sábado, 7 de julho de 2018

Morre Steve Ditko, criador do Mr. A e do Homem-Aranha



Ontem foi noticiada a morte de Steve Ditko, amplamente conhecido por criar, junto a Stan Lee, o Homem-Aranha. O desenhista/escritor contava com 90 anos, e se caracterizava por possuir uma postura bastante reservada, além de ser quadrinista excepcional.

Mas Ditko possuía uma outra qualidade e que estimo muito, tornando-o um dos meus artistas favoritos: seu comprometimento com o absolutismo moral, isto é, com a ideia de que entre Bem e Mal não há elementos intermediários, e que aqueles que buscam a mistura ou relativização daqueles dois elementos contribuem apenas para a destruição do primeiro e enaltecimento do segundo. Assim como uma meia verdade não passa de mentira, o relativismo moral não passa de ofuscamento do Bem e consequente afirmação do Mal.

Tais ideias encontram acolhimento em qualquer mente estruturada dentro de padrões minimamente lógicos. Mas também ganharam forte expressão por meio da filosofia objetivista da filósofa Ayn Rand, cujas ideias compunham o centro em torno do qual gravitavam as aventuras daquela que considero a melhor criação de Steve Ditko: o Mr. A.

Os quadrinhos do Mr. A foram extremamente inovadores, mesmo para qualquer padrão atual, e por isso permanecem relativamente desconhecidos até hoje. Aqui, pela primeira vez (e até onde sei, pela última), vemos o herói de quadrinhos lutar pelo bem não de maneira intuitiva, mas de forma plenamente consciente a partir de princípios morais rigorosamente expostos em seus diálogos. Ao Mr. A não interessava apenas lutar contra o mal: era necessário explicar detalhadamente por que ele o fazia.

Portanto, os quadrinhos de Mr. A não eram destinados apenas a mero entretenimento. Eram verdadeiras aulas filosóficas sobre Ética. Por isso, os diálogos apresentavam sempre uma rigorosa lógica interna, pelos quais Ditko esperava demonstrar, mediante detalhadas explicações e monólogos, a necessidade de distinguir entre o Bem e o Mal, e, consequentemente, de conservar o primeiro e de se opor ao último. Creio que este seja o motivo mais evidente pelo qual o Mr. A nunca se popularizou. Ele pressupõe leitores com cérebro.


Neste texto estão expostos algumas das principais características do Mr. A de Ditko. 1) A demonstração de que princípios morais estão subordinados a princípios lógicos. De certa forma, todas as verdades pressupõem o princípio lógico da identidade. Pois assim como A é igual a A e, portanto, diferente de B, então A não pode ser A e B ao mesmo tempo. Do mesmo modo, o Bem é diferente do Mal, e por isso não pode haver algo que seja bom e mau ao mesmo tempo. Com isso, repudia-se o relativismo moral. 2) É dito que a prática do mal só conduz o indivíduo à autodestruição. Isto é uma referência direta a uma das premissas da filosofia moral de Ayn Rand, segundo a qual a Ética não é um capricho, mas uma necessidade vital. Consequentemente, a ação imoral é sempre uma agressão imediata ou mediata à vida, inclusive daquele que crê se beneficiar da própria imoralidade. A longo prazo, o criminoso sempre coloca sua própria vida em risco.


Mas ainda há um segundo motivo. Já vi em alguns sites estrangeiros certos sabichões cheios de amor no coração demonstrarem horror diante do rigorismo do Mr. A, taxando-o inclusive de "psicopata". Não vejo as coisas desta forma. De fato, Mr. A exibia pouca piedade para com criminosos. Mas sua violência sempre se mantinha dentro dos limites da justiça retributiva. Ele somente devolvia a morte àqueles que já haviam oferecido-a gratuitamente às suas vítimas. Para Mr. A, qualquer outra postura fugiria à relação de proporcionalidade(1) intrínseca à justiça retributiva e, portanto, seria injusta.

Por outro lado, se alguém ainda tem problemas com a justiça retributiva e seu senso interno de proporcionalidade, a este alguém devemos lembrar que a justiça é uma virtude e, como tal, pressupõe certa força e firmeza em sua aplicação. De fato, a palavra “virtude” é composta por “vir” em seu radical, que em latim significa “varão”, o que revela seu originário sentido de força e rigor. Ser justo não é tarefa fácil, e por isso a virtude da justiça dificilmente encontra acolhimento em corações melindrosos. Em todo caso, arrisco dizer que mesmo os portadores de semelhantes corações jamais aceitariam trocar seu ouro pelo cobre de alguém. Mesmo os melindrosos afirmam a justiça retributiva nas pequenas coisas. Falta-lhes apenas o rigor necessário para afirmá-la nas grandes coisas.

Poderíamos criticar Mr. A por ele ser alguém que faz justiça com as próprias mãos. Já tratei deste assunto neste mesmo blog meses atrás, quando escrevi sobre a rivalidade entre Justiceiro e Demolidor. E naquela oportunidade busquei demonstrar que este problema só pode ser decidido por meio da avaliação cuidadosa de circunstâncias empíricas. Em um mundo onde há Estado organizado, o justiça pelas próprias mãos é certamente condenável; mas em um mundo sem Estado (ou onde há um Estado apenas formalmente organizado, mas omisso na prática), então não haveria como condenar semelhante atitude.

Em todo caso, acredito que este dilema não seja o ponto central de Mr. A, cujas histórias são sobre Ética, e não sobre Política. O foco não é oferecer um modelo de sociedade organizada, mas um modelo individual, e ao mesmo tempo coerente e, portanto, universal, de julgamento moral.

Portanto, o ponto central é o combate ao relativismo moral, à tendência tão contemporânea de neutralizar as fronteiras entre o Bem e o Mal, o que serve apenas para desacreditar o primeiro e afirmar o segundo, conforme já dito. Acima de tudo, é uma crítica à nossa tendência pessoal de fugirmos de nosso dever de adotar aquelas posições e princípios admitidos pela lógica e pela razão, mas que muitas vezes parecem árduos diante das exigências idiossincráticas de nossas confusas e débeis emoções. 

Afinal, no mundo há o Bem e o Mal, e ambos se distinguem entre si. Além disso, é preciso escolher entre ambos. Este é um dado da realidade que não pode ser negado, e por isso tentar misturá-los como um meio de fugir daquela escolha equivale a fugir da realidade. 

Obrigado por nos apresentar estas lições, Steve Ditko. Não sei se você acreditava em Deus. Mas eu acredito, e por isso espero que você esteja com Ele neste momento.

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Notas



(1) Não levo em conta aqui as complicadas explicações aristotélicas, expostas em “Ética a Nicômaco”, sobre as diferenças entre igualdade e proporcionalidade. Tomo este último termo em sentido lato para me referir a toda relação de troca de valores na qual prevalece equilíbrio entre aquilo que é dado, e aquilo que é recebido. Além disso, pessoalmente considero que toda proporcionalidade guarda sempre uma igualdade, embora não literal. Assim, se troco um livro, por uma quantia de R$ 80,00, esta troca não se dá dentro de uma igualdade literal (que assim seria se fosse uma troca de um livro por outro livro, de preferência idêntico), mas dentro de uma igualdade proporcional (supondo, é claro, que o valor do livro seja mais ou menos de R$ 80,00 segundo padrões estabelecidos pelo mercado). 

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