo em questão é devido, por exemplo, a uma sociedade de consumo. Mas bastaria pouco esforço para demonstrar a existência de muitos outros indivíduos que, submetidos à mesma sociedade de consumo, demonstram possuir um caráter inclinado ao altruísmo. Logo, as circunstâncias externas, longe de determinarem a essência de cada um, parecem apenas oportunizar a cada um que expresse sua própria essência, em si independente, de origem misteriosa, e por isso atemporal. Logo, a associação entre temporalidade e liberdade (a raiz da responsabilidade) não é nem um pouco necessária, mas não passa de uma opinião defendida por Sartre, Husserl, Heidegger, e Eco. Logo, a narrativa atemporal das aventuras do Superman pode ser inocentada da terrível acusação de estar a serviço de um plano maligno: o de destruir o senso de responsabilidade pessoal de seus leitores.

2. Superman, o sabotador de ambições político-revolucionárias 

Em um segundo nível, o Superman é apresentado como um símbolo de rejeição de qualquer projeto revolucionário em política. Já citei acima um trecho segundo o qual o Superman inspira  “um ideal de absoluta passividade (política)”,  e assim “tornando-se o exemplo da proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução”. Mais adiante, Eco enfatiza este aspecto de “passividade política”. Assim, analisando a expressão do “mal” combatido incansavelmente pelo Superman em suas aventuras, percebe-se que este mal normalmente apresenta-se apenas como “atentado à propriedade privada” (p. 276): o Superman se opõe, quase que exclusivamente, a ladrões, homens perversos pertencentes ao submundo do crime. Por outro lado, Eco cita exemplos de ações beneficentes organizadas pelo Superman, com o objetivo de ajudar órfãos e indigentes. E com isso conclui que “assim como o mal assume o aspecto único de ofensa à propriedade privada, o bem  configura-se apenas como caridade” (p. 277). Fácil perceber que Eco, sob um olhar extremamente crítico, vê o Superman como o defensor metafórico de toda sociedade organizada em sua economia segundo princípios do liberalismo clássico. E Eco contra-ataca esta postura do Superman: “o Superman é praticamente onipotente (...). sua capacidade operativa se estende em uma escala cósmica. Ora, um ser dotado de tais capacidades, teria diante de si um largo campo de ação. De um homem que pode produzir trabalho e riqueza em dimensões astronômicas ao fim de poucos segundos, poderíamos esperar as mais estonteantes revoluções da ordem política, econômica, tecnológica do mundo” (p. 275). Isto é: o Superman poderia ser o Super-Fidel Castro, mas infelizmente, continua apenas a ser o Superman.

Mas aqui ouso afirmar que, por trás da aparente inocência dos escritores da Era de Prata (devemos lembrar que este trabalho de Eco fora publicado em 1964), havia talvez uma certa sapiência política, atuante em um nível quase inconsciente, porque simplesmente desenvolvida, de forma instintiva, no contexto dos costumes de uma sociedade que construiu sua história em torno do pessimismo em relação ao homem público dotado de imensos poderes políticos, e otimismo em relação ao homem privado ligado à sua comunidade por laços construídos espontaneamente.

Anos mais tarde, seriam apresentadas a nós histórias em que o Superman é colocado em posição de resolver as questões suscitadas por Eco, e os resultados seriam insatisfatórios. Temos, por exemplo, a graphic novel “Paz na Terra”, de Paul Dini e Alex Ross, onde o Superman decide usar seus poderes para acabar com a fome. O resultado decepciona profundamente o Homem de Aço: este conclui que enquanto persistir o egoísmo e a indiferença no coração humano, qualquer esforço de acabar com a miséria será inútil. Isto é, o Superman conclui que o problema humano não é econômico, mas moral. Somente uma reforma interior poderia sanar a humanidade. E esta reforma interior não pode ser operada nem mesmo por um Super-homem, mas apenas por cada indivíduo humano, em seu confronto existencial consigo mesmo. Em outras histórias, um Superman “alternativo” (existente em alguma realidade “paralela”) é mostrado mais ao gosto de Eco. Em “Injustice: gods among us”, o Superman decide ser o ditador do mundo, para finalmente destruir, mediante ação (e violência) política, todos os males do mundo. Em "Superman: red son", o escritor Mark Millar mostra-nos o que possivelmente aconteceria ao Superman se sua nave, vinda de Krypton, tivesse pousado em uma fazenda coletiva da Ucrânia durante a vigência da União Soviética; em outras palavras, o que aconteceria se Superman fosse educado sob a doutrina comunista, em lugar de ser educado por um casal de fazendeiros do Kansas politicamente despretensiosos. O resultado é bastante interessante. Kal-El ainda conserva seu caráter puro e boas intenções; afinal, estas são qualidades inatas. O temperamento e o caráter são inatos, mas o intelecto é socialmente construído. Com sua inteligência preenchida pela ideologia comunista, Superman acredita que tem o dever de não somente proteger a vida de pessoas inocentes diante de perigos iminentes, mas, principalmente, seu dever é o de eliminar todas as carências materiais do mundo e, para isso, suas boas intenções gradualmente se tornam em premissas de decisões inescrupulosas e ditatoriais. O Superman comunista de Millar é um monstruoso paradoxo: tão moralmente puro quanto politicamente cruel. "Superman: red son" é a expressão fictícia das teses defendidas por pensadores como Hayek há quase 8 décadas atrás, e amplamente confirmadas pela experiência humana nos anos seguintes: o político, para consertar o mundo os problemas materiais do mundo, precisa se intrometer em todas as esferas da vida humana; a ao fazê-lo, elimina toda a liberdade, desencadeando uma miséria moral muito mais intensa do que a miséria material existente sob o status quo que ele então buscou destruir. 

No fim das contas, o apocalíptico e intelectualizado Eco estava sendo politicamente ingênuo ao sugerir que o Superman fosse tão politizado. Por outro lado, os modestos escritores do Superman e seus leitores “heterodirigidos”, estes pobres consumidores de produtos de cultura de massa e “integrados” à mesma, estavam afinal com a razão ao contentar-se com as atitudes heroicas e ao mesmo tempo tão modestas de um personagem dedicado à defesa “da propriedade privada” e à promoção de “eventos beneficentes”. E esta constatação pode parecer paradoxal, mas não surpreenderia um estadista brilhante como Edmund Burke, para quem as tradições são muitas vezes mais sábias do que as fantasias de um único indivíduo, e justamente porque as tradições resultam das experiências triunfantes de incontáveis indivíduos. E nesse aspecto o homem simples leva vantagem sobre o homem intelectualizado, e o “integrado” pode sobressair-se ao “apocalíptico”: é que enquanto este último é prepotente o bastante para confiar apenas no próprio julgamento, o primeiro não tem escolha senão assentir modestamente aos costumes reiterados pela comunidade em cujo interior ele vive, sem saber que, com isso, está na verdade adotando para si os padrões cuidadosamente elaborados por incontáveis gerações. 


Superman: um mito inserido na lógica do mercado

Um outro aspecto do mito do Superman também explorado por Eco é a sua singular característica de encerrar em si duas qualidades contraditórias: evidentemente, o Superman é um mito, e nesta qualidade, é um “arquétipo”, isto é, um conceito imutável que “deve imobilizar-se numa fixidez emblemática que o torne facilmente reconhecível” (p. 251); mas enquanto personagem publicado mensalmente, ele também possui uma dimensão “romanesca”, vale dizer: suas aventuras obedecem a uma continuidade infinita, em constante mudança, e nesta condição, tais aventuras sempre apresentam uma novidade ao leitor. A partir destas premissas de Eco, seguirei com algumas reflexões pessoais.

De um lado, temos o mito que jamais muda, e cuja história se desenvolve em circunstâncias familiares ao leitor. Assim, por exemplo, a história de Aquiles e suas proezas e tragédia narradas na Ilíada são em essência as mesmas, desde os tempos de Homero. Do outro lado, temos a narrativa de romance desprovida de qualquer dimensão mitológica. Seus personagens não são arquétipos, e por isso o autor pode fazer com eles o que quiser. Além disso, é da essência da narrativa do romance que as situações descritas sejam sempre novas. O romance encanta o leitor pela novidade que apresenta; o mito, pela sua força simbólica. Parece-me evidente que o mito contém uma dignidade infinitamente maior. Seu sucesso consiste em um sua universalidade, ou, nas belas palavras de Eco, o mito encerra “a soma de determinadas aspirações coletivas”. Isso significa que o mito se comunica com a humanidade, justamente porque sua mensagem é universal. É fácil perceber porque o Superman é um mito. Seu poder simbólico é inegável. A criação de Siegel e Shuster representa aquele ideal aspirado por qualquer ser humano: a máxima força física, a máxima determinação moral. Ele é precisamente uma expressão estética daquele destino que a humanidade, tomada em seu conjunto, sempre almejará.

Diferentemente, o romance é descartável. Justamente por entreter o leitor pela novidade que apresenta, tão logo seja completamente consumido pelo leitor, a novidade desaparece e, consequentemente, o seu poder de entretenimento também. E então pode ser jogado fora. Mais uma vez, reconhece-se no Superman a sua dimensão romanesca a partir destas definições. É preciso admitir: entre suas histórias mensalmente publicadas, poucas são de fato memoráveis (obviamente esta observação pode ser feita sobre qualquer super-herói de quadrinhos). O leitor compra a nova revista do mês apenas para saciar sua curiosidade de saber como se deu a continuidade da história que fora apresentada do mês anterior, e para ganhar a expectativa de como será sua continuidade no mês seguinte. Tão logo ele tome posse dessas informações, o fascículo é guardado, e só será reaberto para tirar alguma dúvida, relembrar algum fato, ou simplesmente para rever a arte do desenhista.

Eis, portanto, a contradição do Superman: ele é, a um tempo, universal e circunstancial; arquetípico e imortal, mas também com uma dimensão descartável. Talvez esta seja a consequência natural de um mito que fora criado e desenvolvido em uma época imersa na lógica do mercado e produção. E é neste segundo aspecto que se impõe aquele que talvez seja o maior inimigo do Superman: a sua vulnerabilidade a novidades tolas idealizadas por editores e escritores mesquinhos, além de desenhistas incompetentes. Anos atrás, em um texto publicado neste mesmo blog, chamei esta ameaça de “vilão metalinguístico”. Nome bastante pedante, devo reconhecer hoje. Mas há verdade no conceito ao qual ele se refere. Por mais que amemos o personagem e reconheçamos a essência dele, nunca poderemos livrá-lo totalmente da má influência de editores oportunistas e escritores ruins que insistem em deformá-lo para que, assim, talvez aumentem um pouco as vendas e subam as cifras de seus próprios salários. Desde 1938, o Superman já foi circunstancialmente retratado como um idiota e colocado em situações humilhantes que contrastavam com sua enorme estatura mitológica. E isso sempre ocorrerá, uma vez que sua dimensão arquetípica está sempre acompanhada por sua dimensão romanesca. Ele é um mito que, infelizmente, por vezes é confundido com simples produto de mercado. E nenhum grande super-herói consegue se blindar contra isso. Vide o caso mais recente do Capitão América “nazista”, sobre o qual já falei algumas coisas neste blog. Por outro lado, é preciso afirmar que a dimensão romanesca precisa estar subordinada à arquetípica. A veracidade desta exigência confirma-se pelo fato de que os leitores mais sensíveis normalmente se revoltam com as mudanças drásticas e inadequadas pelas quais o super-herói passa. Certa vez, em uma discussão com um leitor de quadrinhos, eu estava me queixando de alguma reformulação estúpida pela qual o Superman passava (e que, aliás, já foi revogada). E então este leitor respondeu: “o Superman é aquilo que a DC Comics decide que ele deve ser”. Estas são as palavras de um leitor estúpido, incapaz de reconhecer a dimensão mitológica do super-herói, para rebaixá-lo apenas à sua dimensão romanesca e descartável.


E assim chegamos a um outro ponto. Embora nossos personagens favoritos não possam blindar-se contra esta terrível ameaça – isto é, os comerciantes da DC e Marvel que gostam de prostituí-los como produtos de mercado em lugar de respeitá-los como mitos – no entanto, acredito que o leitor inteligente e sensível a mudanças arbitrárias possa blindar a si mesmo. E como isso é possível? Primeiro, reconhecendo a essência do personagem. Em outras palavras, mediante a apreensão da dimensão mitológica e arquetípica do super-herói. Segundo, selecionando os materiais que irá consumir, adquirindo apenas aqueles que sejam fieis e adequados à dimensão mitológica do personagem (isto é, apenas se quiser evitar decepções).







terça-feira, 29 de maio de 2018

Os X-Men e o eterno conflito social entre o talento e a mediocridade




É um lugar-comum assumir os X-Men como uma metáfora (ou, talvez mais precisamente, uma alegoria) sobre os conflitos raciais ocorridos nos EUA durante a década de 60. Assim, por exemplo, na biografia da Marvel Comics escrita por Sean Howie (“Marvel Comics: a história secreta”), o autor reforça esta opinião, e associa a personalidade de Charles Xavier à figura de Martin Luther King, enquanto que Magneto, o mutante radical, representaria o líder (também radical) Malcolm X. Para Howie, a mensagem de X-Men é clara: os conflitos raciais deveriam acabar, mas por meio de uma política moderada, conciliadora, tal como aquela proposta por Xavier (e Luther King). Acredito que não sejam poucos aqueles que dão continuidade a esta interpretação metafórica dos X-Men, e com isso associando-os, pela via analógica, a outras categorias de minorias sociais, sejam elas étnicas ou de gênero.

O elemento fascinante de uma metáfora é que, não sendo literal, ela oferece ao leitor latitude suficiente para que ele mesmo faça suas próprias interpretações acerca do significado da mensagem. Portanto, não há uma regra que possa definir, com total exatidão, qual seria a melhor interpretação de uma metáfora, ainda que, obviamente, a interpretação precise ser formulada dentro de certos limites, sob pena de soar completamente desvinculada da metáfora sobre a qual incide e assim perder totalmente sua analogia com a mesma. O vínculo entre a interpretação oferecida e a metáfora interpretada pressupõe um certo nível inequívoco de identidade entre ambas, um ponto de identidade que não pode ser negado por nenhum leitor minimamente sério e razoável. Sem dúvida, muitas histórias dos X-Men são uma metáfora sobre a condição social de uma minoria. Mas que tipo de minoria?

De minha parte, eu não consigo associar os X-Men a minorias raciais, étnicas, ou de gênero. Longe de representar conflitos baseados em diferenças de cor, de costumes, ou de gênero sexual, creio que os X-Men se referem às minorias constituídas por pessoas de talento. Afinal, basta nos perguntarmos: por que os mutantes são odiados pelas pessoas comuns? Porque possuem aparência diferente? Não. Porque possuem modos de vida e crenças diferentes? Não. Porque são de algum gênero sexual minoritário? Obviamente que não. Nas histórias dos X-Men, os mutantes são odiados porque eles possuem mais poder que as pessoas comuns; porque possuem talentos especiais dos quais as pessoas comuns são destituídas. O que faz os mutantes serem odiados é o fato de que seus talentos geram um misto de inveja, medo e ressentimento nas pessoas destituídas destes mesmos talentos. Portanto, o inimigo dos X-Men não é uma maioria de qualquer tipo, mas o agrupamento de pessoas medíocres.

Como diz José Ingenieros em seu conhecido livro “O homem medíocre”, o termo “medíocre” incorpora em seu radical a expressão “médio”. Portanto, “medíocre” é o homem médio, o indivíduo comum. Este indivíduo comum, porque ciente de sua impotência espiritual, de sua incapacidade de destacar-se em meio à multidão de ordinários, tende secretamente a invejar e sentir-se ameaçado por qualquer pessoa capaz de exibir algum talento especial. Esta inveja e este medo conduzem ao ódio, ao ressentimento, e ele não demorará a expressar publicamente esta frustração, sem, no entanto, deixar de justificá-la por meio de sofismas, aparentemente coerentes. Todo o marxismo é um sofisma deste tipo. No fim, o marxismo não passa de um discurso razoavelmente bem articulado em sua superfície, cuja finalidade é justificar o ódio de muitos por uma classe minoritária (os “burgueses”). O Nacional-Socialismo era a mesma coisa: uma tentativa de justificar o ódio de muitos por uma classe constituída por poucos (os judeus). Nos dois casos, o elemento comum consiste no fato de que as minorias odiadas detinham um tipo de poder que a maioria não detinha, embora desejasse obtê-lo para si.

A receptividade pública a estas doutrinas deve-se ao fato de que as mesmas justificam, dentro de um discurso aparentemente coerente, aquela pretensão majoritária, pretensão esta que, dissociada de qualquer justificação ideológica, soaria absurda e até criminosa à sã consciência. Mas um dos papéis da ideologia (1) é justamente o de corromper a sã consciência, conduzindo a mente do indivíduo a uma espécie de embriaguez intelectual que, tal como toda forma de embriaguez, é incômoda ao espírito sadio, mas altamente prazerosa e consoladora à alma torturada pela frustração.

E assim, se minha interpretação estiver correta, o jogo parece se inverter: os X-Men não representam uma metáfora da necessidade de inclusão – ao menos não de uma inclusão de certas minorias vitimistas e chorosas, que desejam desesperadamente compensar sua ausência de rigor e talento por meio de subsídios públicos ou privilégios de quaisquer tipos (2).

Em vez disso, os X-Men são uma denúncia: a denúncia da inveja e do ressentimento de que padecem as pessoas medíocres, as quais, ironicamente, compõem em grande parte as fileiras de certas minorias belicosas e histéricas, inconformadas com a desigualdade de distribuição de poderes e talentos inerente a este mundo, e que a todo momento clamam pela revogação dos méritos e pelo nivelamento artificial das vantagens naturais, inclusive tratando o termo “meritocracia” como sinônimo de injustiça social. O ódio ao mérito é ódio ao talento, e o talento é a manifestação mais nobre do poder.

"Subjugar o mérito através da pressão política" – eis a máxima aspiração dos medíocres que aparecem nas páginas dos quadrinhos dos X-Men, mas que, infelizmente, também se manifestam neste mundo real.



(1) Utilizo-me aqui do termo "ideologia" no sentido definido por Eric Voegelin: um sistema fechado de ideias salvíficas que tem por objetivo promover o contentamento terreno através da ação política. Um pressuposto da paixão ideológica é uma certa dose de afastamento da realidade, o que somente é possível por meio da loucura, ou por causa de uma revolta subjetiva em relação à mesma.

(2) Exemplo disso foi o caso do cancelamento, ocorrido em 2017 no Rio Grande do Sul, de uma exposição de arte que seria patrocinada pelo banco Santander. Os artistas da exposição e outras pessoas que com eles possuíam afinidade política trataram a situação como um caso de “censura” e perseguição a uma minoria injustiçada. Na verdade, a situação era bem mais simples. As pessoas apenas não conseguiram se conformar ao ver o dinheiro do Santander – que em circunstâncias normais deveria ser aplicado em serviços públicos através do recolhimento de tributos, mas que graças à Lei Rouanet, seria investido naquela exposição – financiando trabalhos tão grosseiros, estúpidos e ofensivos, que só poderiam ser considerados “artísticos” em um sentido muito pejorativo da palavra. Diante da péssima repercussão provocada pela publicação precoce das imagens destes trabalhos na internet, o Santander resolveu desistir de financiar a exposição. Ou seja, os artistas não foram censurados, uma vez que não foram proibidos de expor suas obras... eles apenas perderam o patrocínio do Santander.
Outro exemplo mais assustador desta tendência se manifesta no cenário educacional. Com base na lei 10.639/03, que dispõe sobre a obrigatoriedade de inclusão de conteúdos ligados à história e cultura afro-brasileira em todo o currículo escolar dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, muitos educadores defendem a inclusão (aqui, um eufemismo para imposição) do estudo das obras de pensadores, escritores e cientistas, baseando-se na etnia ou raça dos mesmos (eles precisam ser "afro-descendentes"), e não na qualidade de seus respectivos trabalhos. Isto é: o critério principal de escolha de, por exemplo, uma obra de filosofia, não deve ser o nível de correspondência entre a mesma e a realidade que ela pretende explicar, mas a cor da pele de seu autor. Eis um caso flagrante onde as futilidades políticas de um povo assumem a primazia sobre a busca sincera do conhecimento e da verdade.

sábado, 5 de maio de 2018

A alegoria do católico Demolidor


Uma verdade inconveniente: para resistir ao mal, é preciso cultivar um demônio interior.

Thanos de “Vingadores – Guerra Infinita”: um vilão realmente perigoso




Vamos começar justificando o título deste texto: por que afirmo que a versão cinematográfica de Thanos tornou-o realmente perigoso? Nos quadrinhos ele já não era o mais perigoso vilão da Marvel? Sim, ele era. Mas isso não fazia dele algo realmente perigoso. E por quê? Porque em minha forma de entender, um vilão realmente perigoso é aquele que consegue seduzir o leitor (ou telespectador), pois muito mais relevante do que surrar heróis fictícios em um mundo fictício, é a capacidade que uma ideia possui de subverter a imaginação moral das pessoas reais. E o Thanos cinematográfico é uma ideia com este poder. Agora vejamos os fundamentos desta afirmação.

Há uma pequena diferença entre o Thanos dos quadrinhos, originalmente concebido pelo grande Jim Starlin, e o Thanos que aparece no último filme dos Vingadores: o primeiro é um amante da Morte, e o desejo de conquistar sua amada constitui sua principal motivação, daí o seu desejo de aniquilar toda a vida; o segundo, ao contrário, é um ser dedicado à melhoria das condições de vida. Ele insiste que a vida se sustenta dentro de um equilíbrio com a morte, e que este equilíbrio, quando rompido, tem por consequência a decadência da vida, que é o sofrimento dos seres vivos. Quando há mais geração de vida do que morte, a consequência é a escassez dos meios materiais que sustentam a vida (se mais pessoas se alimentam, menos alimento sobra). Aparentemente, esta versão de Thanos é sensível o bastante para se revoltar com o sofrimento sentido pelos seres vivos, daí seu objetivo de restabelecer o equilíbrio entre vida e morte, por meio da aniquilação pura e simples dos seres vivos “excedentes”. Porém, Thanos insiste que esta aniquilação precisa ser aleatória – isto é, não deve haver privilegiados ou escolhidos - do contrário seria injusta. Isto é, além de sensível ao sofrimento causado pelas limitações materiais inerentes à existência, Thanos também pretende ser justo.

Portanto, se o Thanos de Starlin é um niilista, um cultor do Nada, amante da Morte, o Thanos de “Guerra Infinita” é um ideólogo, um ser apaixonado pela ideia de meliorismo das condições materiais de vida. E é este o ponto em que eu queria chegar. Um niilista pode parecer atraente a algumas pessoas, uma pequena minoria de amargurados em relação à vida. Mas o ideólogo é capaz de seduzir a grande maioria das pessoas de nosso tempo, pois a obsessão pelo meliorismo terreno, pela realização de paraísos terrestres, constitui a mais poderosa ilusão moderna.

O Thanos de Jim Starlin também se mostra eventualmente preocupado com o equilíbrio entre vida e morte, mas sua motivação mais fundamental é sempre a de agradar a Morte.

Para resistir aos encantos da versão cinematográfica de Thanos  (e de qualquer ideólogo da vida real), o telespectador precisa possuir uma alta envergadura espiritual, força moral suficiente para suportar a metaxy platônica ou a tensão cristã, e assim aceitar que o real e o ideal devem permanecer separados, como condição de sua complementaridade. Thanos é uma expressão da mentalidade moderna que deseja romper esta fronteira (entre o real e o ideal), fundindo ao real o nosso ideal.

Uma boa explicação destas noções o leitor poderá encontrar no excelente livro “Revolta contra a modernidade”, de Ted V. McAllister1. Nele, McAllister analisa as ideias (e críticas) de Leo Strauss e Eric Voegelin sobre a mentalidade moderna. Enquanto Strauss destaca o problema do relativismo moral e sua contribuição para o enfraquecimento do espírito do homem moderno, Voegelin concentra suas críticas no mal da ideologia. McAllister, parafraseando Voegelin, define ideologia como “um sistema intelectual fechado, no qual o conhecimento humano serve como meio para a realização do contentamento terreno” (MCALLISTER, 2017, p. 39). A ideologia depende da fé na possibilidade de realização do “contentamento terreno”. Esta fé, por sua vez, baseia-se naquilo que podemos chamar, a partir de Voegelin, de “imanentização dos símbolos de transcendência”.

Sistemas de crença tradicionais como o cristianismo nos oferecem símbolos de salvação, uma escatologia que dá sentido à história. Porém, esta salvação e essa escatologia permanecem transcendentes, no sentido de que não se confundem com uma vida ou realização terrenas. O paraíso cristão não é deste mundo, e nem a salvação cristã se realiza neste mundo. O ideólogo, que é nada mais do que o messias politizado (e, portanto, é um falso messias), apropria-se deste simbolismo transcendente e aplica-o ao mundo imanente, isto é, ao mundo material que vivenciamos por intermédio de nosso corpo e seus sentidos. Assim, o promessa cristã de salvação, que dentro da lógica cristã deve permanecer transcendente (referente a um outro mundo e a um outro modo de existência), degenera-se em promessa de salvação terrena, de contentamento terreno, que há de realiza-se neste mundo, neste mesmo modo de existência. A salvação da alma degenera-se em salvação do corpo.

Meu exemplar de "Revolta contra a modernidade", de McAllister.

Obviamente, animado pela promessa de contentamento terreno e por isso insensível à ideia de salvação transcendente, o homem moderno perde todos os escrúpulos em relação aos meios que conduzem àquele fim. Se só existe este mundo, então tudo vale para torná-lo melhor. Neste contexto, a aniquilação de alguns como condição sine qua non da promoção da alegria de muitos já não parece ser uma ideia absurda; ao contrário: torna-se moralmente justificável, e até necessária. E assim, surgem os Stalins, Mussolinis, Hitlers, Maos, e outros ideólogos mais sutis, mas que possuem em comum esta perturbadora aura de messianismo político comprovada pela devoção cega e acrítica de seus seguidores.

Como fábula de super-heróis, “Guerra Infinita” cumpre sua mais sublime missão: Thanos, o ideólogo, apesar de encantador, não deixa de ser mostrado como o vilão da história, contra quem os bons heróis devem lutar. A ideia de realização de paraísos terrestres não deve sobrepor-se à santidade da vida, e a realidade, mesmo que acompanhada de tantas dores e dificuldades, precisa ser incondicionalmente preservada diante da vaidade de revolucionários enlouquecidos.




1 MCALLISTER, Ted V. Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. São Paulo: É Realizações, 2017.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

"Cavaleiros do Zodíaco" contra o relativismo moral

Os Cavaleiros do Zodíaco no clássico design de Shingo Araki e Mich Himeno (com base no trabalho original de Masami Kurumada)

Revisitando alguns episódios do clássico anime “Cavaleiros do Zodíaco” (ou Saint Seiya, como é conhecido internacionalmente), deparei-me com um intrigante diálogo entre Máscara da Morte (o corrupto e cruel cavaleiro de ouro do signo de Câncer) e Mestre Ancião (cavaleiro de ouro do signo de Libra e mestre de Shiryu), no qual testemunhamos uma apaixonada defesa do absolutismo moral, e consequente oposição ao relativismo moral.

Primeiro, cabe aqui alguns esclarecimentos: por “absolutismo moral” entendo aquela doutrina segundo a qual qualidades morais – como “certo” e “errado”, “ético” ou “antiético”, “moral” ou “imoral”, “justo” ou “injusto”, “bom” ou “mau” – não podem ser intercambiadas, de maneira que aquilo que é moralmente correto jamais há de ser confundido como o moralmente errado, e um valor moral (tal como “vida” ou “propriedade” ou “bem”) jamais há de ser confundido com um desvalor moral (como “assassinato” ou “roubo” ou “mal”).

Diferentemente, por “relativismo moral” entendo a doutrina segundo a qual qualidades ou valores morais não são absolutamente distintos em si mesmos, por serem aqui considerados elementos convencionados e subjetivamente condicionados, de maneira que aquilo que é considerado injusto hoje, pode facilmente ser considerado justo amanhã, e vice-versa, a depender das opiniões e conveniências humanas. Para o relativista, não há critérios morais de julgamento que sejam absolutos.

Obviamente, em função dos limites naturais da capacidade de julgamento humano, o absolutista tem de admitir a possibilidade de situações concretas nas quais o julgamento moral (inclusive dele próprio) se torne difícil. Mas isso não significa que estas situações, quando consideradas em si, não sejam definidas de um ponto de vista moral; significa apenas que nós não conseguimos defini-las com precisão. Considerado em si, o justo não se confunde jamais com o injusto, ainda que nem sempre nós, seres humanos imperfeitos, sejamos capazes de notar a diferença.

O absolutismo moral encontra forte paralelo com aquilo que eu gostaria de chamar de absolutismo epistemológico: para este, a verdade jamais se confunde com a mentira, ou a realidade, com a ilusão. É possível que nós nos enganemos em função de nossos limites cognitivos, e eventualmente confundamos uma ilusão com a realidade. Mas isso não significa que ilusão e realidade, ou verdade e mentira, sejam noções intercambiáveis; significa apenas que nós não conseguimos separá-las em razão de nossa própria incapacidade, embora considerados em si estes entes sempre sejam absolutamente distintos. Do fato de que eu tenha visto ao longe um cavalo, e confundido-o com um unicórnio, não muda o fato de que em si ele continua a ser um simples cavalo.

Pois bem: tendo estas noções em conta, pode-se notar que o sábio Mestre Ancião aparece como um legítimo defensor do absolutismo moral, enquanto que o pedante e vaidoso Máscara da Morte (embora bastante carismático, em minha opinião), apresenta-se como um propagador do relativismo moral. Assim segue o diálogo, que acredito ter sido mostrado no 39º episódio da “Saga do Santuário”[1]:

Máscara da Morte: - As definições de justiça mudam com o passar do tempo; isso é uma coisa que a História já provou. O que Ares pretende fazer agora pode ser diabólico, mas vencendo, ele será o justo. Ou seja, Mestre: o errado pode se tornar o certo; se o senhor perder, o injusto passa a ser o senhor. Está entendendo, Mestre Ancião?

Mestre Ancião: - Seu tolo!

Máscara da Morte: - O que disse?

Mestre Ancião: - A injustiça nunca se torna justiça. E é a própria história humana que prova que isso é verdade. Os impérios que possuíam exércitos poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História: este é o destino das forças do mal. O mal nunca deixará de ser o que é. E o bem é uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta verdade nesta grande correnteza da vida2.

 O vilão e relativista moral (será que estou sendo redundante?) Máscara da Morte

Logo, percebe-se que para o Máscara da Morte a justiça não passa de uma convenção momentânea subjetivamente condicionada. Mais precisamente, a justiça é apenas uma convenção imposta pelo mais forte, pelo vencedor do conflito. Esta definição nos conduz ao Livro I da obra “A República”, de Platão. Nele, Sócrates dialoga com o sofista Trasímaco que, seguindo a tendência geral dominante entre os sofistas, apresenta-se como um cínico relativista. Para Trasímaco, a justiça “não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (338a-e). E vai mais além ao argumentar que a injustiça é mais útil e proveitosa do que a justiça, na medida em que esta serve apenas para restringir o súdito ou o fraco, enquanto que aquela é o meio pelo qual o tirano satisfaz seus desejos e apetites (343a-e).


Mestre Ancião

Se Máscara da Morte é Trasímaco, o Mestre Ancião é Sócrates (ou Platão). Sócrates ataca primeiro a posição de Trasímaco em seu elemento utilitarista: para Sócrates, a injustiça não consegue ser mais útil do que a justiça, nem mesmo para o homem injusto. E para explicar esta asserção, Sócrates argumenta que, mesmo nos exércitos mais injustos e cruéis, deve prevalecer alguma justiça entre seus membros, do contrário haveria tantas discordâncias e dissensões entre eles que logo acabariam destruindo uns aos outros (351 e 352a-e).

Este argumento utilitarista encontra paralelo nas palavras do Mestre Ancião, na medida em que este afirma que “os impérios que possuíam exércitos poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História: este é o destino das forças do mal”. Em minha maneira de interpretar, aquilo que o Mestre disse corresponde à tese de Sócrates: pois para este a justiça é ordem, harmonia; injustiça é caos, confusão, discórdia. Portanto, a injustiça ou o mal em geral não são capazes de sustentar uma ordem, uma organização ou uma harmonia, mas por sua própria natureza caótica, estão sempre condenados a produzir efeitos temporários. Embora as injustiças possam eventualmente triunfar, este triunfo é sempre efêmero. Mesmo toda a ousadia e ferocidade não podem prosperar para sempre quando sustentadas pelas fundações caóticas da injustiça. É como um edifício gigantesco construído muito rapidamente sobre bases matematicamente imprecisas: ele está condenado a desmoronar.

O Terceiro Reich é um exemplo emblemático disso. Apesar de todo o brilhantismo estratégico, tático e tecnológico do exército alemão, o Terceiro Reich não conseguiu sustentar-se diante do ódio e antipatia universais que sua doutrina provocou em todo o resto do mundo civilizado. Todos sabemos que, no fim, Hitler teve de resistir praticamente sozinho, uma vez que as outras duas nações do Eixo (Itália e Japão) eram bastante frágeis e ofereceram pouca ajuda (para não dizer que só atrapalharam, como foi o caso da Itália). Mas o que poucos comentam, é que Hitler sempre sofreu com resistências internas, primeiro durante a década de 30 dentro da própria Alemanha (onde sofreu várias ameaças a verdadeiros atentados à sua vida); depois, teve na França de Vichy um aliado no qual jamais pôde confiar, e que só contribuiu para aumentar suas angústias e incertezas; e por último, já durante a 2ª Guerra, teve que conviver com várias conspirações elaboradas pela própria Wehrmacht, das quais resultou um atentado que quase deu certo (a famosa “Operação Valquíria”). O Mal é em si caótico; e enquanto tal, destituído de toda a harmonia e organização que conduzem ao êxito inabalável, ainda que muitas vezes gradual.

E isso nos conduz à segunda e mais importante parte da argumentação de Platão. Após demonstrar que a justiça é socialmente mais útil do que a injustiça, Sócrates precisa agora provar para os inquietos Glauco e Adimanto que, além de útil, a justiça é um bem que vale por si (357a-d). É neste ponto que se prova que a justiça não é uma mera convenção subjetivamente ou historicamente determinada, condicionada pelas leis sancionadas pelo Estado ou pela conveniência do mais forte. E o argumento é o seguinte: aquilo que vale para a vida social, vale com maior razão para a alma do homem. Pois se no âmbito político os diferentes indivíduos, divididos em diferentes classes profissionais, devem atuar de forma harmônica para garantir a vida social sadia, do mesmo modo, cada indivíduo deve harmonizar suas diferentes faculdades anímicas através do cultivo das virtudes cardeais (temperança, coragem, sabedoria) para assim realizar sua ordem espiritual interna (e consequentemente, a quarta virtude cardeal, que é a justiça). Para Platão, justiça significa ordem, harmonia. O homem justo é aquele que cultiva a ordem interna de sua alma.

Deste modo, a justiça deixa de ser definida apenas em termos utilitaristas, pois apesar de ser socialmente útil, esta não é sua verdadeira tônica. A justiça é um valor intrínseco, que vale por si, porque é “a saúde da alma” (nas palavras de Werner Jaeger), tão essencial ao espírito quanto é a saúde do corpo para a vida (444 a-e). Portanto, na medida em que é uma virtude intrínseca à saúde da alma humana, ela deixa de ser definida em termos puramente extrínsecos e arbitrários; deixa de ser o “reflexo das variáveis influências exteriores do poder e dos partidos” (mais uma vez, cito Jaeger) para se converter na ordem interior da alma do indivíduo. Não importa o quanto o direito positivo é alterado, seja pela conveniência do mais forte ou de qualquer outro grupo. Em sua raiz, a justiça é  harmonia da alma, e este seu conceito é atemporal. Consequentemente, pode-se repetir aqui sobre a justiça aquelas belas palavras do Mestre Ancião, quando este se referiu ao Bem em geral:

"é uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta verdade nesta grande correnteza da vida".




[1] Este diálogo pode ser assistido neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=IJHb_xwJ_Fw&t=1s
2 Uma questão que ainda pretendo responder para mim mesmo é se este diálogo fora idealizado pelo autor original do mangá, Masami Kurumada, ou se foi inserido apenas pelos responsáveis pela adaptação da obra neste anime. Apesar de eu me considerar um intenso admirador dos Cavaleiros desde quando o anime fora exibido pela Rede Manchete, durante as tardes de 1994, eu nunca li o mangá, o que é certamente uma negligência imperdoável de minha parte.