quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O triunfo do mau gosto

Há algum tempo, Snyder anunciou que a sequência de Man of Steel contará com a participação de Batman. A princípio, esta seria uma grande notícia, pois sou da opinião de que a maior dupla de heróis dos quadrinhos certamente merece uma versão cinematográfica. O problema é que Snyder também anunciou que a HQ que irá servir de guia para o filme será a “The Dark Knight Returns” – aquela patética tentativa de Frank Miller de escrever uma história chocante e adulta, e que alcançou grande sucesso comercial e de crítica, provando, assim, o quão imbecil é a maior parte da humanidade.

Não bastasse isso, o site Comic Book Movie ainda anunciou que a venda da citada HQ aumentou consideravelmente após aquele anúncio, provando que as pessoas ainda prezam aquele lixo, como se fosse uma obra de arte.

Acho incrível o fascínio que as pessoas desenvolvem por tudo que é feio e caótico. Essa minissérie do Frank Miller apresenta uma das versões mais desprezíveis já imaginadas de Batman e Superman. Para início de conversa, ambos são intencionalmente mal desenhados. No aspecto psicológico, a situação é ainda pior. Superman é inexpressivo, excessivamente submisso e conformado. Batman é um sujeito velho, mas com temperamento de um garoto de 13 anos: rebelde, irritadiço e baderneiro. Aliás, "The Dark Knight Returns" deixa transparecer o temperamento juvenil de próprio autor. A velha paranoia adolescente está lá: o ódio contra o Estado e os políticos, ódio este que, disfarçado de justa indignação (Bruce Wayne é um homem indignado com o mundo a sua volta) na verdade apenas mascara sua aversão pueril a toda e qualquer forma de autoridade. Esta simples rebeldia imatura do autor alcança seu apogeu na visão caricata que o mesmo apresenta do mais paternal dos heróis, o Super-homem, que aqui é um sujeito moralmente fraco e submisso. Assim, na figura deste patético Super-homem, Miller identifica intencionalmente a atitude do liberal-conservador que respeita as regras jurídicas e instituições estatais, com a de um conformista destituído de presença e personalidade. E todos aplaudem e acham bonito.

Com base nisso, é fácil de perceber que “The Dark Knight Returns” não passa de um verdadeiro manifesto de ódio ao Superman, e a tudo aquilo que ele representa: sobriedade, equilíbrio, razoabilidade, reverência à justiça da razão e à ordem. E, por isso, fico extremamente preocupado com a ideia de se fazer um filme do Superman “inspirando-se” naquele trabalho de Miller. Snyder já afirmou que a sequência de “Man of Steel” não será uma adaptação daquele trabalho, mas que ele servirá apenas para “ajudá-los a contar aquela história”. Ou seja: de qualquer forma, o trabalho de Miller irá influenciar o andamento da história do filme. Assim, teremos um filme do Superman cujo ponto de partida é uma caricatura grotesca dele próprio.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Man of Steel, Mark Waid e dilemas morais

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Como muitos devem saber, o novo filme do Superman, Man of Steel, tem provocado muitos debates de natureza ética. E não é para menos. Ao longo dos anos, Superman se constituiu na representação fictícia definitiva de nossa consciência moral. Superman sempre faz o que é certo. Por isso escrevi recentemente em um artigo que

In my own opinion, I believe that there is not any imaginary hero who has become more mythological than Superman, in our day. In fact, he can be easily considered the archetype of modern superhero, and all the others superheroes are, in essence, a variation of him, according to Christopher Knowles (2008: 140); but much more than that, I even affirm that never has there existed a hero in history – and here I refer even to the great heroes in Homeric poems – who represented or represents our moral convictions, in such a perfect way. For Superman, above all, appears in popular imagination as a man truly good, in moral sense. In general human conscience, the “super” in his name does not represent only physical power; above all, it refers to his incredible moral superiority. Therefore, the myth of Superman reveals through the expressive language of his adventures, our more universal moral convictions*

Por estas razões, não é de se admirar a capacidade que Superman possui de provocar, no público, debates que problematizem questões de ordem moral. O escritor Mark Waid, um profundo admirador do Superman, se abalou profundamente com o desfecho do filme, onde Superman, para salvar pessoas inocentes, tira a vida de Zod. As impressões de Mark Waid foram documentadas pelo próprio:

Superman wins by killing Zod. By snapping his neck. And as this moment was building, as Zod was out of control and Superman was (for the first time since the fishing boat 90 minutes ago) struggling to actually save innocent victims instead of casually catching them in mid-plummet, some crazy guy in front of us was muttering “Don’t do it…don’t do it…DON’T DO IT…” and then Superman snapped Zod’s neck and that guy stood up and said in a very loud voice, “THAT’S IT, YOU LOST ME, I’M OUT,” and his girlfriend had to literally pull him back into his seat and keep him from walking out and that crazy guy was me. That crazy guy was me, and I barely even remember doing that, I had to be told afterward that I’d done that, that’s how caught up in betrayal I felt. And after the neck-snapping, even though I stuck it out, I didn’t give a damn about the rest of the movie.**

Antes de tudo, gostaria de dizer que Mark Waid é um dos meus escritores favoritos, e acredito que Kingdom Come não seja apenas uma das melhores histórias do Superman, mas uma das melhores HQ’s de todos os tempos. Mas acho que as negativas reações histéricas de Waid diante de Man of Steel não têm uma razão de ser, ao menos naquilo que diz respeito ao desfecho do filme. Em Man of Steel, Superman é posto diante de uma situação que não poderia exigir dele outro comportamento: ou ele matava Zod, ou ele permitia que Zod matasse pessoas inocentes. Este estranho fetiche – que Waid parece adotar – pelo imperativo absoluto do “não matarás” parece ter confundido a cabeça de alguns leitores do Superman. Sim, Superman não mata. Mas jamais devemos perder de vista que o objetivo do Superman é sempre fazer o bem, fazer o que é justo, e repudiar o mal e as injustiças. E há circunstâncias nas quais a justiça pode exigir uma morte. Portanto, o dever absoluto do “não matarás” precisa de complemento: “não matarás injustamente”. O final de Man of Steel é um excelente exemplo disso. Se numa determinada circunstância a justiça não pode ser honrada senão através da morte de um injusto, então é justo que o injusto morra. Em Man of Steel, Superman fora colocado em uma situação onde sua omissão em tirar a vida de Zod resultaria na morte de outras pessoas, e, assim, ele seria indiretamente responsável pela morte daquelas pessoas também. Isto é: ele próprio cometeria injustiça. Portanto, ele tinha que escolher entre o assassino Zod e entre aquelas pessoas inocentes. E ele escolheu, acertadamente, as pessoas inocentes. Isso não é utilitarismo. Superman não matou um homem para propiciar a felicidade a uma maioria, mas matou um homem porque este era o único meio de repelir, naquelas circunstâncias, a injustiça que este mesmo homem queria deliberadamente cometer. Zod poderia estar ameaçando a vida de um único homem; a decisão do Superman teria que ser exatamente a mesma. Logo, não se trata de utilidade ou de números, mas apenas de repelir o ato injusto pela única via possível naquelas circunstâncias. Por todas estas razões, eu gostaria de perguntar ao Mark Waid, usando um exemplo análogo: 

"Sr. Waid, vamos supor que o Superman esteja diante de um dilema moral. De um lado ele tem um tremendo genocida, e de outro um homem inocente. Em razão de circunstâncias que fogem ao seu controle, ele NÃO PODE SALVAR OS DOIS. Tem que escolher. Quem o Superman, de acordo com seus padrões éticos, salvaria?". 

Mark Waid deveria responder: "Superman salvaria o homem inocente, pois o injusto não possui o mesmo mérito que o justo; e se o Superman se abstivesse, o justo morreria, e então o Superman é que estaria cometendo injustiça". Esta é a resposta que qualquer homem, interpretando as motivações do Superman, e que fosse possuidor de uma consciência moral, poderia dar, pois o Superman é justamente isso: uma representação de nossa consciência moral. O problema é que o Waid respondeu este meu dilema, ainda que indiretamente, e a resposta dele foi extremamente ofensiva - não comigo, é claro; mas com o próprio Superman. Em recente entrevista dada ao site Voices from Krypton, Waid disse:

My answer is I wouldn’t have put him in that position. As a writer, and I could be wrong, I don’t think Superman is built for that kind of story.***


Vale dizer, Waid declarou – talvez sem ao menos perceber as sérias implicações de sua afirmação – que o Superman não é um personagem apto a responder dilemas éticos realmente difíceis. Pois eu – que levo esse personagem a sério – penso justamente o contrário: Superman talvez seja a melhor representação fictícia da consciência moral humana. O Superman é aquele que guia a humanidade através de seu exemplo, e se estamos diante de uma dúvida, de um pesado dilema moral, quem melhor do que ele para nos dar a resposta? Por outro lado, se Waid prefere ver o Superman lidando somente com situações irreais, e que não provoquem o menor esforço reflexivo por parte do público, então ele tira do personagem toda sua profundidade e valor, e o converte numa simples figura de entretenimento, na linha do Patolino, Pernalonga ou Supermouse. É claro que o mito do Superman comporta uma dimensão mais simples e alegre. Particularmente, eu gosto do Superman de Superfriends, e das aventuras mais inocentes da Era de Prata. Mas prefiro o Superman da graphic novel Peace on Earth. Certamente Waid também prefere. Afinal, Kingdom Come é basicamente um conto sobre moralidade e decisões difíceis no campo da ética. Mas então por que Waid se surpreende e protesta quando vê seu herói favorito tendo que tomar decisões difíceis e dolorosas, em prol da justiça?


* “Charity and Justice: a defense of altruistic ethics and political liberalism based on Schopenhauer’s philosophy and Superman’s myth”, in: http://thefreehold.us/?p=2164



*** http://voicesfromkrypton.net/man-of-steel-exclusive-talking-superman-with-mark-waid/

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Em defesa de Orson Scott Card, e um protesto contra o absurdo.


Acho que certos ativistas que lutam pelos direitos dos gays já estão indo longe demais. Agora querem proibir o escritor Orson Scott Card de escrever histórias do Super-homem, porque o sujeito em questão é um membro da National Organization for Marriage, um grupo que faz lobby nos EUA para manter a proibição de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Basicamente, o argumento que alguns ativistas* contrários a Card utilizam é o de que o Super-homem representa o que há de melhor nos homens, e como eles não consideram o sr. Card um bom homem (porque sustenta opiniões diferentes das deles), então ele não seria digno de escrever uma história de um homem que representa o bem. Há muito tempo eu não leio uma bobagem tão grande. Explico.Vamos assumir, só por um momento, que o sr. Card seja um sujeito maléfico, só porque considera errado que os gays assumam matrimônio entre si. Agora imagine se generalizássemos este julgamento, segundo o qual apenas bons homens podem escrever histórias sobre o Super-homem, e o transformássemos em lei: então TODOS os escritores deveriam passar por um teste de moralidade e excelência ética. Agora vamos assumir que semelhante teste seja possível. Se aprovados, então os escritores testados poderiam escrever o Super-homem; se reprovados, então não poderiam. Fácil concluir que, se isso fosse posto em prática, o personagem já teria sido esquecido, porque jamais surgirá um ser humano tão bom assim. Pois a imperfeição moral do gênero humano é um fato incontestável. Portanto, o protesto em si já é absurdo, porque se baseia em um princípio absurdo. 

Mas vamos analisar o modo pelo qual estes ativistas estão agindo: encontraremos mais absurdos. Aqueles que não concordam com as opiniões de Card estão organizando um boicote contra ele, que compreende desde simples campanhas para que as pessoas não comprem os trabalhos por ele escritos - o que é tolerável e permissível, embora injusto -, até petições dirigidas à DC Comics para que a empresa demita o homem**. Há até uma distribuidora de quadrinhos que já declarou que não irá receber as edições assinadas por Card***. Basicamente, querem que o sujeito perca o emprego e que seja impedido de trabalhar por causa das convicções políticas e morais que sustenta. Aqui não há somente absurdo: há também hipocrisia descarada, sobretudo se considerarmos que os responsáveis por esta verdadeira caça a Card são justamente aquelas pessoas que exigem, em seus discursos, tolerância e liberdade de expressão. Tais fanáticos deveriam fazer o que todas as pessoas lúcidas de espírito sempre fizeram ao analisar um trabalho de ficção: saber distinguir o autor de sua obra. Por acaso ler as HQ's escritas por Alan Moore ou Grant Morrison implica apoiar o uso eventual de drogas alucinógenas – simplesmente porque eles já alegaram tê-las usado - e adoção de crenças ocultistas – que eles afirmam cultivar? Creio que não. (Particularmente, eu aprecio muito os trabalhos de Moore e Morrison, mas como homens, considero-os uma dupla de patetas exóticos). Os ativistas que lutam pelo direito de pessoas gays se casarem deveriam aplicar o mesmo raciocínio em relação a Card. E eu mal posso esperar pra ler estas histórias do Super-homem assinadas por ele. Se forem ruins, eu simplesmente direi: “são histórias ruins”. Se forem boas, eu simplesmente direi: “são histórias boas”. Só isso. Sem essa de "Card é moralmente mau", "Card é indigno", "Card, é um homofóbico maldito", etc.

* Posso citar Glen Wedon (http://www.npr.org/2013/02/17/172229592/man-of-tomorrow-superman-orson-scott-card-and-me) e e Andrew Weeler (http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/feb/14/orson-scott-card-superman-boycott)

** https://www.allout.org/en/actions/dccomics-osc

*** Trata-se da Zeus Comics, cf http://www.newsarama.com/comics/orson-scott-card-superman-controversy.html