quinta-feira, 23 de julho de 2015

O que o mito do Superman pode nos ensinar?



Há muito tempo penso que os super-heróis em geral não são simples figuras de entretenimento ou escapismo barato. Não; eu vejo nos super-heróis uma força pedagógica, na medida em que eles expressam e reforçam ideais morais a partir de seu exemplo. Os antigos gregos enxergavam seus heróis da mesma forma, e por isso Homero era considerado não apenas um poeta de grande imaginação, mas sobretudo um educador. Neste texto, procuro demonstrar alguns aspectos do mito do primeiro e mais arquetípico super-herói, o Superman, aspectos estes que podem nos ensinar algo sobre nós mesmos enquanto espécie humana, bem como guiar nossas vidas.

1. O Superman é símbolo de uma rejeição. Mas rejeição a quê? Rejeição a tudo que há de mais prosaico, insosso, baixo, débil, e patético na humanidade. Se somos predominantemente egoístas, Superman é inteiramente altruísta; se, fisicamente, somos naturalmente frágeis e débeis, ele, em contrapartida, é a imagem do poder encarnado. Em suma, ele é aquilo que deveríamos ser, mas que não somos. E ao ser tudo o que deveríamos ser, mas não somos, Superman representa-nos uma imagem de repúdio ao “humano, demasiado humano”1. Portanto, ao contrário do que muitos pensam, há muita agressividade na mera imagem do velho escoteiro. Algumas pessoas o odeiam, e com razão: pois se sentem ofendidas por ele, tal como o indivíduo vaidoso se sente ofendido pela simples presença daquele que ele sabe ser um rival superior. Para o narcisista, é extremamente difícil olhar para qualquer outra coisa que não o próprio retrato. Mais difícil ainda para ele é deparar-se com uma imagem que representa sua própria superação, e assim, que funciona como uma denúncia de suas próprias carências e defeitos. Por esta razão o Superman não se encontra em seus melhores dias de popularidade. Em tempos de selfie, isto é, em um período no qual presenciamos esta epidemia de narcisismo universal, um Super-homem não pode ser muito popular. Como escreveu brilhantemente Mark C. Henrie, “a psique da modernidade anseia por identificar-se com um protagonista e, acanhada, evita o julgamento implícito contra o prosaico que é expresso por meio da vida exemplar do herói”2. Mas justamente aí consiste uma das grandes virtudes de seu mito: ele nos convida à superação de nós mesmos e ao abandono do estado de mediocridade. Mas para aceitar este convite, primeiro devemos neutralizar nosso próprio egoísmo e vaidade, e parar de admirar apenas aquilo com o qual nos "identificamos".

2. Superman nos ensina o imensurável valor da compaixão, mas sem deixar de conciliá-la com a justiça. Poucos heróis demonstram tanta compaixão pelos mais fracos como o Superman. Diferentemente da maioria dos heróis, ele não luta motivado por emoções cuja base é egoísta, tal como o ressentimento pessoal ou a vingança. Seus pais não foram assassinados, e nem seu tio. Ele simplesmente não suporta ver outro homem sofrer, e por isso decidiu agir como herói. Mas apesar de seu grande coração, ele não hesita em dar ao vilão aquilo que este merece. Inocentes são dignos de compaixão. Mas o culpado deve ser detido, mesmo que por meio de super-pancadas. Muitos filósofos, sociólogos e psicólogos buscam "causas" para a maldade e comportamento antissocial, como se a espécie humana fosse fundamentalmente angelical e repleta de boas intenções e, portanto, como se devesse existir causas externas de nossa eventual corrupção. Assim pensam muitos homens. Mas um super-homem prefere pensar que todo indivíduo é dono de seu destino, e, por isso, na mesma proporção em que deve ser parabenizado por seus acertos, deve ser julgado e punido por seus erros. 

3. Superman é o “escoteiro”, um personagem “old fashioned”. E com isso demonstra que a defesa dos velhos valores e costumes define um verdadeiro super-homem. Apenas os pequenos escravos das circunstâncias seguem os modismos passageiros. E é melhor deixarmos os desejos de inovações radicais para vilões progressistas que sempre perseguem sonhos utópicos de dominação, tais como Lex Luthor. Sim, Superman é definitivamente aquilo que alguns chamam de “conservador cultural”, ou “tradicionalista”. E não há vergonha alguma em sê-lo, uma vez que esta é a marca deste homem superior.

4. Seu mito nos ensina o valor da família e o quão sagrada ela é, além de prestar uma singela homenagem à salutar simplicidade da vida rural. O que mais me agrada na versão produzida por John Byrne é que os pais adotivos do Superman estão vivos, e assim podemos acompanhar a relação familiar na qual um super-caráter pode ser forjado. O que seria do bom Clark Kent, não fosse a forte união matrimonial de um homem e uma mulher e o amor que ambos conferiram ao seu filho adotivo? Uma família unida e organizada é capaz de feitos maravilhosos! Além disso, jamais podemos esquecer que embora Clark viva na grandiosa e atribulada Metrópolis, o que faz dele verdadeiramente nobre é a sua origem simples adquirida na pequena Smallville.

5. Nada que é realmente bom pode vir deste mundo. O Super-homem não é um homem nascido na Terra, que se tornou superior após ler “Assim falou Zaratustra”, ou algum texto evolucionista de Herbert Spencer. Ele veio de um mundo “muito, muito distante”. Portanto, em meu modo de interpretar o mito do Superman, penso que ele nos ensina que devemos ser humildes enquanto espécie, e portanto ele afasta aquele humanismo patético que consiste na crença muitas vezes difundida de que somos capazes de realizar toda e qualquer coisa com base em nossa – supostamente profética e onipotente – racionalidade. “Não há limites para o homem!”. Há, sim. E justamente porque somos homens.

6. Super-heróis possuem super-poderes. É absurdo pensar que com inteligência, engenho, capital e algo como um cinto de utilidades podemos ser super-heróis. O mito do Superman afasta essa fantasia humanista. Se ele não tivesse super-poderes, então provavelmente seria apenas um homem comum, com uma família, uma casa, e um emprego, porque é isso que homens comuns e mentalmente sadios fazem. Portanto, paradoxalmente, penso que os personagens mais irreais são justamente aqueles que seriam supostamente mais realistas, tais como o Batman, Rorschach ou o Homem-de-ferro, pois, apesar de serem simples homens, eles realizam aquilo que não está ao alcance de nenhum homem realizar. Mas então o mito do Superman nos convida à vida prosaica, à mediocridade? Claro que não. Ele nos convida à realização do bem, mas dentro de nossas possibilidades. O Superman é um super-herói, porque dentro de suas possibilidades ele pode lutar contra super-vilões. Mas apesar de não contarmos com incríveis poderes, no entanto ainda podemos seguir seu exemplo de moralidade. Podemos tentar ser boas pessoas. Não podemos enfrentar fisicamente assaltantes armados ou impedir terremotos, mas podemos ser bons cidadãos, bons amigos, bons filhos, bons pais, bons maridos, etc. Este é o melhor meio de incorporarmos, em nossa vida concreta, aquele que é para mim o melhor aspecto deste mito: sua bondade e moralidade tipicamente cristãs. Como o próprio Superman diz em uma velha história da Era de Prata: “sejam bons uns para os outros, e todo homem pode ser um super-homem”3.





1 Em minha opinião, o Übermensch de Nietzsche também era “humano, demasiado humano”. Nossas cadeias – e algumas de nossas universidades – estão repletas de “humanos, demasiado humanos” deste tipo, isto é, pessoas que veem as tradições morais da humanidade como meros limites ao seu arbítrio e que anseiam liberar seus mais insólitos apetites “dionisíacos”.
2 HENRIE, Mak. C. “Russell Kirk e o coração conservador”, 2013, p. 59.
3 A história em questão foi chamada no Brasil de “Os últimos dias do Superman”. Foi escrita por Edmund Hamilton e desenhada por Curt Swan, sendo publicada originalmente em Superman 156, de outubro de 1962. No Brasil, foi publicada pela Panini na coletânea “A maiores histórias do Superman”, em 2008. 

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Grant Morrison: “Superman começou como um socialista”. Sinto muito, Morrison. Mas você está completamente errado.




Quando Grant Morrison publicou, em 2011, seu livro “Supergods: what masked vigilantes, miraculous mutants and a sun god from Smallville can teach us about being human” (aqui no Brasil sob o título “Superdeuses: mutantes, alienígenas, vigilantes e o significado de ser humano na era dos super-heróis”), eu não tive vontade de ler, embora o tema me agradasse muito. O motivo de meu desinteresse se devia ao fato de que já naquela época eu conhecia o incrível contraste que há entre a qualidade do trabalho do Grant Morrison escritor e o nível de patetice de suas próprias opiniões sobre os super-heróis que escreve. Além disso, folheando rapidamente a obra no período de seu lançamento, Morrison não me parecia dizer nenhuma novidade, diferentemente do trabalho de Christopher Knowles, “Our superheroes wear spandex” (aqui no Brasil publicado com “Nossos deuses são super-heróis”, pela Cultrix), onde o autor, entre outras coisas, procura identificar as raízes arquetípicas e místicas dos nossos super-heróis. Um trabalho ousado e brilhante. Mas agora retornemos a Morrison, nosso fantástico gênio superestimado...

Vasculhando textos sobre super-heróis e política na internet, deparei-me de maneira totalmente acidental com a afirmação “Superman is a socialist superhero”. Fiquei curioso, tal como qualquer pessoa fica quando diante de alguma afirmação absurda; afinal, por se tratar de um dos principais símbolos da cultura norte-americana, o Superman sempre me pareceu o oposto de ideais socialistas e coletivistas. Mas a América do Norte parece estar mudando... então resolvi conferir o real teor da oração apenas para ter certeza de que se tratava de alguma frase sensacionalista. E de fato era. O enunciado em questão era uma simples alusão à afirmação de Grant Morrison registrada no livro supracitado, onde ele escreve: “Superman começou como um socialista, mas Batman era o herói capitalista definitivo”. É fácil ver que a intenção de Morrison era apenas dizer que o Superman das primeiras histórias, datadas de 1938, era um socialista. Mas ao unir Superman e “socialismo” na mesma sentença, ele deu o primeiro passo para que leitores que possuem dificuldade de interpretação e jornalistas sensacionalistas chegassem à estranha conclusão de que Superman é socialista. Além disso, analisando as frases de Morrison em seu conjunto, percebe-se que se trata de um momento do texto onde o autor procura opor as qualidades e características dos dois heróis, na tentativa de destacar seus contrastes. “Superman tinha um patrão; Batman, um mordomo. Superman trabalhava sozinho; Batman tinha um parceiro. Superman era o dia; Batman, a noite. Superman era apolíneo; Batman, dionisíaco” etc, etc. Parece-me que, para dar continuidade à métrica das oposições, Morrison resolveu soltar a pérola em questão. Ora, se o Batman, cuja identidade secreta é a do rico industrial Bruce Wayne, é supostamente um capitalista1, e sendo Batman e Superman opostos, então o Superman em seus primórdios poderia ser considerado um socialista, não? – Não. Explico. E o primeiro passo da minha explicação será fazer o que quase ninguém faz nestes debates que envolvem super-heróis e política: começarei pela exposição dos conceitos utilizados no debate.

Desde o início do século XX, é difícil tomar a palavra “socialista” dissociada das teorias de Karl Marx. Eventualmente o termo “socialista” era também utilizado para se referir a teorias anarquistas na linha de Bakunin ou Proudhon (estes seriam os “socialistas libertários”), mas sua ligação com o marxismo se tornou muito mais forte e endêmica. De qualquer forma, “socialismo” se tornou sinônimo da crença de que o principal motor social é a estrutura econômica e a luta de classes a ela associada, a qual se tornou ainda mais acentuada com o fortalecimento do capitalismo e, portanto, para que esta luta termine, deve-se então eliminar, via revolução, a classe capitalista causadora deste conflito, juntamente com seu instrumento favorito de dominação: a propriedade privada. Em suma, os burgueses capitalistas, enquanto classe opressora, devem desaparecer; e os trabalhadores ou proletariado, que é a classe oprimida, deve operar este processo de desaparecimento. Portanto, em linhas gerais “socialismo” seria a ideologia que se compromete com este tipo de perspectiva social. Logo, se eu digo que o Superman “começou como um socialista”, com isso estou afirmando que o personagem era comprometido, em suas primeiras aventuras, com a eliminação da classe burguesa através da ação político-revolucionária. Em outras palavras, este Superman teria que fazer coisas como levantar a bandeira da foice e do martelo, gritar “trabalhadores, uni-vos!”, a bradar discursos contrários à propriedade privada dos meios de produção2. Mas em nenhum momento ele o faz. Jamais consegui encontrar, nestas primeiras histórias, uma única frase ideológica, classista e anticapitalista atribuída por Siegel ao seu Superman. Mas então de onde diabos Morrison tirou a ideia de que o Superman era “socialista”?

De fato, o Superman dos primeiros dias era um pouco diferente daquele que conhecemos hoje (ou que conhecíamos, até a recente reformulação dos “novos 52”). Ele era sem dúvida um herói, com um forte senso moral. A essência já estava lá. Mas o temperamento era diferente. O Superman era muito mais irritadiço e misterioso. Não vemos nele a atitude “escoteira” que hoje faz parte de seu caráter, isto é, seu desejo de seguir as leis escolhidas pela humanidade e de trabalhar ao lado das instituições democráticas e autoridades eleitas. Não; diferentemente do que Morrison escreveu em um trecho supracitado, se esse Superman era apolíneo, ele o era apenas em um sentido muito limitado, pois nele podemos testemunhar bastante da histeria emocional dionisíaca3. Embora sua aparência externa já fosse messiânica, no entanto, em muitos momentos suas atitudes são a de um Gólem ressentido, antipático e vingativo. Superman e Batman não eram tão diferentes como Morrison faz parecer. Este Superman já lutava pelos oprimidos, e por isso seu alvo eram todos os tipos de opressores que se manifestavam na sociedade americana daquele período. Superman não poupava ninguém que causasse o mal: ele enfrentava desde mafiosos, motoristas negligentes, e até mesmo técnicos de futebol irresponsáveis. Nestas circunstâncias, empresários capitalistas cruéis para com seus empregados também não poderiam escapar, e, talvez por esta razão, Morrison tenha interpretado este Superman como “socialista”4. Em Action Comics n. 3, temos um momento exemplar: Superman castiga o dono de uma mina que não tinha a menor consideração pelas condições de trabalho de seus empregados. Na história, Superman faz o empresário, chamado Thornton Blakely, passar pelas mesmas situações que seus empregados enquanto trabalhavam. A partir daí, Blakely compreende que era impossível trabalhar sob aquelas condições e, agora conscientizado, promete de bom grado a Clark Kent que irá cuidar da segurança de seus empregados. Em nenhum momento, Superman desejou que o país reformasse sua política econômica. Ele apenas desejou uma reforma moral daquele empresário em particular. Para Superman, o problema não estava no arranjo econômico da sociedade, mas na maneira como aquele indivíduo havia escolhido tratar seus empregados. Esta atitude está muito mais próxima de um conservadorismo da linha de Edmund Burke ou Russell Kirk do que de qualquer comportamento revolucionário de inspiração socialista.

Acredito que a história deste período com um conteúdo mais político seja aquela publicada em Action comics n. 8, que trata de delinquência juvenil. Nela, o Superman concorda explicitamente que a delinquência juvenil é produto das condições sociais miseráveis a que estes jovens são submetidos. No entanto, apesar de ele crer que a conduta criminosa de jovens seja produto de circunstâncias econômicas externas, o mesmo não parece se aplicar ao criminoso adulto da mesma história, que é tratado pelo Superman com extrema severidade (Superman chega a lançá-lo a incrível distância, como se fosse um simples objeto). Mas, apesar de seu explícito progressismo político relativo ao problema da delinquência juvenil, ainda não encontramos nenhum elemento suficiente para taxá-lo de “socialista”. Este relativo progressismo não chega aos extremos do socialismo. (Além disso, em fevereiro de 1940 já temos a famosa história "How Superman would end war", de Shuster e Siegel, onde o Superman derrota e captura os dois grandes ditadores socialistas daquele período, Hitler e Stalin, com o primeiro defendendo uma versão "nacionalista" de socialismo, e o segundo representando o socialismo marxista-leninista. Se Superman realmente começou como socialista em 1938, então aparentemente em 1940 ele já havia abandonado suas convicções...).

Talvez o ponto de vista de Morrison esteja amparado por uma interpretação hiperbólica daqueles fatos descritos. Interpretações hiperbólicas são bastante comuns na maioria das pessoas, pois elas possuem uma certa dificuldade em medir objetivamente as proporções das coisas. Assim, é comum muitos deduzirem, a partir de um simples olhar atravessado, uma explícita ameaça de morte; ou de uma tímida crítica construtiva, uma ofensa grave. Assim, é possível que a partir de pequenas atitudes representadas por Siegel e Shuster na figura do Superman, Morrison tenha deduzido, de maneira hiperbólica, que Superman era um ávido leitor de Karl Marx e – quem sabe? – frequentador assíduo das Internacionais. Mas será que poderíamos esperar mais de alguém que gostaria que a Mulher-Maravilha fosse lésbica e sadomasoquista, e que afirmou categoricamente que a base do conceito do Batman é “totalmente gay”5?






1 Obviamente que esta suposição é extremamente problemática. Já vi algumas pessoas, sobretudo em websites norte-americanos, afirmarem que o Batman é conservador (no sentido vulgarmente atribuído ao termo nos dias de hoje) porque ele é um empresário capitalista. Mas Engels também era um empresário capitalista e, no entanto, era socialista até a alma. Isso seria uma contradição? De modo algum. Na verdade, a lógica do capitalismo não é inteiramente distinta da lógica do socialismo marxista. Ambos desejam a mesma coisa: a continuidade da produção das riquezas materiais. O ponto de discórdia consiste apenas no fato de que os socialistas acreditam que, em uma determinada fase histórica, o capitalismo não será mais capaz de desenvolver estas forças produtivas; acreditam que o capitalismo irá travá-las. Como dizia o soviético N. Colesov, “chega um momento em que as velhas relações de produção cessam de corresponder às novas forças produtivas e se transformam num empecilho ao seu desenvolvimento (...). Este conflito só pode ser resolvido pela substituição das velhas relações de produção por novas (“A propriedade social”, 1963, p. 15-16). Os defensores do capitalismo, diferentemente, acreditam que eventuais crises econômicas podem ser sanadas, sem que o sistema econômico capitalista precise ser extinto.
2 Sim, eu conheço muito bem a Graphic Novel “Red Son”, de Mark Millar. Mas estou falando do Superman regularmente publicado, e não de uma Elseworld – isto é, uma história alternativa excluída de qualquer cronologia do herói já considerada “oficial” – que apresenta uma visão totalmente isolada, ainda que interessantíssima. Além disso, o simples fato do Superman ser socialista em uma versão alternativa já demonstra por si só que a qualidade de “socialista” não pertence ao “verdadeiro” Superman.
3 Knowles, muito mais atento aos conceitos do que Morrison, escreve que “nos primeiros números de Action Comics, o Superman não era o Apolo sorridente e idealizado que conhecemos hoje”.
4 Entre pessoas de pouca formação teórica em linhas e pensamentos políticos, é quase lugar comum a opinião de que ser “capitalista” significa ser conivente com toda e qualquer forma de abuso social que empresários venham a cometer, enquanto que “socialista” significaria adotar qualquer tipo de postura crítica em relação à atuação destes empresários. É possível que Morrison trabalhe, ainda que de maneira pouco consciente, com conceitos falsos e reducionistas deste tipo.
5 Em entrevista à Playboy, Morrison disse: “Gayness is built into Batman ... Obviously as a fictional character he's intended to be heterosexual, but the basis of the whole concept is utterly gay. I think that's why people like it.”. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

"Liga da Justiça: crise em duas Terras" e a questão do significado moral de nossas ações




O longa animado “Justice League: crisis on two earths", escrito por Dwayne McDuffie, foi produzido e lançado já há alguns anos, mas somente agora tive a oportunidade (e interesse) em assisti-lo. Agora, arrependo-me amargamente de não tê-lo feito na época em que fora lançado. Devo admitir: é um excelente trabalho, e, diferente de muitos longas animados descartáveis lançados nos últimos anos (sejam eles produzidos pela Marvel/Disney ou DC/Warner), “Justice League: crisis on two earths" cumpre seu dever e honra aquela que, a meu ver, é a verdadeira finalidade de todo conto de super-heróis: fazer-nos vivenciar eventos fantásticos que, em última instância, conduzem-nos a questões morais. Pois muito mais do que do que apresentar histórias imaginárias sobre homens que voam e possuem superforça, as histórias em quadrinhos, desde a década de 30, propõem a resposta para a seguinte questão: considerando que um homem consegue voar e é superforte, o que ele deveria fazer com semelhantes poderes? Jerry Siegel e Joe Shuster respondiam, de maneira intuitiva através de suas histórias imaginárias, que tal homem deveria lutar pela verdade e justiça. Algumas décadas depois Stan Lee e Steve Ditko responderiam a mesma questão de maneira mais consciente através da famosa sentença: “com grande poder, vem grande responsabilidade”.

Dwayne McDuffie, por meio de “Justice League: crisis on two earths", convida-nos a aprofundar um pouco mais nossas intuições morais por meio do seguinte problema: considerando que exista uma lei física segundo a qual para cada uma de nossas ações e escolhas realizadas surge um outro mundo ou realidade no qual uma outra versão nossa realiza justamente a conduta oposta, qual seria então o real significado de nossas ações? Ou, dito de maneira mais simples: se para cada ação boa que realizo em meu mundo cria-se uma correspondente ação má em um mundo paralelo, que sentido haveria em ser bom? Não é meu interesse aqui discutir até que ponto o problema levantado em “Justice League: crisis on two earths" corresponde à teoria “dos muitos mundos”, seriamente proposta pelo físico Hugh Everett III, ou outras teorias científicas do gênero. Meu objetivo é simplesmente o de avaliar nossos juízos morais a partir daquela hipótese imaginária.

Dentro do conto escrito por McDuffie, o personagem que levanta esta questão é o Coruja, justamente a versão maligna do Batman que conhecemos. Ora, se o Batman escolheu ser um herói em nossa “realidade”, disso se segue que, assumindo aquela hipótese, as escolhas heroicas que Batman fez em nossa realidade produziram escolhas ruins em outra realidade (e vice-versa... McDuffie não nos explica quem é a causa de quem aqui: se as escolhas boas do Batman produzem as escolhas ruins do Coruja, ou se as escolhas ruins do Coruja produzem as escolhas boas do Batman). Portanto, se para cada escolha boa que os heróis fazem existe uma escolha má correspondente em outra realidade, disso se segue que à nossa Liga da Justiça, defensora da verdade e da justiça, corresponde em outra realidade uma Liga da Injustiça (ou, como é chamada no longa, “Sindicato do Crime”) que causa injustiças e mentiras. Não importa o quanto o Superman se esforce em nosso mundo. Em outro mundo, ele possui um correspondente exato, tão poderoso quanto, mas moralmente oposto, chamado de Ultraman. Tanto quanto o Superman protege nossa vida e liberdade, Ultraman massacra estes mesmos valores em outra realidade. Então resta-nos questionar: se para cada bem produzido em um mundo real há um mal produzido em outro mundo igualmente real, então que sentido há em fazer o bem (ou mesmo o mal)?

Refletindo sobre isso, o personagem Coruja percebe quantas “implicações filosóficas” intrigantes há aí. E sua conclusão filosófica não poderia ser mais niilista. Para o Coruja, a totalidade da realidade é um erro, um empreendimento sem qualquer sentido, e, por isso, a “única ação realmente significativa” (uma vez que todas as outras não possuem verdadeiro significado moral na medida em que coexistem com ações paralelas e moralmente opostas) é aquela que destrói todo este processo de criação cósmica. E assim inicia-se a busca do Coruja pela destruição da “Terra Primordial”, da qual derivaram todas as outras, e cuja extinção ocasionaria a destruição de todas as outras Terras paralelas. Apenas esta ação (de destruir a Terra primordial) não encontraria uma ação correspondente e oposta em outra realidade. Logo, a única ação realmente relevante.

Em um combate corpo-a-corpo com o Batman, o Coruja explica suas conclusões filosóficas. Infelizmente, este talvez seja o único ponto em que o filme me decepcionou. Diante das conclusões do Coruja, eu gostaria que McDuffie colocasse na boca do Batman boas argumentações que demonstrassem ao Coruja o erro de suas conclusões niilistas. Gostaria que o Batman dissesse “Coruja, você está errado por tais e tais razões”. Mas o Batman não argumenta, não demonstra ao Coruja seus erros. O homem-morcego se limita a enfrentar o Coruja, e expressar seu desejo de continuar sobrevivendo e, consequentemente, de impedir que o Coruja triunfe em seu plano de destruição universal. A frase mais filosófica que Batman pronuncia é um tanto fora de contexto, e sem grandes implicações para o poderoso dilema proposto por sua contraparte maligna: “nós dois olhamos para o abismo... mas quando ele olhou de volta, você piscou”. Frase muito expressiva, mas que não nos conduz a qualquer argumento. Isso me leva a questionar: será que McDuffie, secretamente, concordava com o Coruja? Ou será que o autor, mesmo não concordando com as argumentações do vilão, no entanto não conseguiu encontrar argumentos que o contradissessem? Ou ainda, se encontrou estes argumentos, talvez não quis expô-los na animação, por julgá-los prolixos demais e, assim, resolveu contra-atacar o niilismo com a força estética e expressiva da ação heroica dos personagens da Liga da Justiça?

Com relação a McDuffie, creio que jamais saberei a resposta. Mas acredito que a segunda hipótese explique muito bem os sentimentos da maioria dos telespectadores que assistiram ao filme. Nossa razão diz que o Coruja está certo. Seus argumentos, aparentemente, não podem ser contraditados. Mas, apesar disso, queremos que Batman o detenha (ainda que o mesmo não apresente argumentos à altura); queremos que a Liga da Justiça continue a lutar pelo bem, apesar de isso acarretar a existência do Sindicato do Crime. Queremos que nossos heróis perseverem em sua tentativa de triunfo, apesar de que, assumindo a teoria do Coruja, esse triunfo nunca possa ser inteiramente alcançado. Pois se levarmos sua teoria às últimas consequências (o que não foi feito por McDuffie), então para a derrota do Sindicato do Crime em sua Terra, surgiu um Sindicato do Crime triunfante em outra Terra, e uma Liga da Justiça que foi desmantelada. E podemos pensar até mesmo que, para a derrota do Coruja, corresponde a vitória de um outro Coruja, e assim, esse outro Coruja teria destruído uma Terra Primordial e, com isso, toda uma outra totalidade de Terras paralelas, o que nos levaria à conclusão de que não poderia existir uma única Terra Primordial... Se a grande lei do universo é na verdade a violação daquela que acreditávamos ser a maior de todas as leis – o princípio da não-contradição – então toda e qualquer coisa está condenada a coexistir sempre com seu contrário (ainda que este contrário se manifeste em outra realidade). E assim, o bem sempre irá vencer e perder ao mesmo tempo, ainda que vença em um mundo, mas perca em outro. Então a palavra final teria que ser a do Coruja: “que importa?”.

Mas eu creio que exista um modo de contradizer o Coruja, e provar filosoficamente que, apesar do bem jamais triunfar verdadeiramente, no entanto, a busca pelo bem continua a se justificar. E meu argumento principal consiste basicamente no seguinte: nossas intuições morais não estão baseadas em resultados. Se a moralidade tivesse uma base meramente pragmática ou utilitarista, isto é, se o bem se definisse pelo seu resultado externo ou sua propriedade de produzir vantagens, então o Coruja teria toda razão. Mas o fato é que nossa consciência moral emite juízos e convicções que independem do sucesso de nossas ações. Antes, ela apenas emite sentenças que valem em si mesmas. Dito de modo mais filosófico, nossa consciência moral enuncia o que devemos fazer independentemente daquilo que efetivamente fazemos e que efetivamente podemos concretizar. Em suma: ela separa o mundo do Ser (isto é, o conjunto de relações causais e efetivas que ocorrem no mundo externo) do mundo do Dever-ser (que se reporta apenas a nossas regras morais e, portanto, enuncia aquilo que devemos fazer com uma certa independência das relações causais e efetivas que se pronunciam e atualizam na ordem do Ser). Mas tudo isso apreendemos de maneira não refletida, mas intuitiva. Isto é, sabemos que a Liga da Justiça deve sempre fazer bem; apenas não conseguimos justificar por quê. Por isso, torcemos pela Liga da Justiça, ainda que saibamos que, assumindo a teoria do Coruja, esta mesma Liga da Justiça nunca poderá triunfar absolutamente, senão muito relativamente.


Portanto, esta seria a grande lição deixada por “Justice League: crisis on two earths". A lição de que não importam as evidências científicas em contrário, nossa consciência moral jamais abandonará suas convicções, porque ela não está subordinada às leis que dirigem o mundo externo. Neste mundo externo, vigora o fatalismo da causalidade física e a incerteza quanto ao destino moral da humanidade. Em nosso mundo interno, diferentemente, percebemos nós mesmos como agentes livres e eternamente responsáveis pelas nossas ações, independentemente de seus resultados e antecedentes.