terça-feira, 31 de dezembro de 2019

"Akira" e seus significados




Antes de 2019 acabar, sinto que devo registrar alguns apontamentos sobre a maior obra de Katsuhiro Otomo: refiro-me à série mangá e ao anime Akira. É espantoso, mas durante este ano reacendeu em mim um forte interesse por Akira; sim, espantoso, pois a história escrita por Otomo se passa exatamente em 2019, e eu não me lembrava disso.

Comecemos com um pouco de nostalgia (o que não é nada inoportuno, considerando a forte carga nostálgica que recai sobre os dois personagens centrais, Kaneda e Tetsuo). Provavelmente, assisti pela primeira vez ao Akira em algum momento do ano de 1992, se levarmos em conta que a primeira edição que adquiri do mangá, então publicado por aqui pela editora Globo, é a de número 18, datada de junho de 1992, e eu comecei a comprar as revistas após assistir à animação. Se me lembro bem, comecei a colecionar o mangá quase imediatamente após assistir ao filme, talvez com poucos meses de intervalo. É difícil lembrar. Afinal, em junho de 1992 eu ainda tinha 6 anos. Mas curiosamente, lembro-me do exato momento em que minha mãe alugou o VHS pra mim, por indicação do balconista da vídeo-locadora. Eu estava indeciso sobre qual filme alugaria (eu sempre ficava indeciso). Foi quando o balconista apontou para o pôster estampado na parede do ambiente, e que trazia aquela que se tornou a icônica imagem de Kaneda segurando o rifle laser. “Já assistiu esse? Esse é bom”, disse-me o balconista. Concordei em levá-lo. Em retrospecto, a indicação do balconista parece loucura ou sarcasmo. Pois definitivamente Akira não é para crianças de 6 anos. Enquanto assistíamos, minha mãe percebeu isso. Lembro-me que ela odiou. “Quem afinal de contas é esse Akira?”; “não entendi nada”; “que desenho esquisito, violento”... estas foram algumas críticas que ouvi da minha mãe enquanto nosso videocassete rodava o VHS.

Mas, surpreendentemente, seu adorei. Eu gostei das cenas de ação, das motos, das luzes da cidade, da trilha sonora, do conflito entre Kaneda e Tetsuo e, principalmente (embora eu fosse incapaz de articular isso na época) pelo fato de que Akira não era um filme autoexplicativo. Havia espaço ali para descobertas, interpretações. No dia seguinte, revi o filme, desta vez desacompanhado. Eu queria descobrir o que era o tal Akira. Obviamente, não consegui. Por isso, revisitei-o mais um sem número de vezes naquele período de intenso frenesi (que possivelmente se arrastou para o ano de 1993 também), inclusive locando o mesmo filme várias vezes. Como já mencionei, também comecei a colecionar no mesmo período o mangá, cujos fascículos eu comprei (ou melhor, meu pai comprou) religiosamente do n. 18 até o n. 32 (depois do 32, não chegou mais nenhum na banca de revistas da minha cidade). Afinal, eu precisava entender o significado por trás do garoto Akira, e também queria acompanhar a interação entre os amigos/rivais Kaneda e Tetsuo. Sim, considerando que eu realmente lia e relia os fascículos de Akira, e que tanto o filme quanto o mangá provocavam em mim um agradável sentimento de assombro diante de um mistério que precisava solucionar (repito: um sentimento totalmente inarticulável para mim naquela época), e o fascínio pela personalidade dos personagens, então pode-se dizer que Katsuhiro Otomo forneceu-me minha primeira experiência literária e filosófica. Agradeço-o por isso, Sr. Otomo. (Hoje ocupo-me profissionalmente da Filosofia. Acreditem: ler Akira aos 6 ou 7 anos não é muito diferente de ler Husserl ou Kant aos 34. Talvez Katsuhiro Otomo tenha me influenciado num nível ainda mais profundo do que posso conceber).


O primeiro fascículo que adquiri de Akira, em 1992, e que guardo com muito zelo até os dias de hoje.



A arracionalidade fundamental da existência humana

Mas há mensagens em Akira que só podem ser propriamente compreendidas obtendo-se certa dose de maturidade.

Uma mensagem deste tipo é uma que parece-me ser quase uma tese metafísica do Otomo sobre a força primordial que conduz a vida. Isso fica mais claro nos últimos números de Akira (em especial, nos números 36 e 37, que só tive o prazer de ler recentemente). Akira apresenta uma tese filosófica sobre a vida em geral, e sobre a humanidade em especial: esta, a humanidade, é um desdobramento específico de uma força originária muita mais universal, uma força que tem se expandido desde a aurora dos tempos. Em um primeiro momento, esta força é em si irracional, é apenas um ímpeto de expansão de si mesma e, em sua cegueira, tanto cria quanto destrói. É por isso que ao ser dominado pela mesma, o corpo de Tetsuo adquire uma forma monstruosa, mas que também se assemelha a um bebê, como se estivesse destituído de qualquer Ego ou racionalidade, reduzindo-se a um ímpeto voraz pela vida. Esta interpretação é fortalecida pelo fato de que, ao dirigir-se ao templo de Lady Miyako em busca de ajuda, Tetsuo torna-se rapidamente violento quando atacado pela monja paranormal, o que denota a predominância dos instintos sobre qualquer reflexão em seu comportamento. Em poucas palavras, aquela força que se apossa de Tetsuo e que era incrivelmente poderosa no garoto Akira corresponderia mais ou menos àquilo que Arthur Schopenhauer chamou de “vontade de vida”.



Mas também é explicado por Miyako a Kaneda que o caos e dificuldades gerados por Akira (ou, mais precisamente, por este ímpeto que se expressa em maior medida no menino Akira) são circunstâncias escolhidas para “promover a evolução da humanidade”. Pelo diálogo entre Kaneda e Miyako, fica claro que Otomo supõe uma cisão entre as escolhas individuais e as escolhas desta força, deste ímpeto, que por sua vez corresponde ao gênero humano. Kaneda argumenta que mesmo a evolução deve ser um evento programado. Miyako responde que não se deve duvidar da capacidade do espírito humano em escolher seu curso de desenvolvimento. Considerando que os indivíduos em geral não podem fazer escolhas deste tipo (afinal, indivíduos só fazem escolhas individuais, e não generalizadas; cada indivíduo não pode decidir por toda a espécie humana), então Miyako só pode estar se referindo a uma escolha tomada por aquela força que expressa a humanidade em geral.



Mais uma vez, podemos nos servir de Schopenhauer aqui, com sua distinção entre indivíduo e o gênio da espécie. Este último faz escolhas pelo primeiro a todo momento, sem que o primeiro esteja consciente disto (é o ocorre, por exemplo, no intercurso sexual. Para Schopenhauer, o indivíduo em sã consciência jamais escolheria isso; mas o caráter da espécie que habita no mais íntimo do indivíduo provoca nele uma impulsão vital e inconsciente para o sexo). A diferença aparente entre Otomo e Schopenhauer é a de que a força vital narrada por Otomo busca uma evolução, e evolução pressupõe algum planejamento (em Schopenhauer não poderia haver evolução). Logo, a força vital referida por Otomo não pode ser inteiramente irracional ou cega, mas precisa ser arracional, no sentido de que seus planos e desígnios podem soar incompreensíveis à racionalidade humana, restrita a uma perspectiva mais limitada ou circunstancial. O indivíduo vê na obra daquela força apenas caos e irreflexão. Mas sob uma perspectiva absolutamente abrangente, que enxerga o todo e não apenas as partes (isto é, sob o intelecto divino), o resultado não seria o caos, mas a evolução. E evolução pressupõe planejamento, finalidade. Toda evolução é teleológica. Afinal, só há coerência em se falar de evolução quando uma determinada forma de vida transita de um estágio inferior para um estágio superior. E o critério para se definir o que é inferior ou superior é a assunção de uma finalidade, uma meta a ser alcançada. Dizer que há evolução é dizer que estamos caminhando para o melhor, que estamos alcançando uma meta. Mas assumir uma meta ínsita à natureza também nos conduz à ideia de uma inteligência ordenadora, um criador. Por isso escreve Kant na Crítica do Juízo (B 335): “a teleologia não encontra nenhuma conclusão última para as suas pesquisas senão numa teologia”. Ah, estes evolucionistas... são tão criacionistas (sem sabê-lo, é claro)!(1)




Decadência moral e artificialismo; o possível significado do símbolo da cápsula

Uma outra noção mais profunda em Akira é a própria temática Cyberpunk. O gênero Cyberpunk tem um viés bastante contracultural, é verdade. E o mesmo vale para Akira, com as suas imagens de edifícios gigantescos e que denotam uma vida urbana noturna intensa, gangues de motociclistas, a famosa jaqueta de Kaneda com a imagem da pílula nas costas (2), etc. Mas, curiosamente, à rebelião estética contida no gênero Cyberpunk corresponde uma mensagem política bastante conservadora. Pois Cyberpunk é sobre a miséria moral provocada pelo progresso e pela tecnologia. Cyberpunk é pessimismo em relação ao progresso. E como boa obra Cyberpunk, Akira também registra sua crítica implícita à vida noturna intensa, à substituição do espírito pela matéria, à soberba da ciência, etc., na medida em que também representa um mundo tomado pelo vazio espiritual porque os impulsos hoje de fato presentes na contemporaneidade finalmente se elevam, em Akira, a uma maior potência e com isso se tornam mais explícitos. Isto fica claro sobretudo se considerarmos a juventude retratada por Otomo. Os jovens são desordeiros, agressivos, preguiçosos, membros de gangues e experimentam estimulantes sintéticos com alguma frequência. Quem atualmente lida com jovens em escolas sabe como este aspecto outrora fictício da obra de Otomo materializou-se nos dias de hoje. Neste sentido, Akira funciona como uma denúncia sobre os males do materialismo e da falência espiritual, e um angustiado aviso sobre o que está por vir. É claro que Otomo poderia dizer-nos que esta falência moral é parte de uma “evolução”. E eu respeitosamente ousaria discordar.

Dito de modo mais preciso, em minha interpretação Akira é uma denúncia contra o artificialismo (3). O palco sobre o qual se desenvolve toda a história de Akira, a cidade de Neo-Tokyo, é pura ciência, pura arquitetura, pura engenharia, pura tecnologia. Não há espaço para a natureza, exceto em imagens nostálgicas que só existem na memória e consciência dos personagens. Em suma, Neo-Tokyo é puro artifício. Talvez seja este o sentido mais forte da cápsula estampada na jaqueta de Kaneda, pois a cápsula é um símbolo do artifício humano. Alguns certamente interpretam a imagem da cápsula como uma referência ao fato de que Kaneda e sua gangue eram mostrados como usuários eventuais de estimulantes sintéticos nas primeiras páginas de Akira. Mas devemos nos lembrar que o uso recreativo que os mesmos fazem daqueles estimulantes é mostrado apenas no mangá, e a jaqueta com a cápsula é utilizada apenas no filme, onde em nenhum momento Kaneda faz uso recreativo de drogas sintéticas. Além disso, mesmo no mangá, a atitude de Kaneda e sua gangue em relação ao uso das drogas sintéticas é no mínimo ambígua, um misto de receptividade e desprezo pelas mesmas. (No número 5 do mangá editado pela Marvel e, aqui, no Brasil, pela Editora Globo, Kaneda diz que por uma “questão de princípio”, “nenhum motoqueiro que se preza deixa um bando de viciados chutar seus traseiros”). Consequentemente, a imagem da cápsula na jaqueta de Kaneda não poderia ter conotação de apologia, pois isso me pareceria um tanto conflitante com a personalidade do próprio personagem que, apesar de marginalizado, sustenta desprezo por “viciados”.

Soma-se a isso o fato de que no mesmo mangá, drogas em cápsulas não são utilizadas apenas para fins recreativos; são utilizadas também pelo governo (muito mais do que pelos delinquentes da gangue de Kaneda) por razões científicas. O Coronel (outro personagem-chave de Akira) e seus cientistas utilizam cápsulas como um meio de obter controle sobre as crianças com poderes paranormais (Kiyoko, Masaru e Takashi) e, posteriormente, para obter controle sobre Tetsuo. Entretanto, o desenvolvimento de Akira nos mostra que este desejo de controle sustenta-se sobre pressupostos ilusórios, pois as crianças se tornam extremamente dependentes das cápsulas e, no caso de Tetsuo, a dependência química conduz à revolta e a um comportamento extremamente destrutivo, justamente o que o Coronel sempre buscou obsessivamente evitar. A ciência falhou, e o artifício não garantiu ordem alguma; apenas impôs o caos.

Logo, a imagem da cápsula só pode significar o artificialismo decadente que perpassa toda a história de Akira e seus personagens. É como se Otomo, através da cápsula estampada na jaqueta de um de seus protagonistas, quisesse nos passar toda esta mensagem não tanto de forma explícita ou autoexplicativa na sua própria história, mas pela via da imagem, da intuição estética. A mesma mensagem – isto é, a onipresença do miserável artificialismo em nossas vidas futuras – é apreensível a partir do icônico pôster da animação de 1988 (vide acima), com cabos ou fios elétricos de Neo-Tokyo subindo pelo corpo de Kaneda, que ali parece ser tão artificial quanto a cidade na qual vive, pois está preso à mesma. É neste artificialismo que consiste a tragédia de todos os personagens centrais de Akira, e que explica em grande parte a decadência moral dos mesmos – decadência moral que é cuidadosamente equilibrada por Otomo pelos vários feitos heroicos de alguns deles (Kaneda, Key, o Coronel, etc.), como um atestado implícito da imortalidade do livre-arbítrio e da consciência moral humana, que insistem em sobreviver mesmo em meio à degeneração da vida social dominada pela artificialidade e seus inseparáveis amigos, o materialismo e a mesquinhez. É neste ponto, e não na tese de uma “evolução” garantida por uma força arracional, que encontro algum raio de esperança na história de Akira.


A saga de Kaneda

Em consonância ao último tópico, devo ainda acrescentar que, em minha interpretação, um outro dos pontos centrais de Akira (e talvez este seja o ponto central, ao menos pra mim) é o amadurecimento e redenção espiritual de seu mais icônico personagem, Kaneda. 

Inicialmente um jovem superficial líder de uma gangue de motociclistas, posteriormente, Kaneda, orientado pelo espírito de Lady Miyako e de Kiyoko, vivencia nas últimas páginas da história uma experiência mística dentro da força liberada por Akira e Tetsuo, onde é revelado a ele que a existência não se restringe à matéria e à programação pressuposta por teorias científicas (Miyako diz a ele: "não acha que a adaptação ao meio ambiente é uma explicação simplória demais para definir essas evoluções, que são maiores e mais demoradas?"), e que em meio a crises agiganta-se o significado do amor fraterno. Por isso, quando Kaneda questiona: "esse poder de vocês só serviu para criar infelicidade neste mundo?", Kiyoko responde: "não... ele nos deu companheiros". Pouco depois, a imagem de um infante Tetsuo reaparece e docilmente pergunta a Kaneda: "você quer ser meu amigo?". Extremamente emocionado e, pela primeira vez, com lágrimas nos olhos, Kaneda diz "quero! eu sou seu amigo...". 

Com isso, pode-se dizer que Kaneda completou definitivamente sua transição da menoridade para a maioridade. Ao emocionar-se tão profundamente com o sentimento de amizade, Kaneda demonstrou que o ponto gravitacional de sua existência já não era mais ele próprio: o egoísmo juvenil havia sido substituído pelo senso de fraternidade que, afinal, orienta a vida verdadeiramente adulta. Agora, percebendo que a totalidade do mundo não se restringe à matéria e ego, poderíamos dizer que Kaneda toma consciência de sua condição existencial de ente que vive naquilo que Eric Voegelin chamou de intermediação (metaxy) entre o polo mundano e o polo eterno da existência; entre o imanente e o transcendente; entre o temporal e o eterno. 

Após esta experiência, Kaneda não poderia voltar a ser um líder de gangue de motocicletas que se regozija em brigas estéreis e que pilota, envaidecido, uma moto cheia de adesivos de grandes marcas. Ele já não poderia mais satisfazer-se somente com o polo imanente da existência, onde prevalece apenas a mesquinha vontade de triunfos materiais e egoístas. Sob um novo horizonte espiritual mais amplo, Kaneda transfere seu ímpeto da aventura egoísta de líder de gangue de motociclistas para um movimento de reestruturação e independência de toda uma nação, o "grande império de Tokyo". Ele ainda pilotará sua icônica motocicleta, mas agora com aparência mais austera e destituída de adesivos; ele ainda protagonizará conflitos com autoridades, mas agora não lutará apenas por ele próprio, e sim por toda uma nação. A conclusão de Akira, onde Kaneda tem uma visão das almas imortais de seus amigos, Tetsuo e Yamagata, sela seu novo estado de consciência que, por sua vez, consiste em reconhecer-se como ente que vive no ponto de tensão entre o temporal e o eterno (4)



Notas



(1) Ernst Föhr, em um livro tão interessante quanto desconhecido, ao menos aqui no Brasil (Naturwissenschaftliche Weltsicht und christlicher Glaube, Editora Herder, Freiburg, 1974), escreve na página 106: “A palavra evolução vem da palavra latina ‘evolvere’ = revirar. Evolução significa diferenciação, desenvolvimento para formas de vida superiores [...]. A evolução das formas de vida é uma esplêndida indicação à teleologia, que o espírito do Criador [...] inseriu como lei na natureza viva”. A tese de Föhr é no sentido de que só se admite evolução se se admite um telos na natureza; e um telos só pode ser admitido sob a pressuposição de uma inteligência dirigente, um Criador: “pode-se aceitar totalmente um desenvolvimento superior à humanidade, se se presume, como nós, que a vontade eficiente do Criador estritamente teleológica tem dirigido a evolução” (p. 106).
(2) Há ainda a inscrição "good for healthy, bad for education", que aparece nas costas da jaqueta de Kaneda junto à imagem da pílula. Entretanto, é importante notar que essa inscrição não é mostrada no mangá e nem no filme. Ela aparece apenas em alguns esboços ou imagens promocionais, aparentemente produzidas por Otomo. De resto, sua presença é mais intensa em desenhos não oficiais, em sua maioria feitos por fãs. 
(3) Na edição 4 da edição da Editora Globo para Akira, há uma tradução de algumas reflexões de Katsuhiro Otomo. Estou assumindo que a tradução está correta. Nesse texto, Otomo diz: "eu adoro aqueles lugares vivos, transpirando humanidade (...). Há um tempo, tentei, da forma mais natural possível, arranjar um local adequado para três rochas. Mas não importava onde eu as pusesse, pois não obtinha sucesso. Foi somente quando as joguei para trás que consegui colocá-las no lugar. Talvez seja essa minha aversão pelo artificialismo (...)". 
(4) No fim das contas, talvez Akira possa ser definida como uma tentativa de Otomo de articular, a seu modo, esta tão viva quanto incompreensível experiência humana da tensão entre os dois polos da existência: o temporal e o eterno. Sobre a condição humana definida em termos de vivência na metaxy (intermedialidade) entre o temporal e o eterno, recomendo a leitura do livro Anamnese, de Eric Voegelin, principalmente os dois últimos textos da obra. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O clássico First Blood como metáfora da vida




John Rambo é apenas um sujeito solitário trilhando seu próprio caminho. E então um xerife aparece e simplesmente decide interferir na vida do viajante. “Por que me provoca?”, Rambo pergunta. E a resposta vem gradualmente na forma de perseguição, humilhação e violência. Rambo é forçado a se defender, e resiste bravamente. Mas no final, entrega-se, enquanto é conduzido à prisão pelas autoridades que o perseguiram por motivos frívolos.

Eis a mensagem do clássico First Blood: não importa o quanto tentemos ficar longe de problemas, o quanto nos esforcemos para apenas seguir nosso próprio caminho... sempre haverá aquelas pessoas cruéis e levianas que trarão os problemas até você, embora você não tenha contribuído em nada para os mesmos. A vida e certos indivíduos que preenchem-na guardam grande disposição e boa vontade quando se trata de trazer-nos problemas imerecidos.

Nossos esforços para evitá-los de nada adiantarão, pois pessoas assim virão ao seu encalço apenas porque isso as diverte de algum modo. Aliás, esse é o sentido da expressão “first blood” no contexto da história de Rambo: o personagem não derramou o “primeiro sangue”, ele não iniciou o conflito; ele apenas reage a uma perseguição imerecida. Essa é também, segundo a minha forma de ver, a principal diferença entre os dois maiores personagens interpretados por Sylvester Stallone no cinema, o boxeador Rocky e o soldado Rambo: o primeiro luta e resiste para conquistar; o segundo, para defender-se. 

Mas o que fazer em relação a pessoas como essas, ávidas por derramar o “primeiro sangue”? Pessoas cujo ideal de diversão é a humilhação, a violência, o deboche e a provocação? Não há opção: temos de resistir e lutar. E esta luta se estenderá... pois estes odiosos adversários gratuitos se acumularão ao longo de seu caminho e em suas tentativas de fuga. Resta-nos apenas nos confortar pelo pensamento de que neste exercício de luta e resistência consiste toda a dignidade no viver. 

Até que a luta termina... não porque vencemos, mas porque no final somos vencidos pelo desânimo e cansaço. E agora resta-nos apenas nos entregarmos, e desfrutarmos de uma nova dignidade, a dignidade da sábia resignação diante do fato irresistível,  enquanto trilhamos aquele último caminho, não mais escolhido, mas imposto — a morte. E este é o resumo da vida humana. 




P.S.: Last Blood é um filme cuja mensagem é a de negação de indulgência a criminosos cruéis. Só por isso, já o considero um excelente filme.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

A filosofia de Conan, o bárbaro

Conan, na pintura de um dos artistas que o melhor definiram: o genial Frank Frazetta


Definir a ética de Conan não é fácil. Trata-se de um personagem moralmente ambíguo à primeira vista. Mesmo no momento de sua vida em que atuou como ladrão e saqueador, deu inúmeros exemplos de honra; muitas vezes descrito como assassino frio, no entanto já enfrentou terríveis desafios e adversários apenas para salvar donzelas em perigo. 

É tentador buscar compreender Conan, o bárbaro que despreza a civilização, a partir de ideologias políticas. Mas aquele que busca assim defini-lo certamente terá de lidar com uma tarefa ingrata, porque de impossível realização. Como já mencionado, Conan foi ladrão e saqueador. A partir disso é fácil para uma cabeça simplória deduzir que o mesmo é inimigo da propriedade privada, esquecendo-se que o roubo e pilhagem de Conan não se destinavam à redistribuição dos bens roubados: ele rouba e pilha apenas porque ele próprio, Conan, quer ser o proprietário. A essa altura, um outro interlocutor apressado diria: “Então Conan é um anarquista”. Mas esta constatação perde de vista um outro fato óbvio: Conan também já foi rei. 

Mas então como conciliar, por um lado, seu individualismo extremado, seu desprezo por regras, hierarquia e direitos – exceto aqueles que são conquistados e continuamente preservados pela própria força -- e por outro, o fato de que o mesmo também já assumiu a condição de rei, uma posição habitualmente associada a valores como “ordem” e “hierarquia”? Seria então Conan um personagem intrinsecamente incoerente? 

Minha hipótese é a de que ele é apenas politicamente incoerente. E não é possível encontrar coerência política em Conan porque ele não é um personagem político. Conan não sustenta uma visão teoricamente estruturada sobre a boa vida social. Afinal, ideologias são uma preocupação de homens civilizados. Mas Conan é um bárbaro. Este é um ponto de suma importância, pois é bastante perceptível o fato de que Robert Ervin Howard, seu criador, adorava traçar uma rígida linha demarcatória entre o civilizado e o bárbaro, e normalmente para louvar, em certa medida, o último, e maldizer o primeiro. 



Howard contra Rousseau

Mas não vamos nos confundir aqui. O bárbaro idealizado por Robert E. Howard não é o selvagem idealizado por Rousseau. Portanto, discordo respeitosamente de Alexandre Callari quando este, em sua introdução escrita à excelente edição brasileira dos contos de Howard publicados pelo Pipoca e Nanquim (traduzidos pelo próprio Callari), relaciona o bárbaro howardiano ao "bom selvagem de Rousseau", ou a um tipo de homem "intrinsecamente bom" (CALLARI, 2017, p. 4). Ele mesmo, Alexandre Callari, desmente esta assertiva, ao admitir no mesmo texto a "violência intrínseca" à vida bárbara descrita por Howard, bem com a disposição dos homens que vivem nesta condição para "cortar fora a cabeça de alguém" (CALLARI, 2017, p. 4).  Já o selvagem idealizado de Rousseau não tem qualquer ímpeto de dominação, recorrendo à violência apenas para se defender e se alimentar, sendo livre do desejo de satisfazer paixões que supostamente nos seriam impostas apenas a partir do convívio social. Howard, diferentemente, não era contrário à civilização por sustentar uma visão idílica da vida fora dela. Pelo contrário: a vida do bárbaro é dolorosa e violenta e, como mostrado na figura do próprio Conan, preenchida por ímpeto e paixões. Mas ao menos é mais sincera e transparente. Quando em Rogues in the House (de 1934), Conan se encontra com outros dois personagens “civilizados” mas corruptos, um deles observa: “esse cimério é o homem mais honesto de nós três, porque rouba e mata sem se esconder” (HOWARD, Livro II, 2018, p. 20) (1).

Portanto, em Howard, o embate entre barbárie e civilização não é tanto um embate entre o simplesmente bom e o simplesmente mau. Está mais para o contraste entre o sincero e o mentiroso, o corajoso e o covarde, o honrado e o dissimulado. Se eu fosse relacionar o bárbaro howardiano a algumas destas clássicas construções filosóficas que descrevem o Homem no "estado de natureza", eu arriscaria dizer que há mais proximidade com a antropologia elaborada pelo pessimista Thomas Hobbes. Afinal, trechos como aquele do capítulo XIII de Leviatã, segundo o qual “na natureza do homem, há três principais causas da discórdia: primeiro, competição; segundo, desconfiança; terceiro, glória” (HOBBES, 1985, p. 185), parecem descrever muito melhor a atmosfera das aventuras de Conan do que qualquer alusão a um selvagem de “coração em paz”, como escreve Rousseau na primeira parte de Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Além disso, Rousseau, contra Hobbes, parece supor que o poder físico é inversamente proporcional às paixões:

Ao raciocinar sobre os princípios que estabelece, esse autor [Hobbes] devia dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado com nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era consequentemente o mais apropriado à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz precisamente o contrário, por ter erradamente introduzido, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer a uma série de paixões que são obra da sociedade e que tornaram as leis necessárias. O indivíduo mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o homem selvagem é uma criança robusta. Ainda que concordássemos, o que concluiríamos disso? Se esse homem, quando robusto, fosse tão dependente dos outros como quando é fraco, não haveria excesso algum a que não se entregasse: bateria na mãe quando ela tardasse a lhe dar o peito, estrangularia um irmão mais moço quando fosse incomodado por ele, morderia a perna de outro quando estivesse ferido ou perturbado. Mas, no estado de natureza, são duas proposições contraditórias ser robusto e dependente (ROUSSEAU, 2012, primeira parte, p. 69).

Isto é: se é fraco, não pode fazer o mal; mas se é forte, também não, pois não precisa viver em sociedade. Quanto mais forte, menos dependente; e quanto menos dependente, menor é seu convívio social. E considerando que o convívio social é a circunstância que gera “a necessidade de satisfazer uma série de paixões”, logo, quanto mais forte, menor a necessidade de satisfazer paixões. Ora, essa antropologia filosófica não me parece em nada com aquela de Howard. Conan é sempre descrito como um homem bastante forte, com “músculos de aço”, e ele não me parece menos apaixonado do que os homens da civilização. O posicionamento em relação ao problema das paixões marca um contraste substancial entre Rousseau e Howard. Rousseau condenava as paixões como algo produzido pelo convívio social, de que seu selvagem idealizado está isento. “Nada agita” a alma deste selvagem (ROUSSEAU, 2012, p. 58). Mesmo quando admite que o selvagem possui paixões, estas são “tão pouco ativas” que “os homens [...] não estavam sujeitos a disputas muito perigosas” (ROUSSEAU, 2012, p. 73). Em contraste, Howard não condena as paixões e sua intensidade. Na prosa de Howard, é possível sentir a admiração pela coragem belicosa, e a reverência à paixão pela conquista. O selvagem rousseauniano, raquítico em suas paixões, caso cruzasse o caminho do bárbaro howardiano, talvez até se tornasse objeto de simpatia deste último; mas jamais constituir-se-ia em seu modelo de conduta. A depender das circunstâncias, poderíamos até imaginar que sua ausência de ambição e de disposição à luta provocasse repugnância no bárbaro howardiano. (Certamente, se o rei Conan se deparasse com um soldado que apresentasse a mesma ausência de ímpeto do selvagem rousseauniano, aquele soldado se tornaria alvo de sua ira, e não de sua admiração).

Além disso, se quisermos afastar ainda mais o bárbaro howardiano do selvagem rousseauniano, bastaria dizer que o bárbaro já vive em um estado social, que falta completamente na primeira parte de Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, de Rousseau. Em Howard, não parece haver identificação entre estado de natureza e ausência de estado social. Em Howard, sempre há estado social; mas este pode ser bárbaro ou civilizado. A vida difícil e a violência estão igualmente presentes nos dois estados. Portanto, Rousseau e Howard já parecem partir de pressupostos bastante diferentes.

Aquele que deseja diminuir esta distância poderia utilizar aqui um argumento de gradação: como o bárbaro é menos civilizado, e é moralmente superior àquele que é totalmente civilizado, então quanto mais longe da civilização, melhor moralmente ele será. Logo, o bárbaro howardiano representaria o meio caminho entre o homem selvagem rousseauniano e o homem civilizado, que Rousseau tanto execra em seu Discurso sobre a origem das desigualdades. Porém, este não é o ponto de Howard. Em nenhum momento ele representa Conan como alguém moralmente melhor porque possui paixões relativamente menores, ou mais modestas. Ao contrário: a alma do cimério parece sempre fervilhar. Aqui retorna-se a uma constatação anterior: em suas histórias sobre Conan, Howard não condena as paixões e sua intensidade. O problema não é com a paixão em si, mas com certas categorias de paixões. O homem civilizado é menos honrado, mais preguiçoso e sádico. Sobretudo, é esta proporção direta entre languidez e sadismo que Howard acusa na vida civilizada, e que fundamenta seu desprezo pela mesma. Conan não é sádico, e nem preguiçoso. Mas ele ama a luta, a batalha, a vitória, e a conquista, e em níveis superiores à média dos homens civilizados. Paixão pela conquista: este é o significado do barbarismo howardiano, e certamente isto está muito longe do pacífico e desinteressado selvagem de Rousseau.

Mesmo que o bárbaro howardiano fosse submetido a um regresso ainda maior, a ponto de se livrar de qualquer vínculo social para se recolher em uma vida solitária, ainda assim a vontade de poder não desapareceria, e portanto o selvagem pacífico não poderia surgir no contexto da antropologia howardiana. Na conclusão de “Além do Rio Negro”, um observador de Conan conclui: “o barbarismo é o estado natural da humanidade. A civilização não é natural. Não passa de um capricho circunstancial. E, no final, o barbarismo deverá sempre triunfar” (HOWARD, Livro III, 2019, p. 161). Considerando o significado de “barbarismo” no contexto da obra de Howard – isto é: vontade de poder, amor por batalhas, paixão pela conquista, etc. – e considerando que, segundo o autor, este é o estado natural da humanidade, conclui-se que Conan é quase o exato oposto do “bom selvagem” descrito por Rousseau. Na obra de Howard dedicada a Conan, chega-se então a um resultado inusitado: não se rejeita a civilização por idealizar-se fora dela um estilo de vida mais pacífico, mas apenas porque prefere-se a brutalidade transparente da barbárie à educação dissimuladora da vida civilizada (2).

E parece-me que este é o ponto fundamental de Howard: o homem nunca deixa de ser um bárbaro, sedento por domínio, poder e aventura irresponsável. Mesmo quando civilizado, ele não deixa de ser nada disso: com os modos civilizados, apenas se acresce à barbárie essencial a casca da astúcia e da hipocrisia. O civilizado é apenas um bárbaro que se apropriou de meios mais fáceis para alcançar exatamente os mesmos fins. É apenas um bárbaro mais astuto, mas também acovardado. 

Poderíamos reconstruir esta visão howardiana do seguinte modo: se adotarmos como verdade a hipótese de que somos e jamais deixaremos de ser fundamentalmente vontade de vida ou poder; de que a civilização é, portanto, apenas uma casca superficial que encobre artificialmente aquele núcleo; então a diferença entre o bárbaro e o civilizado é a de que o primeiro é sincero, e o segundo, apenas mentiroso. E se a verdade é uma virtude, e a mentira, um vício, disso se segue que apenas a vida bárbara pode ser virtuosa. 

E assim temos o herói de Robert E. Howard: o cimério Conan, predominantemente egoísta e faminto por poder e aventura, mas ao menos sincero com os outros e consigo mesmo, a ponto de reconhecer a própria vilania. Citemos mais uma vez Rogues in the House. Imediatamente após a morte trágica e violenta de Nabonidus, um dos vilões da história, esta é belamente concluída por um insight tão poético quanto brutalmente honesto de Conan:

- Ele viajou pela estrada que todos os vilões têm de trilhar no fim (...). Ainda quero viajar por muitas estradas antes de trilhar a que Nabonidus conheceu esta noite (HOWARD, Livro II, 2018, p. 31).




Arte de Boris Vallejo



Howard e Nietzsche

Com base naquilo que fora até aqui escrito, sobretudo por nossas associações entre o bárbaro howardiano e expressões como “vontade poder”, poderíamos notar que Conan parece guardar enorme semelhança com o famoso e polêmico Übermensch (o super-homem ou além-do-homem) do filósofo Friedrich Nietzsche. Esta associação não é uma novidade, uma vez que o clássico filme sobre o personagem, estrelado por Arnold Schwarzenegger e dirigido por John Milius, inicia-se com a frase de Nietzsche: “aquilo que não nos mata, faz-nos mais fortes”. De fato, em Genealogia da Moral Nietzsche descreve o homem verdadeiramente nobre em termos que nos fazem lembrar bastante da personalidade bárbara de Conan, como a

magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar à selva – nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: nesta necessidade todos se assemelham. Foram as raças nobres que deixaram na sua esteira a noção de ‘bárbaro’, em toda parte aonde foram; mesmo em sua cultura mais elevada se revela consciência e até orgulho disso (como quando Péricles diz a seus atenienses, naquela famosa oração fúnebre, que “em toda terra e em todo mar a nossa audácia abriu caminho, erguendo para si monumentos imperecíveis no bem e no mal). Esta “audácia” das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se manifesta [...] para aqueles que sofriam com isso, tudo se juntava na imagem do “bárbaro”, do “inimigo mau” [...] (NIETZSCHE, primeira dissertação, §11, p. 32-33).

Até este ponto é fácil tomar o bárbaro de Howard pela “besta loura” nietzscheana. Mas algumas linhas antes Nietzsche também associa esta “besta loura” a uma “sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes”. É discutível se Nietzsche estaria dizendo com isso que o comportamento de um super-humano (e, portanto, o comportamento ideal) fosse o de uma besta cruel e desenfreada. Afinal, a “besta loura” e o Übermensch não são a mesma coisa pura e simplesmente. O super-homem não pode ser um retorno ao animal, mas a superação do homem, conforme escreve Nietzsche no prólogo de Zaratustra, §§ III e IV. Entretanto, a “besta loura” com sua “moral aristocrática”, e o Übermensch, compartilham um princípio fundamental, que é o impulso de autoafirmação, e aquela “fidelidade à terra”, tão exortada por Zaratustra.

O fato é que Conan não me parece encaixar-se inteiramente na descrição de uma “besta loura” cruel e violenta, uma vez que o cimério nunca dá amostras de genuína crueldade (e “tortura” e “violações” podem ser facilmente interpretadas como atitudes cruéis).

Passemos agora a justificar esta assertiva. Na tipologia dos caracteres formulada por Schopenhauer (para quem o caráter humano é ou compassivo, ou egoísta, ou cruel(3)), Conan parece encaixar-se predominantemente no tipo egoísta, com algumas amostras de caráter compassivo que se expressa em sua sólida honradez e atitudes caritativas para com pessoas frágeis, principalmente mulheres. Porém, este ponto também é discutível. É difícil dizer até que ponto o cavalheirismo de Conan é motivado por algum sentimento de compaixão, ou por uma paixão possessiva. Em “O demônio de ferro”, quase na conclusão da história, Conan parecia estar mais interessado em se apropriar de Yasmina do que em apenas protegê-la. Não é o que parece, porém, se levarmos em conta outras histórias, nas quais ele dá amostras de genuína empatia que provocaria admiração em qualquer pessoa com um senso moral tipicamente cristão (por exemplo, em Hour of the Dragon, quando ele coloca sua própria vida em risco para proteger, sozinho, a idosa Zelata dos ataques sádicos de quatro cruéis soldados nemédios; ou quando, em The Black Stranger, após proteger as jovens Tina e Belesa de maneira igualmente altruísta e desinteressada, ainda doa para elas os únicos rubis de que dispunha, para que as jovens não passassem fome; e ainda, em Red Nails, após presenciar tantas atitudes altruístas do bárbaro cimério, Valéria conclui em pensamento que Conan "não é um homem comum"). Mas se excluirmos esta diferença entre Conan e o Übermensch, onde o primeiro possui restrições morais que o segundo talvez não tenha, penso que é possível uma aproximação substancial no que se refere ao forte comprometimento com o impulso ou princípio da vida, que é a vontade de poder (talvez mais puro no Übermensch, mas igualmente intenso em Conan). Em suma, Conan seria um Übermensch sutilmente suavizado por algum sentimento de compaixão ou respeito em relação a pessoas mais frágeis, principalmente se são donzelas. Aliás, o sentimento de compaixão seria o único elemento de aproximação entre Conan e o selvagem rousseauniano, de quem há pouco havíamos afastado completamente. Mas como este sentimento não é monopólio do bom selvagem rousseauniano (o próprio Rousseau reconhecia o senso de compaixão como universal), então não pode ser tratado como um elemento de definição exclusivo do mesmo. Logo, não podemos ensaiar uma aproximação exclusiva entre o bárbaro e o bom selvagem com base apenas nisso. 

Além disso, é preciso lembrar novamente do forte senso de honra de Conan. Temos uma amostra desta extrema honradez (que chega às raias da temeridade) em The People of the Black Circle, quando Conan decide juntar-se aos homens de seu antigo bando ao presenciar os mesmos serem encurralados por um exército superior em números, e isso após estes mesmos homens terem caçá-lo por julgarem erroneamente que ele, Conan, era um traidor! Talvez por isso piratas inescrupulosos como Strom e Zarono (muito parecidos com o César Bórgia que Nietzsche comparou a seu Übermensch em Ecce Homo) sejam figuras perfeitamente compatíveis com o Übermensch, enquanto que a relação deste com Conan seja mais relativa ou apenas aproximativa. Porém, meu palpite é o de que o sentimento de compaixão eventualmente mostrado por Conan nem sempre é totalmente puro ou desinteressado, mas também pode ser acompanhado pelo ímpeto de domínio, conquista e aventura. Mais uma vez, sua relação com Yasmina é emblemática aqui. É difícil explicar seu comportamento para com Yasmina em termos de puro desejo de domínio... mas é igualmente difícil explicá-la em termos de pura e doce compaixão. Mas o que é possível dizer, com certeza, é que Conan não está "para além do bem e do mal", como pretendia estar a filosofia de Nietzsche.

Mas por ora deixemos de lado estas complicadas sutilezas que separam o "bárbaro" howardiano e o "super-homem" nietzscheano, e fiquemos com aquele ponto fundamental que unifica-os. Tal como Conan, o Übermensch é sincero consigo mesmo: sabe que é filho da terra e parte da vida, para além da qual há o nada. Portanto, sabe que nada resta senão afirmar a vida tal como ela é, e a vida é vontade de poder. Os “niilistas” tão criticados por Nietzsche são em essência fracos e covardes que não conseguem lidar com esta dura verdade fundamental, e por isso precisam criar toda uma série de mentiras para proteger seu espírito frágil e melindroso. A moralidade da autonegação e da consequente devoção ao transcendente seriam "mentiras" daquele tipo. Portanto, parece-me correto dizer que as virtudes exigíveis para um Übermensch são duas: a veracidade para consigo mesmo, e a força ou rigor espiritual para encarar esta verdade ao mesmo tempo que se extrai beleza e alegria dela. Exatamente no mesmo sentido se expressa o Conan escrito por Howard, em “Rainha da Costa Negra” (de 1934):

- Não penso em nada que existe além da morte. (...) Quero viver intensamente enquanto puder. (...) Deixe que os professores, sacerdotes e filósofos meditem sobre questões de realidade e ilusão. Sei o seguinte: se a vida é uma ilusão, então eu também sou e, portanto, a ilusão é real para mim. Estou vivo, eu queimo de vida, eu amo, eu mato e isso me basta (HOWARD, Livro II, 2018, p. 83).

Difícil ser mais nietzscheano do que isso. No trecho transcrito expressa-se a rejeição ou indiferença ao transcendente (assim como nos inúmeros momentos em que o maduro Nietzsche desdenha do idealismo epistemológico e da ética da compaixão de seu antigo “educador” -- depois denunciado como “niilista” -- Arthur Schopenhauer) e a correspondente fidelidade ao imanente, único território dentro do qual se articula o grande amor de Conan: a vida, com suas aventuras e conquistas, mas também com suas tragédias e sofrimentos. O mesmo trecho também nos remete a alguns versos do “hino à vida”, poema escrito por Lou Salomé e que deixou Nietzsche bastante impressionado, encontrando forte acolhimento em seu pensamento filosófico:

Como eu te amo, enigmática vida / (...) Enlaça-me com teus dois braços: / Se não tens mais felicidade a dar-me / muito bem, ainda tens a dor (SALOMÉ apud SAFRANSKI, 2005 p. 228).

Sobre a relação de Conan com o transcendente, resta fazer um apontamento. Não podemos esquecer da devoção de Conan ao deus Crom. Mas Crom não está interessado em preparar seus devotos para a morte, mas em fortalecê-los em vida. Tem-se então o inusitado resultado de uma religiosidade que tem no transcendente apenas uma referência quanto à causa (a força e a coragem do guerreiro procedem de Crom), mas que é frágil e até insignificante quanto à finalidade (o mais importante não é para onde se vai ao morrer, mas como se vive). 

E agora podemos retornar àquele questionamento: como é possível encontrar coerência em um personagem tão incoerente do ponto de vista político? Por tudo que fora dito, a resposta é simples: Conan não se encaixa em nenhuma ideologia política pois ele não é orientado por visões políticas filosoficamente definidas. Ele é basicamente um afirmador de sua própria existência, sincero e ao mesmo tempo transparente demais para fugir à obrigação de responder prontamente às demandas deste impulso originário a que chamamos de vida, enfim, um afirmador daquilo que Nietzsche chamou de “vontade de poder”, o que torna-o sempre disposto à aventura e à conquista. Ele eventualmente rouba, pilha, reina ou salva donzelas em perigo porque tudo isso é aventura e conquista. O modelo teórico de explicação sobre Conan não é político, mas nietzscheano: o espírito do personagem localiza-se na questão sobre afirmar ou não a vontade de poder. E a resposta de Howard é um “sim” (talvez com algumas restrições, conforme mostrado acima). Mas não um "sim" ingênuo, típico dos iludidos em relação à vida. Conan é um pessimista. Ele conhece perfeitamente o conteúdo trágico inerente à existência. Entretanto, seu pessimismo é um pessimismo da força, exposto por Nietzsche em seu ensaio de autocrítica que aparece nas edições posteriores de O nascimento da tragédia. Conan é pessimista porque sabe que a vida é dor, luta e sofrimento. Mas é um pessimista forte porque aceita tudo isso, e até mesmo age como se justamente este lado terrível e doloroso fosse seu elemento de engradecimento e auto-justificação. Se a vida tem sentido, é porque ela nos oferece desafios e campos de batalha através dos quais podemos nos fortalecer e, eventualmente, triunfar.  


Portanto, Conan é um personagem politicamente nulo, mas filosoficamente rico. Buscar a política em Conan sempre redundará em imagens disformes e confusas, pois o princípio que unifica o personagem num todo coerente não é político, mas é de natureza moral e filosófica. Conan representa uma postura em relação à vida, mas não em relação à questão sobre como organizar a sociedade. Sua tônica encontra-se na sincera e fiel afirmação da vontade de poder, e suas virtudes são a força e a veracidade, e eventuais amostras de generosidade. Seus vícios são o seu egoísmo como traço predominante de caráter e seu amor por batalhas e violência. Claro, neste ponto Nietzsche o defenderia. Ele nos diria algo como: “digo-te homem puro, humilde e pacífico: você também seria com muito prazer um guerreiro assassino... se apenas tivesse poder para tal. Mas como lhe falta a força, ímpeto e vitalidade para realizar aquilo que você diz condenar, então agora você qualifica como vícios as virtudes que lhe faltam. Você não é bom... é apenas ressentido e invejoso, um caluniador que finge desprezar aquilo que em verdade almeja, mas que não tem disposição para alcançar”(4).


Arte de Bob Larkin



As críticas de Howard à civilização são coerentes?

Por outro lado, é difícil dizer até que ponto o próprio Howard não se deixou envenenar pelo seu próprio ressentimento em relação à civilização (não seria a filosofia de Nietzsche também ressentida em muitos aspectos?). É sabido que artistas e escritores têm certa dificuldade de se adaptar à realidade, motivo pelo qual refugiam-se com facilidade em suas próprias utopias ou sonhos idílicos. O já citado Rousseau com sua conhecida fábula do "bom selvagem" é um exemplo disso; outro exemplo são os inúmeros artistas, acadêmicos e escritores que se deixam levar por tolices ideológicas como o socialismo. Ao menos Howard tinha o mérito de mostrar que, para além da civilização (ou seria para aquém?) não há qualquer paraíso. A vida dura é a mesma em todo lugar. Fora da civilização, ela é apenas mais espontânea e transparente. Mas pesa imensamente contra Howard o fato de que, nas aventuras de seu Conan, quase inexiste por completo referências a velhos, crianças e doentes. Os seres mais sofredores são mulheres, e mesmo assim, elas são sempre belas e saudáveis, e recebem a atenção (e até um certo carinho romântico) do poderoso protagonista. Em um mundo assim(5), qualquer senso cristão de compaixão parece ser um capricho desnecessário, bem como qualquer progresso oferecido por práticas científicas como a medicina. Mas certamente nada disso é supérfluo no mundo real, onde parece faltar guerreiros fortes e magos poderosos, mas abundam doentes e miseráveis. É então importante notar que Howard, apesar de submeter a civilização a críticas, não ofereceu ao seu leitor nenhuma alternativa melhor para a vida humana – a menos, é claro, que você seja um guerreiro imbatível com músculos de aço... neste caso a vida bárbara será sinônimo de conquista, heroísmo e aventura.

Além disso, não podemos esquecer que a civilização que Howard eventualmente criticava ofereceu as condições para que ele próprio pudesse escrever sobre suas fantasias e, em especial, sobre as fantásticas aventuras de seu invencível bárbaro. Também não podemos deixar de mencionar que somente esta terrível civilização garante os meios pelos quais alguém pode formular sua autocrítica. Por isso, a imagem abaixo faz Conan parecer ridículo:


 

Neste diálogo (tirado de alguma história produzida pela Marvel Comics), ele faz considerações críticas à civilização, considerações estas que pressupõem um distanciamento entre sujeito e objeto (uma atitude científica) que só pode ser garantido no contexto de uma vida civilizada, com seus momentos de ócio, lazer, e contatos com livros. Por outro lado, é claro que o quadrinho em questão é obra de algum escritor da Marvel. Até onde pude conhecer de seus trabalhos sobre Conan, Robert E. Howard (um escritor que me pareceu ser dotado de genuíno talento e sensibilidade, tão contrastantes com sua juventude) sempre teve o cuidado de fazer Conan parecer tão cientificamente ingênuo quanto poeticamente profundo, e por isso afastou dele este ar petulante e canastrão. Tomemos como exemplo a conclusão de "O Estranho de Preto", onde Conan critica o fato de que, na civilização, há pessoas "doentes de tanto comer, enquanto outras passam fome" (HOWARD, Livro II, 2018, p. 320). Estas me parecem ser palavras cuja simplicidade ou singeleza são mais apropriadas a um "bárbaro". Quão distante isto está do diálogo mostrado na figura acima, onde o suposto "bárbaro" teria de articular noções abstratas para concluir pela condenação à "manutenção da paz por meio de opressão e extorsão". É como se Conan tivesse acabado de ler um artigo acadêmico de Sociologia. Em "A witch shall be born" ("Uma bruxa nascerá"), Conan também fala de opressão em um diálogo com o fora-da-lei Olgerd Vladislav: "é preciso apressão e privações para embrutecer os homens e atear fogo infernal em seus músculos" (HOWARD, Livro III, 2019, p. 34). Mas aqui é possível sentir novamente a centelha do Übermensch. Não se fala da opressão no choroso tom do vitimista. Conan parece quase louvá-la, enquanto meio de fortalecimento dos músculos e do espírito.  

Mas nas duas categorias de trabalhos – tanto nas críticas mais elegantes e contidas nos contos de Howard, quanto em sua expressão mais desajeitada do quadrinho acima mostrado – o princípio é o mesmo: a rejeição da conditio sine qua non deste mesmo ato de rejeição. Um bárbaro jamais poderia criticar a vida bárbara. Mas não porque a vida bárbara é boa; apenas porque nela não há sequer tempo ou condições de desenvolver  o nível de abstração de pensamento pelo qual se exercita a crítica social. Criticar a civilização – e a "opressão" e "extorsão" que acompanham-na – é um típico cacoete... de homens civilizados. Por isso, no diálogo contido na figura acima, o Capitão América poderia responder: "estranho... você diz desprezar a civilização, enquanto se expressa como um típico homem civilizado". 

Então se quisermos poupar Howard da acusação de incoerência nas suas críticas à “civilização”, talvez a melhor saída seja lê-lo como um crítico não da ideia de civilização em si, mas apenas de alguns aspectos particulares ou consequências específicas e indesejáveis que acompanham a vida civilizada: a languidez, o tédio, a ausência de heroísmo, a neutralização do ímpeto e da coragem, etc. Talvez Howard possa simplesmente ser lido como um crítico do progresso e um cultor da vida simples (não necessariamente fora da civilização) e, em especial, um cultor do homem simples, que não cortou totalmente seus laços com a natureza. Claro, sem jamais nos esquecermos de que este culto não pode ser confundido com alguma visão romântica e utópica. Howard seria um cultor da vida e do homem simples que não esqueceu que esta mesma vida simples só se sustenta no conflito, no esforço e na luta, e que, portanto, o homem simples é sempre um lutador, um guerreiro. Mas pesa contra Howard o fato de que, em seu Conan, ele nunca tenha exposto o assunto deste modo, e por isso fica difícil inocentá-lo, senão mediante esforços hermenêuticos (tais como estes que acabei de fazer).


Últimas considerações

Mas vamos concluir este texto com referências ao que há de melhor na mais famosa criação do grande Robert E. Howard.

Em tempos nos quais prevalecem o vitimismo e a hipocrisia de tanta gente fracassada e ressentida, sempre pronta para disfarçar com discursos feitos e recheados de floreios morais aquilo que não passa de ódio covarde em relação à vida e à realidade, ou que simplesmente tenta mascarar seus próprios impulsos bárbaros de dominação sob a máscara do palavrório solene(6), é realmente reconfortante (como se refugiar na sombra de uma árvore em meio a um desolador e quente deserto) poder ler as aventuras de Conan, o bárbaro sincero e que não se envergonha de sua vontade de poder.

E caso ele existisse, certamente se divertiria com os protestos histéricos daqueles tipos decrépitos (mas secretamente ambiciosos, assim como muitos feiticeiros da “Era Hiboriana”) que caluniassem sua vitalidade, disposição, ousadia, força e coragem por meio da atribuição insistente de jargões como “fascismo” ou “masculinidade tóxica”. 



Notas

1 Todos os trechos citados de Robert E. Howard são das edições recentemente publicadas pelo Pipoca e Nanquim, com traduções de Alexandre Callari. E, diga-se de passagem, o mencionado trabalho de edição é realmente brilhante e altamente recomendável.
2 No primeiro fascículo de A espada selvagem de Conan, da coleção recém-lançada pela Panini, foi publicado um artigo assinado por Lin Carter, onde este aponta como diferencial de Howard em relação a outros escritores que trabalharam sobre os mesmos gêneros literários o fato de que os últimos “tinham uma visão romântica da pré-história”, enquanto que Howard “era realista de maneira sombria – e até amarga”.
3 Em Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer (2001, §18, p. 160 e ss.) diz que o caráter compassivo é aquele que quer o bem de outro; o caráter egoísta, aquele que quer o bem de si mesmo; e o cruel, aquele que quer o mal de outro. Não me lembro de ver Conan agir tendo em vista o mal de outro. Parece-me que ele busca sempre o bem de si mesmo, o que certamente terá como consequência o mal de outro (pensemos nos inúmeros adversários que ele matou). Mas o elemento de definição é a finalidade subjetivamente fixada da conduta: se ele tirou a vida de um adversário apenas porque queria afirmar-se, isto é, adquirir poder para si, então o seu motivo foi egoísta. Diferente seria se ele destruísse o adversário porque a simples morte do adversário, por si só, confere-lhe o motivo norteador mais do que ofereceria sua própria vitória ou triunfo pessoal. Maldade, em sentido estrito, identifica-se com sadismo. Com relação às mulheres, considero um ponto de grande dificuldade. É difícil dizer se Conan salva donzelas porque quer o bem delas, ou porque apenas quer conquistá-las para si, ou por causa de ambas as motivações (ele quer o bem delas, mas também deseja-as para si). No momento, parece-me ser mais verossímil a última opção.
4 Em Assim falou Zaratustra, na parte sobre as “tarântulas”, Nietzsche escreveu sobre os homens supostamente justos e benevolentes: “não esqueçais que, para serem fariseus, falta-lhes apenas o poder”.
5 Há fontes que atestam o interesse de Howard em teosofia. De fato, aquele famoso prefácio associado a Conan, que descreve a Era Hiboriana como um período posterior ao desaparecimento de Atlântida, mas anterior ao “surgimento dos filhos de Aryas” (cujo nome é uma referência ao mito da raça ariana), remete-nos a algumas teorias raciais desenvolvidas no contexto da teosofia de Helena Blavatsky, e que descreve a história das raças como um processo gradual de formação e posterior enfraquecimento e degeneração. Logo, Conan teria vivido em um período onde a fraqueza e a doença não fossem a regra, mas a exceção da vida. De qualquer forma, a vida bárbara tolerável teria por pressuposto uma simples fantasia ou, quando muito, uma hipótese esotérica. Entretanto, é altamente digno de nota que talvez o próprio Robert E. Howard contestasse a qualificação de "simples fantasia" atribuída a suas histórias sobre Conan, uma vez que, em uma carta endereçada ao seu amigo Clark Ashton Smith, datada de 14 de dezembro de 1933, Howard cogitou a hipótese de que as histórias de Conan fossem não criações, mas reminiscências, considerando sua naturalidade e facilidade para escrevê-las, o que não ocorria com outros personagens. Esta carta é mencionada por Lin Carter no quarto capítulo de seu artigo "Crônicas da espada", que por sua vez fora publicado recentemente em nosso país no fascículo 8 da coleção Espada Selvagem de Conan (editora Panini). Howard também manifestou crenças sobre reminiscências de outras vidas em uma conversa com uma amiga sua, Novalyne Price-Ellis, segundo relato da mesma. Certa vez ela questionou-o sobre como ele conhecia tantos detalhes a respeito de Gengis Khan. A resposta de Howard teria sido simplesmente esta: "eu estava lá, moça. Eu cavalguei ao lado de Gengis Khan" (In: https://medium.com/@DBMetcalfe/the-plot-running-like-a-silver-cord-channeling-and-mediumship-on-the-margins-of-literature-a9c380125af1)
5 Vide o recente exemplo de um certo presidente francês.


REFERÊNCIAS

CALLARI, Alexandre. Introdução. In: HOWARD, Robert E. Conan, o bárbaro. Livro I. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2017.

CARTER, Lin. Crônicas da espada. In: VALENTINO, Roberto (editor). A espada selvagem de Conan. Tradução de Klaus Schatten e Paulo Cecconi. São Paulo: Panini, 2018.

HOBBES, Thomas. Leviathan. Edição de C.B.McPherson. Londres: Penguin Group, 1985.

HOWARD, Robert E. Conan, o bárbaro. Livro II. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2018.

HOWARD, Robert E. Conan, o bárbaro. Livro III. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2019.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falava Zaratustra. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial. 2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

A genialidade artística de Curt Swan

Habitualmente atribuímos a qualificação de "patético" a toda manifestação que tende a exagerar o pathos em detrimento de outros elementos (embora o sentido original da palavra fosse um pouco diferente). É por isso que há comovente beleza no choro tímido, quase envergonhado de si próprio, pois ele revela o exato oposto do patético exagerado, isto é: no choro tímido, expressa-se um profundo senso de proporção entre o inevitável sentimento de tristeza e o comedimento racional decorrente do senso de pudor, ou, para dizer tudo isso de modo mais simples, pode-se apontar no choro tímido um sinal externo da harmonia entre sentimento e razão. Aquele que chora timidamente revela com isso que possui emoções; afinal, ele chora, e o choro pressupõe emoção. Entretanto, revela igualmente seu caráter temperante, isto é, autodomínio racional. Em contraste, mostra-se perturbador ao espírito mais sensível qualquer exibição de choro histérico. Portanto, pode-se dizer que mesmo em nossos juízos estéticos manifesta-se o princípio aristotélico da mediania (isto é, a exigência de se permanecer no meio sem cair em qualquer dos extremos), ou o senso de harmonia platônico (segundo o qual a justiça decorre do funcionamento equilibrado entre as diferentes faculdades da alma). Consequentemente, flagra-se aqui a intimidade entre ética e estética, pois tanto o justo quanto o belo sustentam-se sobre uma ordem, uma proporcionalidade intrínseca ou, simplesmente, sobre o Logos*

Um grande artista percebe isso, geralmente não de modo abstrato, mas de maneira intuitiva. A consequência será a de que sua arte se tornará a expressão estética da referida proporcionalidade intrínseca. Grande exemplo do que estou tentando dizer podemos encontrar no trabalho do brilhante desenhista Curt Swan. Analisemos a imagem abaixo, desenhada por Swan, e comparemos a mesma ao desenho feito por Phil Jimenez:

Arte de Curt Swan

Arte de Phil Jimenez

Aqui se percebe o quão grandiosa é a sensibilidade artística de Curt Swan. Quando um artista razoável como Phil Jimenez desenha o Superman chorando, ele reduz o Homem-de-Aço a uma criatura exageradamente patética, e por isso vulgar, cujo pranto histérico apenas denuncia uma alma fraca e melindrosa, a verdadeira expressão da ruptura com o Logos, que exige harmonia entre razão e emoção. Aos olhos do espectador sensível, o resultado não é comovente, mas constrangedor. Sentimos vergonha por este escandaloso "superman". 

Mas quando o mesmo personagem chora através dos traços de Swan, o resultado é o oposto: miramos na face do herói a profunda melancolia de seu espírito, e sentimos que o mesmo é tão nobre quanto inevitavelmente esmagado pelo peso da tragédia e da culpa, e assim, aos olhos do espectador, o comedimento da razão e a doçura do sentimento encontram-se todos na mesma proporção. O Logos, rompido em Jimenez, está plenamente conservado em Swan. 

Na verdade, graças ao incrível senso estético de Swan, o Superman é engrandecido perante o leitor, que agora não tem escolha senão emocionar-se diante do justo sofrimento do herói. E por que sabemos que seu sofrimento é justo? Muito mais do que pelas circunstâncias descritas na história, a arte fala por si, e nela contempla-se aquilo que chamamos há pouco de "choro tímido, quase envergonhado de si próprio", no qual é possível intuir o "profundo senso de proporção ou harmonia entre o inevitável sentimento de tristeza e o comedimento racional decorrente do senso de pudor". 

A arte de Swan faz-nos sentir que, em seu Superman, não se trata de um espírito fraco e histérico, fragilizado pelo fardo do próprio temperamento, mas de um caráter forte, plenamente preenchido pelo equilíbrio e retidão do Logos, dotado de total proporcionalidade intrínseca, e que só se permitiria ao choro por causa do insuportável peso de uma terrível tragédia, e assim, o milagre acontece: a enigmática união, em uma mesma imagem, entre o pranto e a virtude, culpa e a nobreza, tragédia e heroísmo, e o sofrimento e a beleza. 


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* Para o leitor que queira compreender melhor esta unidade entre proporcionalidade intrínseca e logos, recomendo a leitura das obras Pitágoras e o Tema do Número e Filosofia Concreta, ambas de Mário Ferreira dos Santos.