quarta-feira, 25 de julho de 2018

Jean-Luc Picard e sua falsa noção de justiça




Após assistir ao sétimo episódio da 1º temporada de Star Trek - A nova geração (intitulado “Justice”), ganhei mais motivos para ficar ao lado de Kirk no clássico debate sobre quem foi o melhor capitão da Enterprise - se o icônico capitão interpretado por William Shatner ou o (talvez) igualmente icônico capitão Jean-Luc Picard (1). E o motivo é que, a julgar pelo citado episódio, o personagem interpretado por Patrick Stewart parece sustentar algumas falsas noções sobre o significado de justiça. 

Mas antes de esclarecer esta assertiva, convém descrever os pontos fundamentais do episódio em questão, pois é no contexto deste que Picard comete uma grave falha.

Em “justice”, o capitão Picard e sua tripulação encontram um planeta paradisíaco, com habitantes extremamente pacíficos, saudáveis e belos, dedicados apenas ao lazer e ao hedonismo. Mas todo paraíso tem seu lado sórdido - e esta parece ser uma mensagem constante em Star Trek. Pois esta comunidade aparentemente maravilhosa é sustentada pela aplicação de uma lei extremamente severa: a pena de morte para qualquer delito, mesmo o mais insignificante. Porém, ninguém da Enterprise foi avisado sobre isso. Então quando o jovem Wesley Crusher cai acidentalmente sobre as flores de um jardim (o que constitui uma infração neste mundo), ele é imediatamente sentenciado à morte. Para completar, este "paraíso" ainda é vigiado e protegido por uma entidade alienígena extremamente poderosa, chamada de “deus” por seus habitantes (2).

Diante desta circunstância, o capitão Picard se vê em uma difícil situação: se salvar Wesley, ele colocará a vida de toda a tripulação em risco, pois isso enfureceria o “deus” do planeta paradisíaco; mas se ele não salvar o garoto, então o mesmo será vítima de uma terrível injustiça. 

O androide Data chega a sugerir a opção utilitarista a Picard: “o senhor escolheria salvar uma vida ao invés de outras mil?”. A isto, Picard responde brilhantemente: “eu me recuso a deixar que a aritmética decida questões assim” (3).

No fim das contas, Picard resolve salvar Wesley, e com isso desafiar as leis do planeta paradisíaco e enfurecer seu “deus”. Quando este começa a demonstrar seus primeiros sinais de fúria, Picard resolve dialogar, numa tentativa desesperada de apelar ao bom senso da entidade:

- A questão da justiça tem me preocupado muito ultimamente. E digo a qualquer criatura que possa estar me ouvindo, que não pode haver justiça enquanto as leis forem absolutas. Até a própria vida é uma prática de exceções.

Poucos poderiam dizer pior. O que Picard não parece entender (claro, claro... não exatamente Picard, mas o escritor do episódio) é que aquilo que escandaliza nossos sentimentos morais não é o fato de que o garoto Wesley Crusher não é perdoado pelos habitantes daquele planeta, para assim constituir uma exceção à regra, mas o que escandaliza é a regra em si. Condenar alguém à morte porque pisou acidentalmente em um jardim é simplesmente absurdo, e parece contradizer os sentimentos morais de qualquer indivíduo minimamente inteligente. Garanto que, se o condenado fosse um habitante do planeta paradisíaco em vez de Crusher, o telespectador se sentiria igualmente inconformado.

Mas para Picard, a justiça consiste na obediência a regras escritas, desde que as mesmas permitam certas exceções. O importante é que a justiça das leis escritas não seja absoluta! Pois eu digo que essa é a justiça dos tiranos. Afinal, quem decidirá sobre as exceções às regras? Aqueles que detêm o poder, é claro. E quem serão os privilegiados, aqueles que constituirão estas exceções? Certamente aqueles que detêm o poder e seus amigos mais próximos. Ou a justiça é a mesma para todos, ou não há justiça (4). Qual o mérito de salvar Wesley Crusher, enquanto outros seres igualmente sensíveis e inteligentes continuam a poder morrer sob estas mesmas circunstâncias tão esdrúxulas?

Não estou dizendo com isso que a igualdade diante da lei seja o único elemento ético que define a justiça. A igualdade formal é aqui um fator necessário, mas não suficiente. Pois além disso, devemos acrescentar que a ideia de Justiça comporta proporcionalidade, isto é, deve haver um certo equilíbrio entre crime e castigo, e é justamente a ausência desta proporcionalidade que torna tão injusta a pena aplicada a Wesley Crusher.

Portanto, acredito que Picard falhou miseravelmente em seu discurso de defesa. Ele não deveria ter implorado para que um membro de sua tripulação constituísse uma exceção à regra (uma regra que matou e continuará a matar muitos outros), o que é vergonhoso. Ele deveria ter exposto a ideia universal de Justiça, que requer proporção ou equilíbrio entre crime e punição, e que há de ser a base de todas as leis positivas, pois do contrário estas últimas degeneram em mera injustiça institucionalizada. Mas a grandiosidade de Picard como capitão parece estar na proporção inversa de suas capacidades para a advocacia. 

De qualquer forma, no final Wesley é absolvido pelo poderoso alienígena guardião daquele paraíso de inúteis. Mas considerando o péssimo nível do discurso de defesa de Picard, acredito que a absolvição se deu por benevolência, e não por convencimento racional. Afinal, embora não fosse Deus, a tal entidade alienígena super poderosa certamente queria se parecer com Ele...







NOTAS

(1) Embora eu tenha carinho e admiração por Picard, devo admitir que, em minha opinião, poucos personagens fictícios modernos conseguem representar, como o capitão James T. Kirk interpretado por William Shatner, aquele que é o mais excelso ideal de formação humana, e que se destina a tornar o indivíduo "constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito" (JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. 2010, p. 13), ou simplesmente a prepará-lo "para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações" (JAEGER, op.cit., p. 30. O trecho é tirado da Ilíada, canto IX, verso 443). Em meu modo de avaliar, o James T. Kirk de William Shatner é um destes poucos epítomes do perfeito equilíbrio entre a inteligência e a ação, da perfeita união entre virtudes físicas e espirituais (que se subdividem em morais e intelectuais). Comparado a esta versão do capitão Kirk, o capitão Picard sempre me pareceu mais unilateral, rivalizando com Kirk apenas no quesito intelectual. Como homem de ação, Picard é inteiramente subjugado por Kirk. 


(2) E esta parece ser uma outra constante em Star Trek: a tendência em confundir Deus com máquinas avançadas ou alienígenas poderosos. Esta insistência em sempre explicar o metafísico pelo simples físico é um dos traços que mais me desagradam em Star Trek, e neste ponto (e talvez apenas neste), Star Wars mostra-se superior, ao menos em minha opinião.


(3) Aliás, aqui Picard ganhou alguns pontos em relação ao meu favorito Kirk, que em “A ira de Khan” pareceu pactuar com aquele utilitarismo grosseiro de Spock, quando este disse (sempre com seu pedante ar de sabedoria) que “o interesse de muitos se sobrepõe ao interesse de poucos”. Ora, para perceber que semelhante regra, considerada em si, não tem qualquer valor moral, basta nos perguntarmos: e se este interesse de muitos for um interesse sórdido, cruel, desumano? Mesmo nestes termos, ele deverá ter prevalência sobre o interesse justo, ainda que de poucos? Óbvio que não. Logo, o critério de decisão moral não pode ser o número de interessados, mas a natureza do interesse. E para sabermos que tipo de natureza possui o interesse (se é bom ou mau), então devemos escolher um princípio moral que funcionará como critério de escolha, princípio este que não pode ser definido em termos aritméticos, sob pena de cairmos em um círculo vicioso. Afinal, acabamos de provar que o número de interessados não oferece qualquer critério seguro de julgamento moral. A democracia pode ter seu valor enquanto processo de escolhas políticas, mas não enquanto mecanismo de definição de princípios morais (aliás, neste assunto toda forma de governo é insuficiente). O sábio capitão Kirk, que sempre soube equilibrar sua racionalidade e seu coração (diferentemente do seu  arrogante amigo vulcano metido a guru) deveria saber disso. 
Esta falha de Kirk parece ter sido corrigida no filme "Em busca de Spock". Já ao final, quando Spock é resgatado, este questiona a Kirk o motivo de ele ter se arriscado tanto para salvá-lo. Kirk responde, invertendo a máxima proferida por Spock na conclusão de "A ira de Khan": "porque as necessidades de um se sobrepõem às necessidades de muitos". Com isso demonstra-se que o critério não pode ser aritmético, quantitativo, conforme pensava Spock. O critério há de ser qualitativo, tendo em conta a própria natureza dos interesses ou necessidades em questão, e não o número de necessitados ou interessados. Portanto, a depender da natureza do interesse/necessidade, tanto a maioria quanto um único indivíduo podem adquirir a prevalência moral. 
Por isso, seria tão correto dizer que "as necessidades de muitos se sobrepõem às necessidades de poucos, ou de um só", quanto dizer "as necessidades de um se sobrepõem às necessidades de muitos". Tais sentenças não são verdadeiras máximas, mas apenas regras particulares igualmente válidas a depender das circunstâncias. Elas pressupõem a definição do valor das necessidades às quais se referem. Esta definição, por sua vez, há de ser feita a partir de algum verdadeiro princípio moral, como por exemplo a fórmula do imperativo categórico de Kant.

(4) Kirk sabia disso. Vide seu discurso na conclusão do episódio “The Omega glory”.

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