sábado, 6 de novembro de 2010

Grandes Batalhas dos Quadrinhos: Super-homem versus Capitão Marvel, 4ª Parte

Ainda no mesmo que Reino do Amanhã (1998), é publicada uma nova elseworld: “Superman – Distant Fires” (escrita por Howard Chaykin e desenhada por Gil Kane).


Assim como Reino Amanhã, “Distant Fires” se passa num futuro possível, igualmente apocalíptico. Graças a um desastre nuclear, quase toda a vida na Terra é exterminada. Superman acredita ser o único remanescente. No entanto, como resultado do gigantesco desastre, ele perde seus poderes, e passa a vagar pelo globo, a procura de respostas e de possíveis sobreviventes. Em sua jornada, confronta seres monstruosos devido a mudanças genéticas decorrentes do desastre nuclear. Após meses de viagem, acaba encontrando a Mulher-Maravilha e, para sua surpresa, descobre que ela vive em uma espécie de “aldeia” juntamente com outros heróis (e até vilões) sobreviventes, os quais, agora sem poderes, construíram sua própria sociedade para se defender dos monstros mutantes. Entre os “aldeões”, estão: Ajax, Wally West (Flash), Guy Gardner, o Coringa (cujocaráter está totalmente alterado), Cheetah, Scott Free (Sr. Milagre), Grande Barda, e... Billy Batson, outrora Capitão Marvel! A chegada do Superman causa intensa alegria, e ele não tarda a se tornar o líder.

E aqui o escritor Howard Chaykin mostra-nos um lado obscuro do Billy Batson, jamais explorado antes: um intenso senso de competitividade com o Superman, o qual desembocaria na mais terrível inveja. Diante do sucesso tanto político quanto romântico do Superman (ele e Mulher-Maravilha até se casam), Batson podia apenas desabafar no seu íntimo: “agora, mesmo sem poderes, ele ainda toma para si tudo aquilo que quero! Ele sempre foi o número um... e eu, um distante número dois!”.
Dominado pela amargura, Batson isola-se numa floresta, onde tenta invocar seus antigos poderes. E, ao gritar “Shazam!”, ele torna-se novamente o Capitão Marvel. Mas seu triunfo dura pouco: logo o mesmo raio o atinge novamente, e ele perde seus poderes. Batson repete o mesmo ritual, em segredo, durante os dias seguintes. Paralelo a isso, o raio mágico invocado por Batson provoca um insensível desequilíbrio natural, o qual gera duas conseqüências: o retorno dos poderes dos outros heróis, e uma progressiva agressão ao planeta Terra. Com seus poderes recobrados, Superman e Marvel se envolvem num dissídio político: Superman quer continuar a servir a humanidade e a defender o planeta, conforme à velha postura heróica; Marvel, ao contrário, quer tomar as rédeas da humanidade ele mesmo. A antiga sociedade então se dissolve em dois grupos antagônicos: um liderado por Superman, e o outro, por Capitão Marvel. No entanto, as intenções de Marvel iam além. Por meio de uma emboscada, Marvel e alguns comparsas matam Mulher-Maravilha, Ajax e Cheetah. Assim, ele finalmente consegue forçar um confronto decisivo com o Superman. Em meio à luta, embora a vantagem esteja aparentemente com o Superman (Marvel aparece com o rosto bastante ferido durante a briga), o que decide a batalha é um inesperado acidente: o trovão que havia conferido poderes a Batson atinge-o novamente, levando não somente seus poderes, mas também sua vida.
 

O grande mérito de “Superman – Distant Fires” é o fato de que Howard Chaykin – que escreveu também o ótimo “Liga da Justiça: sociedade secreta” –, além de nos proporcionar uma belíssima (embora triste) história, ressaltou essa rivalidade de uma maneira jamais imaginada. De fato, a história toda é sobre uma suposta íntima inimizade que havia permanecido secreta até mesmo para os leitores. Como o próprio Superman constata durante a trama: “nos velhos tempos, nunca fomos chegados... e eu sempre senti que, por trás daquele sorriso amigável, ele sempre ocultava uma montanha de ressentimento por mim”.

domingo, 31 de outubro de 2010

Grandes Batalhas dos Quadrinhos: Super-homem versus Capitão Marvel, 3ª Parte


A batalha mais épica entre as duas lendas só ocorreria em 1998, em Reino do Amanhã (Kingdom Come). Com desenhos de Alex Ross e história de Mark Waid, esse é não somente o mais belo embate entre os dois campeões do heroísmo, mas, em minha opinião, é o momento mais épico de toda a história dos quadrinhos. “Reino do Amanhã” se passa num futuro possível, dominado por anti-heróis irresponsáveis (em verdade, uma clara crítica às tendências dos anos 90). O Super-homem, decepcionado com a humanidade acolhedora do método “anti-herói”, decide retirar-se, e muitos heróis da velha guarda seguem o mesmo exemplo. Porém, um acontecimento catastrófico no Kansas chama a atenção do Super-homem, que então decide voltar para tentar guiar a humanidade mais uma vez. Sua volta inspira o retorno de toda a Liga da Justiça; contudo, é gerada uma violenta tensão entre os velhos heróis e os jovens anti-heróis. No entanto, a grande ameaça ao Super-homem é Lex Luthor (agora fingindo-se de filantropo): pois o coringa de Lex é ninguém menos que o então adulto Billy Batson, agora totalmente obediente graças aos subterfúgios psicológicos e fisiológicos de Lex Luthor. O clímax da história é justamente o combate final entre os dois peso-pesados, Superman e Capitão Marvel. O início da luta é apoteótico: Superman é atacado sem saber pelo quê, e quando se dá conta, está aos pés de um sorridente Capitão Marvel.


A luta se segue entre os dois, em meio a uma gigantesca batalha entre heróis e anti-heróis. A postura do Super-homem é mais defensiva: a todo momento procura convencer Marvel de que este deve cooperar, ajudá-lo a conter a guerra entre as diferentes gerações. Mas suas súplicas são inúteis: Marvel apenas responde com socos, que jogam Superman a metros de distância.

Quando Superman finalmente parece obter algum controle sobre a situação, disparando a visão de calor enquanto força um diálogo, Marvel então resolve apelar: grita “Shazam!”, e se afasta na velocidade de Mercúrio. O raio mágico acerta em cheio Superman, que se ajoelha agonizante. Com um sorriso sádico, Marvel continua a invocar o raio mágico, acertando o Super-homem tantas vezes, a ponto de este começar a sangrar.


Finalmente, Superman reage e, logo após ouvir novamente o nome “Shazam”, movimenta-se em super-velocidade, conseguindo paralisar Marvel, impedindo-o de se afastar do raio. Resultado: Capitão Marvel retorna a forma de Billy Batson, ficando à mercê do Super-homem.
Confesso que, em termos de quadrinhos, até hoje nada me impressionou mais do que a história de Kingdom Come. Pra mim, ela representa o ápice do heroísmo, e justifica por si só o meu fascínio por essas duas figuras: é que somente Super-homem e Capitão Marvel poderiam protagonizar um evento tão grandioso. 

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Grandes Batalhas dos Quadrinhos: Super-homem versus Capitão Marvel, 2ª Parte

Em 1978, na revista All-New Collectors' Edition #C-58, há um dos combates mais longos entre Superman e Capitão Marvel, e um dos poucos realmente conclusivos.


Com história de Gerry Conway, e arte de Rich Buckler e Dick Giordano, os dois heróis mais poderosos dos quadrinhos se enfrentam em razão de um plano do feiticeiro chamado Karmang. Karmang planeja destruir a Terra-1 (lar do Superman) e a Terra-S (lar do Capitão) e, para tanto, é necessário antes destruir os dois heróis. E que maneira melhor senão jogando-os um contra o outro? Com a ajuda de Adão Negro e da entidade conhecida como Quarrmer – que havia tirado uma parcela dos poderes do Super-homem, na edição 234 e ss. de “Superman” (1971) – Karmang consegue corromper o Super-homem e Capitão Marvel... e a luta entre os dois tem início, na Terra-1. E que surra leva o pobre Capitão Marvel! Nesta história, a superioridade do Superman é tão notória, que até mesmo o “super-sopro” chega a jogar Marvel a alguns metros. Em outro momento, uma “simples” explosão sônica provocada pelo grito do Super-homem consegue afetar o Capitão Marvel. Como última alternativa, Marvel chega a cogitar aplicar o truque do raio mágico sobre o Superman. O mago Shazam então intervém no pensamento de Marvel, e diz que é necessário que a luta continue. Finalmente, Superman ataca Marvel com extrema brutalidade, e Marvel cai desacordado. Ao ver Marvel aparentemente morto, Super-homem cai em desespero e sua sanidade retorna. Então os dois heróis se juntam contra o verdadeiro inimigo.



A desculpa criada por Gerry Conway para a vergonhosa surra do Capitão Marvel, é que este último ficaria enfraquecido na Terra-1. 


Outra luta marcante aconteceria em 1984, no título “All-Star Squadron”, n. 36 e n. 37.



Só que aqui o Capitão Marvel enfrentaria o Super-homem da “Terra Paralela”, pertencente à Sociedade da Justiça da América, e atuante em plena segunda guerra mundial. Nesta história – escrita por Roy Thomas – o Capitão Marvel é tirado da Terra-S pelo próprio Adolf Hitler, graças à sua tecnologia nazista. Marvel é separado de Billy Batson, e se torna um super soldado nazista. No primeiro encontro entre Superman e Capitão Marvel, este último sai vitorioso. Os dois trocam golpes ao longo de 3 páginas e, por fim, Marvel aplica um soco extremamente poderoso que deixa Superman tonto, no chão. Embora ele não tenha ficado completamente desacordado, a vitória foi claramente do Capitão Marvel.

O choque foi tamanho para o Super-homem, que ele passou boa parte da edição seguinte (# 37) meio perturbado. Mas já na edição 37 os dois se enfrentariam novamente – embora de maneira mais breve – e dessa vez para salvar a sede do parlamento inglês. Capitão Marvel fora enviado por Hitler para que jogasse uma bomba extremamente letal sobre o parlamento inglês, mas Superman chega a tempo para interceptá-lo. Contudo, muito traiçoeiramente, Marvel dá um ponta pé na bomba antes da luta começar; assim, a bomba segue velozmente em direção ao parlamento. Superman então age rápido: aplica um soco em Marvel (que, a julgar pela fala do Super-homem – “pasted him one...” – fica temporariamente fora de combate) e voa para deter a bomba. Com a ajuda do Lanterna Verde (Alan Scott) e da Mulher-Maravilha, ele consegue explodir a bomba antes que ela detone o parlamento, impedindo, assim, a concretização do plano de Hitler. 


No entanto, esta vitória do Superman foi extremamente tímida se comparada àquela do Capitão Marvel, registrada na edição anterior. Obviamente, o domínio de Hitler sobre o Capitão Marvel não dura muito, e ele logo se une à Sociedade da Justiça para lutar contra os nazistas.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Grandes Batalhas dos Quadrinhos: Super-homem versus Capitão Marvel, 1ª Parte

É bastante provável que não exista maior rivalidade nos quadrinhos do que aquela entre Super-homem e Capitão Marvel. E isso ocorre tanto por razões míticas (relativas à mera esfera dos quadrinhos) quanto por razões reais (que transcendem os quadrinhos).

Pela primeira classe de motivos, a rivalidade existe por se tratar de dois dos mais poderosos seres jamais imaginados nos quadrinhos; mas não só por isso: o fato é que seus poderes (e até mesmo aparência) são muito similares. Ambos voam, possuem incrível velocidade, invulnerabilidade e força física monstruosa; e exercem esses poderes no mesmo nível, praticamente. Contudo, é quase impossível para a maior parte dos fãs de quadrinhos deixar de questionar: “mas quem é o mais forte?”.

A segunda classe de motivos tem sua razão direta na primeira classe. Ocorre que o Super-homem é o primeiro super-herói dos quadrinhos, cuja estréia, na revista Action Comics, data de junho de 1938. Diz-se que o sucesso foi instantâneo, surgindo a partir disso a chamada “Era de Ouro” dos quadrinhos. Quase dois anos depois, surgiria o Capitão Marvel, em fevereiro de 1940, “pegando uma carona” no sucesso do Super-homem. Logo as semelhanças entre os dois personagens ficaram evidentes, e a competição pela popularidade ficou acirrada. Foi quando a National Periodical (atual DC comics), que detinha os direitos sobre o Superman, resolveu interpor uma ação judicial face a Fawcett Comics, alegando ser o Capitão Marvel um plágio do Super-homem. A batalha judicial estendeu-se de 1941 até a primeira metade da década de 50, quando a Fawcett Comics acabou desistindo da luta nos tribunais, em razão da perda de popularidade que o próprio Capitão Marvel sofreu a partir do final da década de 40. A empresa decidiu que o personagem já não era lucrativo o suficiente para motivar o pagamento das custas judiciais e, desistindo do pleito, acabaram por concordar em não mais publicar o Capitão Marvel, e ainda indenizar a autora da ação.

Esclarecido estes pontos, agora é possível entender o quão significativos são os embates ocorridos entre estas duas majestosas lendas, ainda que num mundo fictício.

Pode-se dizer que o primeiro grande encontro entre os dois heróis não envolveu o Capitão Marvel que conhecemos, mas uma outra versão do mesmo: o Captain Thunder. Essa luta ocorreu na revista Superman n. 276, de junho de 1974. Realmente não sei por que a DC não colocou o próprio Capitão Marvel pra enfrentar o Superman, sendo que a mesma DC já detinha os direitos sobre o personagem e havia começado a publicá-lo em 1972. De qualquer forma, optaram por utilizar um personagem praticamente idêntico.


Capitão Thunder tinha os mesmos poderes que Marvel. Seu alter-ego também era um garoto, mas chamado Willie Fawcett. Contudo, seus poderes haviam sido cedidos por um velho Shaman, e derivavam diretamente da natureza (como por exemplo, a “dureza” do diamante, e o “poder” do tornado). Para se transformar, Willie tinha que gritar “Thunder!”, ao invés de “Shazam!”. O uniforme era exatamente o mesmo, com exceção do símbolo no peito. Enfim, as semelhanças são tão grandes, que parece lícito a qualquer leitor considerar aquela uma autêntica batalha entre Superman e Capitão Marvel. Na história – escrita por Elliot S! Maggin e desenhada por Curt Swan – o Capitão Thunder aparece em Metrópolis após confrontar, em outra Terra, a “Liga do Mal”. Contudo, ele havia sido corrompido pelos malfeitores da “Liga do Mal”, passando a agir como criminoso. Não demoraria até se confrontar com o Super-homem. A batalha é épica, com direito a super-socos e arremessos de montanhas; e os dois se mostram bastante equiparados.


Por isso, Super-homem induz Capitão Thunder a dizer a palavra mágica, para que volte a ser Willie Fawcett. Deduz que o garoto pertence a uma outra Terra, e que só o Capitão Thunder, com sua sabedoria natural, poderia descobrir o caminho de volta. Assim, pede a Willie que se transforme de novo. Mas desta vez Super-homem consegue imobilizá-lo até que recupere a razão. Ao final, Capitão Thunder compreende a situação e, proferindo a palavra “Thunder”, consegue retornar a sua dimensão.

Mas o primeiro encontro “verdadeiro” aconteceria em Justice League of América n. 137, de dezembro de 1976, na história “When Titans Clash!”, de E. Nelson Bridwell, e arte de Dick Dillin. Contudo, é preciso admitir que, a despeito do sensacionalismo produzido pela belíssima capa (uma das minhas favoritas!), a luta entre os dois heróis deixa a desejar.

A história é o seguinte: o vilão King Kull usa kriptonita vermelha para alterar o caráter do Super-homem, deixando-o extremamente furioso. Capitão Marvel aparece então como a última esperança: ele provoca o Super-homem, e quando os dois estão prestes a se chocar, Marvel grita “Shazam!”. Como é sabido, a magia é uma das fraquezas do Super-homem, embora a intensidade desta “fraqueza” seja bastante variável conforme o escritor. Nesta história, por exemplo, o raio não chega a ferir o Super-homem, mas apenas destrói os efeitos maléficos da kriptonita vermelha. No processo, Marvel se transforma em Billy Batson em pleno vôo, e o Super-homem tem que salvá-lo. O “confronto” durou menos de 1 página, mas nem por isso deixou de ser um momento clássico.


segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Super-homem como arquétipo


A palavra “arquétipo” é comumente relacionada às “idéias” ou “formas” em sentido platônico, e representam “o modelo ou exemplar originário ou original de uma série qualquer” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia). No mundo dos super-heróis, não é incomum referir-se ao Super-homem como um arquétipo; e essas referências justificam-se plenamente diante da definição da palavra “arquétipo” e do lugar que a figura do Superman ocupa na cultura mundial. Pois me parece evidente que o Super-homem traz consigo a imagem universal do super-herói, de modo que, quando se fala de super-heróis sem precisar exatamente a quais super-heróis estamos nos referindo, nossa imaginação recorre imediatamente àquela velha imagem do sujeito de capa vermelha, invulnerável a balas, e capaz de levantar grandes objetos com as forças do próprio corpo. Isso é o mesmo que dizer: “a figura arquetípica do super-herói identifica-se com o Super-homem”.

Contudo, provocou-me certa dose de inquietação a história “New Jack City”, do herói Supremo, escrita pelo ótimo Alan Moore. Nesta fantástica história, Supremo (o qual é, como todos sabem, uma “cópia” da “ideia” do Super-homem) encontra o próprio Jack Kirby, ou simplesmente “Rei” (como ele mesmo se apresenta), mostrado como uma poderosa entidade capaz de materializar a própria imaginação. No interessantíssimo diálogo travado entre Supremo e o “Rei”, este último chama Supremo de “Wylie”. Ao ser questionado sobre o que seria um “Wylie”, o “Rei” responde: “ah por causa desse cara Phil Wylie. Ele escreveu um livro chamado ‘Gladiador’. Meio que introduziu o arquétipo do super-homem, que por acaso é você”. 

Ora, estamos aqui diante de um contra-senso. Pois de acordo com sua definição, um “arquétipo” não pode ser derivado. E é justamente isso que Alan Moore parece nos dizer com o particípio passado “introduced”: o arquétipo do super-homem teria sido derivado do personagem do romance “Gladiador”. Então de duas uma: ou o Super-homem é derivado ou é um arquétipo. Os dois não pode ser, sob pena de incorrermos numa contradictio in adjecto. Se ficarmos com a primeira alternativa, então deveremos, por necessidade tanto lógica quanto ontológica, pressupor um arquétipo do qual o Super-homem seja uma cópia. Contudo, o “Gladiador” não pode ser esse arquétipo, pois o “Gladiador” é apenas um sujeito com habilidades sobre-humanas. Portanto, ele pode ser reduzido a outras fontes, tais como os heróis gregos, por exemplo (e até mesmo bíblicos). Nesse sentido, o nome “Gladiador” não é de forma alguma arbitrário, pois o personagem do romance seria apenas uma reminiscência do típico herói de tradição greco-romana, revivido em nossos dias e sofrendo, por consequência disso, o influxo da ficção científica ao invés da magia (o personagem central de “Gladiador”, Hugo, recebe seus poderes a partir de experimentos científicos). De fato, Hugo é apenas um herói no sentido greco-romano: é um detentor de incríveis habilidades sujeito às tragédias inerentes à vida, sem contudo preocupar-se necessariamente com o aspecto ético de suas ações. Não era, pois, a procura incessante pela “verdade e justiça” um elemento determinante no conceito do herói de tradição pagã. Por outro lado, o é na determinação do conceito de “super-herói”. Em verdade, é impossível dissociar o aspecto ético do conceito universal de super-herói, pois este não é somente alguém superpoderoso, mas é sobretudo aquele que combate os “super-vilões”, para preservar todos aqueles valores morais que tanto prezamos, tais como a verdade, a justiça, e, sobretudo, a vida humana. Mas essa noção de super-herói, que é universal, só se inicia com o Super-homem. Ele é, portanto, o arquétipo do super-herói. Poderíamos dizer também, como Moore, o “arquétipo do super-homem”, com “s” minúsculo, pois sendo o Super-homem o arquétipo do super-herói, torna-se perfeitamente concebível a identificação entre “super-homem” e “super-herói”. Christopher Knowles disse, com razão, que todos os Super-heróis derivam, de alguma forma, do Super-homem; isso é o mesmo que dizer: todo super-herói é um super-homem (cf. KNOWLES, Christopher. Nossos deuses são super-heróis). Referências desse tipo (que reconhecem no Super-homem seu status de arquétipo) são encontradas nos próprios quadrinhos. Posso citar o próprio Supremo de Alan Moore, com seu conceito de “Supremacia”, onde há o "supremo Supremo" e seus "avatares". E em “Crise Infinita”, de Geoff Johns e Jerry Ordway, o jovem Lex Luthor declara: “Por alguma razão que não posso explicar ou entender, e provavelmente nunca poderei... tudo vem do Superman”. Em “Crise nas Infinitas Terras”, de Pérez e Wolfman, o Super-homem da “terra paralela” é lembrado como “a lenda que deu origem a todas as outras”.

Chegamos então à noção de “super-herói”, a qual, conforme o exposto, deve ser distinguida, senão in toto genere, ao menos in specie, da noção de “herói”. Só assim podemos encontrar a origem das críticas descabidas que procuram converter o Super-homem em um plágio do “Gladiador”: confundem um simples exemplo de um gênero com um arquétipo, o qual deveria ser a “raiz” da cópia. Mas é claro que o personagem do “Gladiador” não é um arquétipo. Mas o Super-homem, indiscutivelmente, é! Isso quer dizer que à noção de “super-herói” deve corresponder um arquétipo diferente da mera noção de “herói”, ou de outra noção específica a partir do gênero “herói”; do contrário não haveria especificidade, e tudo se resolveria no gênero. Assim, por exemplo, ainda que “homem” seja uma espécie de “primata”, nem por isso o arquétipo de “primata” é o mesmo arquétipo para “homem”. E embora o "macaco" seja também uma espécie de "primata", assim como o "homem", nem por isso seus arquétipos devem ser comuns, caso contrário tudo se resolveria no gênero, como explicado. O “homem” deve, necessariamente, ter seu próprio arquétipo. O mesmo ocorre entre “super-herói” (espécie) e “herói” (gênero). O personagem de “Gladiador” resolve-se numa espécie de “Herói” que não ousamos apontar aqui categoricamente, mas que com certeza não é a de "super-herói". Vimos que ele é uma reminiscência dos antigos heróis greco-romanos, mas nem por isso resolve-se na mesma espécie daqueles. Apenas podemos afirmar que ele não é um herói greco-romano (embora seja muito próximo), e muito menos um “super-herói”. Consequentemente, a noção de “super-herói” nada tem a ver com o “Gladiador” e, portanto, sendo o Super-homem o arquétipo do super-herói, afirma-se aqui sua total independência do personagem do romance de Philip Wylie. Em outras palavras: o Super-homem é de espécie totalmente original, pois ele é o verdadeiro arquétipo do super-herói.

Isso explica porque o bom-senso sempre apontou personagens como o Capitão Marvel ou o Supremo como cópias do Super-homem, mas jamais a inteligência sadia acusou o Super-homem de ser cópia do personagem de “Gladiador”. Pois o Super-homem e aqueles dois heróis pertencem à mesma espécie, que é a do “super-herói”, sendo o Super-homem o arquétipo daquela espécie. Aqui nos utilizamos do termo “cópia” no sentido platônico, filosófico, e não propriamente jurídico. Mas vale tentar resolver uma outra questão: se o Super-homem é o arquétipo, então com que justiça acusam o Capitão Marvel ou o Supremo de plágios (ou seja, “cópias” em sentido jurídico) do Super-homem (sendo que, a rigor, tudo em matéria de super-herói seria igualmente derivado do Super-homem)? Aqui, a resposta é mais simples; e para isso não nos socorreremos tanto de Platão, mas de Aristóteles. Pois o fenômeno do plágio só pode ser compreendido a partir das noções de “substância” e “acidente”. O Capitão Marvel, em especial, trouxe consigo todos aqueles elementos que caracterizariam substancialmente o Super-homem, que o individualizariam. Quando nos referimos a características substanciais, queremos dizer: a típica figura do sujeito de aparência humana, que usa uma capa, que voa, que consegue levantar um carro com um sorriso no rosto, e receber tiros de revólver que ricocheteiam no símbolo que traz no peito. Em suma, todos aqueles elementos sem os quais o Super-homem seria uma coisa diversa daquilo que ele efetivamente é. Esses elementos formam a figura universal do super-herói e, repito, o Super-homem foi o primeiro a trazer em si todos estes elementos, pois ele é o arquétipo. Se esses poderes se devem ao status de alienígena, ou se são oriundos da concessão de um mago, isso é puramente acidental. O que definiu substancialmente - e não acidentalmente - a figura do Super-homem, foram aqueles elementos supracitados. O Capitão Marvel, portanto, aparece sim como uma cópia, um plágio, pois ele trouxe em si tudo que era substancial ao Super-homem, diferindo tão-somente no aspecto acidental. Um personagem como Batman, ainda que incluso na espécie “super-herói”, e portanto fosse “cópia” em sentido platônico, não foi em sentido jurídico (plágio). Pois embora fosse super-herói – cujo arquétipo é o Super-homem – não reproduziu substancialmente o Super-homem. O Batman individualizou-se; tinha a sua própria substância. O mesmo se pode dizer de super-heróis como Homem-Aranha, Flash ou Lanterna Verde. O Capitão Marvel, por outro lado, apenas adotou aquela imagem arquetípica do super-herói, sem inovar na sua substância. Poderíamos dizer, então, que o Capitão Marvel seria, em sentido filosófico, uma cópia quase perfeita do arquétipo ou, na expressão de Schopenhauer, uma “objetivação mais adequada" da Ideia. Assim também o Supremo, o Samaritano, Hyperion, etc. Por outro lado, infelizmente, o sentido jurídico desta “adequada objetivação” é bem menos nobre, e leva o nome de plágio. Isso explicaria por que, de um lado, os fãs do Super-homem possuem um fascínio natural por todas as “homenagens” ao seu herói favorito; e, por outro, que no passado a National Periodical (atual DC comics) tenha processado a Fawcett (editora do Capitão Marvel) sob a acusação de plágio. É que a perspectiva daqueles que contemplam idéias é muito diferente daqueles que contemplam o dinheiro, ainda que o objeto de apreciação seja exatamente o mesmo.


SUPLEMENTO: SUPERMAN BEYOND

Fizemos, ao longo deste artigo, referências a duas das mais importantes histórias dos quadrinhos, para confirmar nossa assertiva: Crise nas Infinitas Terras, de Marv Wolfman, e Crise Infinita de Geoff Johns. Contudo, somos obrigados agora a adicionar uma outra história - talvez a mais importante no sentido de abordar o tema do arquétipo do Superman. Trata-se de Crise Final, ou, mais especificamente, de uma de suas histórias correlatas: "Superman Beyond" ("Superman ao Infinito", na edição da Panini), de Grant Morrison. Aqui, Morrison se utiliza de artifícios meta-linguísticos para explicar a dimensão na qual se dá essa existência arquetípica do Homem de Aço, isto é, sua transcendência com relação a todos os outros personagens que habitam o "universo" dos quadrinhos e, consequentemente, limitados pelo mesmo. Mas o mesmo não se dá com o Superman, conforme mostrado por Morrison.

A história de "Superman Beyond" começa com o herói junto a sua esposa, Lois Lane, em um hospital. Lois está quase morta (devido a eventos ocorridos em Crise Final) e apenas Clark Kent consegue, secretamente, fazer seu coração continuar a funcionar, por meio de uma massagem de sua visão infravermelha. Neste momento ele é recrutado por uma monitora, Zillo Valla, para salvar o multiverso do "inimigo definitivo": o monitor maligno chamado Mandrakk.

De fato, esse é o maior mal que poderia ser enfrentado no mundo quadrinhos. Pois Mandrakk não é apenas um poderoso inimigo. Darkseid, por exemplo, é poderosíssimo; mas enquanto mero personagem do universo fictício dos quadrinhos, ele está imerso no multiverso. Os monitores, por outro lado, transcendem o próprio multiverso. Transcendem o espaço e o tempo no qual estão confinados os heróis e vilões da DC. Eles observam o multiverso a partir de uma dimensão muito superior, analogamente ao leitor que observa as páginas de um gibi. Os monitores habitam um mundo mais fundamental, e a sua história é uma "hiper-história" (aqui poderíamos retomar o conceito de 'hiper-tempo', já explorado por Mark Waid, e que traz também implicações para a consideração do Superman como arquétipo). Por isso, quando o Superman segue Zillo Valla na cruzada contra a ameaça de Mandrakk, ele atualiza um novo poder que já possuía potencialmente: a visão 4-D. Assim, o Superman visualiza as três dimensões do espaço conjuntamente com a quarta dimensão, o tempo. Isso faz com que ele atinja o nível de compreensão superior acerca do multivero. Importante ressaltar que, juntamente com o Superman, foram recrutados todos os "supercampeões" dos outros universos, isto é, todos os outros heróis que são cópias (no sentido platônico) do nosso Superman. Entre eles estão o Capitão Marvel de uma outra Terra e Capitão Adam, uma clara referência ao Dr. Manhattan, de Watchmen.

Mas a parte mais importante para a nossa investigação é o momento no qual Superman encontra, no Limbo, um livro que contém todos os livros possíveis. Lendo-o, descobre muito sobre o Monitor e o seu próprio significado no universo. Primeiramente, é revelado que o Monitor era, primordialmente, apenas uma consciência infinita, simples e absoluta (portanto, mais uma clara representação do Deus judaico-cristã no universo DC, tal como a Fonte e a Presença). Contudo, o Monitor encontra uma "falha" dentro do seu próprio coração. Ele cria uma "sonda" para investigar a "falha". E a "sonda" então descobre que essa "falha" é a própria vida, a história, o multiverso. Isto é, o multiverso se desenvolve dentro desta consciência infinita, que é o Monitor. A visão da vida e da história a ela inerente espalha-se então para os domínios do próprio Monitor, sua consciência pura se deixa influenciar pela "falha" que ele encontrou em seu próprio interior. Consequentemente, as contradições e complexidades inerentes à história dos multiversos também "contaminam" o Monitor, e ele próprio passa a assumir uma existência histórica dotada de contradições e complexidades (como dizia Nietzsche: "quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta pra você"). Resultado: a consciência, antes pura e simples, assume a forma de um mundo histórico constituído pela raça de Monitores, verdadeiros "hiper-deuses" (transcendem, portanto, qualquer "deus" do multiverso), descendentes diretos do Monitor original e absoluto, o definitivo panteão cujos indivíduos transcendem todo o multiverso.  

Contudo, daquela primeira experiência do Monitor com o interior de seu próprio coração, restou apenas uma imagem no mundo dos hiper-deuses: uma estátua gigantesca do Superman. Em minha interpretação, essa estátua é uma clara referência à condição arquetípica do Super-homem, o qual é então o único herói cuja imagem faz-se presente no mundo dos hiper-deuses, e não somente nos multiversos, como todos os outros personagens.

Ao final, a consciência do Superman é transferida para sua gigantesca imagem no mundo dos monitores, para que possa enfrentar Mandrakk. É realmente interessante notar o momento em que ele consegue perceber até mesmo a presença do leitor: "de uma direção que não possui nome vem um som como o de uma respiração". Assim, ele toma posse de sua própria imagem arquetípica "quadrinizada" e, ao fazer isso, transcende os próprios quadrinhos. Assim, se nos fosse lícito complementar o título da história, diríamos que ela deveria chamar-se "Superman Beyond Comics".