segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

"Cavaleiros do Zodíaco" contra o relativismo moral

Os Cavaleiros do Zodíaco no clássico design de Shingo Araki e Mich Himeno (com base no trabalho original de Masami Kurumada)

Revisitando alguns episódios do clássico anime “Cavaleiros do Zodíaco” (ou Saint Seiya, como é conhecido internacionalmente), deparei-me com um intrigante diálogo entre Máscara da Morte (o corrupto e cruel cavaleiro de ouro do signo de Câncer) e Mestre Ancião (cavaleiro de ouro do signo de Libra e mestre de Shiryu), no qual testemunhamos uma apaixonada defesa do absolutismo moral, e consequente oposição ao relativismo moral.

Primeiro, cabe aqui alguns esclarecimentos: por “absolutismo moral” entendo aquela doutrina segundo a qual qualidades morais – como “certo” e “errado”, “ético” ou “antiético”, “moral” ou “imoral”, “justo” ou “injusto”, “bom” ou “mau” – não podem ser intercambiadas, de maneira que aquilo que é moralmente correto jamais há de ser confundido como o moralmente errado, e um valor moral (tal como “vida” ou “propriedade” ou “bem”) jamais há de ser confundido com um desvalor moral (como “assassinato” ou “roubo” ou “mal”).

Diferentemente, por “relativismo moral” entendo a doutrina segundo a qual qualidades ou valores morais não são absolutamente distintos em si mesmos, por serem aqui considerados elementos convencionados e subjetivamente condicionados, de maneira que aquilo que é considerado injusto hoje, pode facilmente ser considerado justo amanhã, e vice-versa, a depender das opiniões e conveniências humanas. Para o relativista, não há critérios morais de julgamento que sejam absolutos.

Obviamente, em função dos limites naturais da capacidade de julgamento humano, o absolutista tem de admitir a possibilidade de situações concretas nas quais o julgamento moral (inclusive dele próprio) se torne difícil. Mas isso não significa que estas situações, quando consideradas em si, não sejam definidas de um ponto de vista moral; significa apenas que nós não conseguimos defini-las com precisão. Considerado em si, o justo não se confunde jamais com o injusto, ainda que nem sempre nós, seres humanos imperfeitos, sejamos capazes de notar a diferença.

O absolutismo moral encontra forte paralelo com aquilo que eu gostaria de chamar de absolutismo epistemológico: para este, a verdade jamais se confunde com a mentira, ou a realidade, com a ilusão. É possível que nós nos enganemos em função de nossos limites cognitivos, e eventualmente confundamos uma ilusão com a realidade. Mas isso não significa que ilusão e realidade, ou verdade e mentira, sejam noções intercambiáveis; significa apenas que nós não conseguimos separá-las em razão de nossa própria incapacidade, embora considerados em si estes entes sempre sejam absolutamente distintos. Do fato de que eu tenha visto ao longe um cavalo, e confundido-o com um unicórnio, não muda o fato de que em si ele continua a ser um simples cavalo.

Pois bem: tendo estas noções em conta, pode-se notar que o sábio Mestre Ancião aparece como um legítimo defensor do absolutismo moral, enquanto que o pedante e vaidoso Máscara da Morte (embora bastante carismático, em minha opinião), apresenta-se como um propagador do relativismo moral. Assim segue o diálogo, que acredito ter sido mostrado no 39º episódio da “Saga do Santuário”[1]:

Máscara da Morte: - As definições de justiça mudam com o passar do tempo; isso é uma coisa que a História já provou. O que Ares pretende fazer agora pode ser diabólico, mas vencendo, ele será o justo. Ou seja, Mestre: o errado pode se tornar o certo; se o senhor perder, o injusto passa a ser o senhor. Está entendendo, Mestre Ancião?

Mestre Ancião: - Seu tolo!

Máscara da Morte: - O que disse?

Mestre Ancião: - A injustiça nunca se torna justiça. E é a própria história humana que prova que isso é verdade. Os impérios que possuíam exércitos poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História: este é o destino das forças do mal. O mal nunca deixará de ser o que é. E o bem é uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta verdade nesta grande correnteza da vida2.

 O vilão e relativista moral (será que estou sendo redundante?) Máscara da Morte

Logo, percebe-se que para o Máscara da Morte a justiça não passa de uma convenção momentânea subjetivamente condicionada. Mais precisamente, a justiça é apenas uma convenção imposta pelo mais forte, pelo vencedor do conflito. Esta definição nos conduz ao Livro I da obra “A República”, de Platão. Nele, Sócrates dialoga com o sofista Trasímaco que, seguindo a tendência geral dominante entre os sofistas, apresenta-se como um cínico relativista. Para Trasímaco, a justiça “não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (338a-e). E vai mais além ao argumentar que a injustiça é mais útil e proveitosa do que a justiça, na medida em que esta serve apenas para restringir o súdito ou o fraco, enquanto que aquela é o meio pelo qual o tirano satisfaz seus desejos e apetites (343a-e).


Mestre Ancião

Se Máscara da Morte é Trasímaco, o Mestre Ancião é Sócrates (ou Platão). Sócrates ataca primeiro a posição de Trasímaco em seu elemento utilitarista: para Sócrates, a injustiça não consegue ser mais útil do que a justiça, nem mesmo para o homem injusto. E para explicar esta asserção, Sócrates argumenta que, mesmo nos exércitos mais injustos e cruéis, deve prevalecer alguma justiça entre seus membros, do contrário haveria tantas discordâncias e dissensões entre eles que logo acabariam destruindo uns aos outros (351 e 352a-e).

Este argumento utilitarista encontra paralelo nas palavras do Mestre Ancião, na medida em que este afirma que “os impérios que possuíam exércitos poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História: este é o destino das forças do mal”. Em minha maneira de interpretar, aquilo que o Mestre disse corresponde à tese de Sócrates: pois para este a justiça é ordem, harmonia; injustiça é caos, confusão, discórdia. Portanto, a injustiça ou o mal em geral não são capazes de sustentar uma ordem, uma organização ou uma harmonia, mas por sua própria natureza caótica, estão sempre condenados a produzir efeitos temporários. Embora as injustiças possam eventualmente triunfar, este triunfo é sempre efêmero. Mesmo toda a ousadia e ferocidade não podem prosperar para sempre quando sustentadas pelas fundações caóticas da injustiça. É como um edifício gigantesco construído muito rapidamente sobre bases matematicamente imprecisas: ele está condenado a desmoronar.

O Terceiro Reich é um exemplo emblemático disso. Apesar de todo o brilhantismo estratégico, tático e tecnológico do exército alemão, o Terceiro Reich não conseguiu sustentar-se diante do ódio e antipatia universais que sua doutrina provocou em todo o resto do mundo civilizado. Todos sabemos que, no fim, Hitler teve de resistir praticamente sozinho, uma vez que as outras duas nações do Eixo (Itália e Japão) eram bastante frágeis e ofereceram pouca ajuda (para não dizer que só atrapalharam, como foi o caso da Itália). Mas o que poucos comentam, é que Hitler sempre sofreu com resistências internas, primeiro durante a década de 30 dentro da própria Alemanha (onde sofreu várias ameaças a verdadeiros atentados à sua vida); depois, teve na França de Vichy um aliado no qual jamais pôde confiar, e que só contribuiu para aumentar suas angústias e incertezas; e por último, já durante a 2ª Guerra, teve que conviver com várias conspirações elaboradas pela própria Wehrmacht, das quais resultou um atentado que quase deu certo (a famosa “Operação Valquíria”). O Mal é em si caótico; e enquanto tal, destituído de toda a harmonia e organização que conduzem ao êxito inabalável, ainda que muitas vezes gradual.

E isso nos conduz à segunda e mais importante parte da argumentação de Platão. Após demonstrar que a justiça é socialmente mais útil do que a injustiça, Sócrates precisa agora provar para os inquietos Glauco e Adimanto que, além de útil, a justiça é um bem que vale por si (357a-d). É neste ponto que se prova que a justiça não é uma mera convenção subjetivamente ou historicamente determinada, condicionada pelas leis sancionadas pelo Estado ou pela conveniência do mais forte. E o argumento é o seguinte: aquilo que vale para a vida social, vale com maior razão para a alma do homem. Pois se no âmbito político os diferentes indivíduos, divididos em diferentes classes profissionais, devem atuar de forma harmônica para garantir a vida social sadia, do mesmo modo, cada indivíduo deve harmonizar suas diferentes faculdades anímicas através do cultivo das virtudes cardeais (temperança, coragem, sabedoria) para assim realizar sua ordem espiritual interna (e consequentemente, a quarta virtude cardeal, que é a justiça). Para Platão, justiça significa ordem, harmonia. O homem justo é aquele que cultiva a ordem interna de sua alma.

Deste modo, a justiça deixa de ser definida apenas em termos utilitaristas, pois apesar de ser socialmente útil, esta não é sua verdadeira tônica. A justiça é um valor intrínseco, que vale por si, porque é “a saúde da alma” (nas palavras de Werner Jaeger), tão essencial ao espírito quanto é a saúde do corpo para a vida (444 a-e). Portanto, na medida em que é uma virtude intrínseca à saúde da alma humana, ela deixa de ser definida em termos puramente extrínsecos e arbitrários; deixa de ser o “reflexo das variáveis influências exteriores do poder e dos partidos” (mais uma vez, cito Jaeger) para se converter na ordem interior da alma do indivíduo. Não importa o quanto o direito positivo é alterado, seja pela conveniência do mais forte ou de qualquer outro grupo. Em sua raiz, a justiça é  harmonia da alma, e este seu conceito é atemporal. Consequentemente, pode-se repetir aqui sobre a justiça aquelas belas palavras do Mestre Ancião, quando este se referiu ao Bem em geral:

"é uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta verdade nesta grande correnteza da vida".




[1] Este diálogo pode ser assistido neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=IJHb_xwJ_Fw&t=1s
2 Uma questão que ainda pretendo responder para mim mesmo é se este diálogo fora idealizado pelo autor original do mangá, Masami Kurumada, ou se foi inserido apenas pelos responsáveis pela adaptação da obra neste anime. Apesar de eu me considerar um intenso admirador dos Cavaleiros desde quando o anime fora exibido pela Rede Manchete, durante as tardes de 1994, eu nunca li o mangá, o que é certamente uma negligência imperdoável de minha parte.