sábado, 5 de maio de 2018

Thanos de “Vingadores – Guerra Infinita”: um vilão realmente perigoso




Vamos começar justificando o título deste texto: por que afirmo que a versão cinematográfica de Thanos tornou-o realmente perigoso? Nos quadrinhos ele já não era o mais perigoso vilão da Marvel? Sim, ele era. Mas isso não fazia dele algo realmente perigoso. E por quê? Porque em minha forma de entender, um vilão realmente perigoso é aquele que consegue seduzir o leitor (ou telespectador), pois muito mais relevante do que surrar heróis fictícios em um mundo fictício, é a capacidade que uma ideia possui de subverter a imaginação moral das pessoas reais. E o Thanos cinematográfico é uma ideia com este poder. Agora vejamos os fundamentos desta afirmação.

Há uma pequena diferença entre o Thanos dos quadrinhos, originalmente concebido pelo grande Jim Starlin, e o Thanos que aparece no último filme dos Vingadores: o primeiro é um amante da Morte, e o desejo de conquistar sua amada constitui sua principal motivação, daí o seu desejo de aniquilar toda a vida; o segundo, ao contrário, é um ser dedicado à melhoria das condições de vida. Ele insiste que a vida se sustenta dentro de um equilíbrio com a morte, e que este equilíbrio, quando rompido, tem por consequência a decadência da vida, que é o sofrimento dos seres vivos. Quando há mais geração de vida do que morte, a consequência é a escassez dos meios materiais que sustentam a vida (se mais pessoas se alimentam, menos alimento sobra). Aparentemente, esta versão de Thanos é sensível o bastante para se revoltar com o sofrimento sentido pelos seres vivos, daí seu objetivo de restabelecer o equilíbrio entre vida e morte, por meio da aniquilação pura e simples dos seres vivos “excedentes”. Porém, Thanos insiste que esta aniquilação precisa ser aleatória – isto é, não deve haver privilegiados ou escolhidos - do contrário seria injusta. Isto é, além de sensível ao sofrimento causado pelas limitações materiais inerentes à existência, Thanos também pretende ser justo.

Portanto, se o Thanos de Starlin é um niilista, um cultor do Nada, amante da Morte, o Thanos de “Guerra Infinita” é um ideólogo, um ser apaixonado pela ideia de meliorismo das condições materiais de vida. E é este o ponto em que eu queria chegar. Um niilista pode parecer atraente a algumas pessoas, uma pequena minoria de amargurados em relação à vida. Mas o ideólogo é capaz de seduzir a grande maioria das pessoas de nosso tempo, pois a obsessão pelo meliorismo terreno, pela realização de paraísos terrestres, constitui a mais poderosa ilusão moderna.

O Thanos de Jim Starlin também se mostra eventualmente preocupado com o equilíbrio entre vida e morte, mas sua motivação mais fundamental é sempre a de agradar a Morte.

Para resistir aos encantos da versão cinematográfica de Thanos  (e de qualquer ideólogo da vida real), o telespectador precisa possuir uma alta envergadura espiritual, força moral suficiente para suportar a metaxy platônica ou a tensão cristã, e assim aceitar que o real e o ideal devem permanecer separados, como condição de sua complementaridade. Thanos é uma expressão da mentalidade moderna que deseja romper esta fronteira (entre o real e o ideal), fundindo ao real o nosso ideal.

Uma boa explicação destas noções o leitor poderá encontrar no excelente livro “Revolta contra a modernidade”, de Ted V. McAllister1. Nele, McAllister analisa as ideias (e críticas) de Leo Strauss e Eric Voegelin sobre a mentalidade moderna. Enquanto Strauss destaca o problema do relativismo moral e sua contribuição para o enfraquecimento do espírito do homem moderno, Voegelin concentra suas críticas no mal da ideologia. McAllister, parafraseando Voegelin, define ideologia como “um sistema intelectual fechado, no qual o conhecimento humano serve como meio para a realização do contentamento terreno” (MCALLISTER, 2017, p. 39). A ideologia depende da fé na possibilidade de realização do “contentamento terreno”. Esta fé, por sua vez, baseia-se naquilo que podemos chamar, a partir de Voegelin, de “imanentização dos símbolos de transcendência”.

Sistemas de crença tradicionais como o cristianismo nos oferecem símbolos de salvação, uma escatologia que dá sentido à história. Porém, esta salvação e essa escatologia permanecem transcendentes, no sentido de que não se confundem com uma vida ou realização terrenas. O paraíso cristão não é deste mundo, e nem a salvação cristã se realiza neste mundo. O ideólogo, que é nada mais do que o messias politizado (e, portanto, é um falso messias), apropria-se deste simbolismo transcendente e aplica-o ao mundo imanente, isto é, ao mundo material que vivenciamos por intermédio de nosso corpo e seus sentidos. Assim, o promessa cristã de salvação, que dentro da lógica cristã deve permanecer transcendente (referente a um outro mundo e a um outro modo de existência), degenera-se em promessa de salvação terrena, de contentamento terreno, que há de realiza-se neste mundo, neste mesmo modo de existência. A salvação da alma degenera-se em salvação do corpo.

Meu exemplar de "Revolta contra a modernidade", de McAllister.

Obviamente, animado pela promessa de contentamento terreno e por isso insensível à ideia de salvação transcendente, o homem moderno perde todos os escrúpulos em relação aos meios que conduzem àquele fim. Se só existe este mundo, então tudo vale para torná-lo melhor. Neste contexto, a aniquilação de alguns como condição sine qua non da promoção da alegria de muitos já não parece ser uma ideia absurda; ao contrário: torna-se moralmente justificável, e até necessária. E assim, surgem os Stalins, Mussolinis, Hitlers, Maos, e outros ideólogos mais sutis, mas que possuem em comum esta perturbadora aura de messianismo político comprovada pela devoção cega e acrítica de seus seguidores.

Como fábula de super-heróis, “Guerra Infinita” cumpre sua mais sublime missão: Thanos, o ideólogo, apesar de encantador, não deixa de ser mostrado como o vilão da história, contra quem os bons heróis devem lutar. A ideia de realização de paraísos terrestres não deve sobrepor-se à santidade da vida, e a realidade, mesmo que acompanhada de tantas dores e dificuldades, precisa ser incondicionalmente preservada diante da vaidade de revolucionários enlouquecidos.




1 MCALLISTER, Ted V. Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. São Paulo: É Realizações, 2017.

2 comentários:

  1. Oi Rogério, tudo bem?

    Achei muito bacana o seu blog e seus artigos, Parabéns!
    Estou escrevendo meu TCC sobre Guerra Infinita. Na verdade, a intenção é construir uma metáfora de Thanos como sendo a personificação do neoliberalismo e, junto a isso, traçar paralelos dos demais personagens com outros componentes da nossa Sociedade.
    Se tiver dicas de autores para eu poder utilizar ou quiser saber um pouco mais, seria ótimo!

    Abraços.

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  2. Oi, Milena. Muito obrigado pelos elogios. Parabéns pela iniciativa do TCC. Minhas dicas seriam as seguintes:

    1) se o conceito de "neoliberalismo" irá ocupar um lugar central em seu trabalho, eu recomendaria que você dedicasse um bom espaço para definir cuidadosamente o que se pode entender por "neoliberalismo" no contexto do seu TCC, uma vez que este termo tem sido utilizado exageradamente nos últimos anos de maneira muito imprecisa, muitas vezes se referindo a coisas completamente diferentes entre si. Ainda pior é o sentido pejorativo em que o termo é muitas vezes empregado, como se o mesmo significasse apenas um sistema econômico desumano onde prevalece a lei do mais forte, criado especificamente para beneficiar apenas grandes corporações e estabelecer monopólios no mercado. Poucas pessoas em sã consciência defenderiam teorias deste tipo. Assim, muitas vezes o termo "neoliberalismo" é apenas utilizado como uma forma de caluniar certas ideias e princípios originários do liberalismo clássico, sem que estas mesmas ideias e princípios sejam avaliadas de forma séria e imparcial por seus críticos. Por todos estes motivos, eu prefiro me utilizar do termo "liberalismo clássico", cujo significado é mais bem definido na literatura política e econômica.

    2) Assim, minha segunda dica seria: procure ler os grandes teóricos do liberalismo clássico, antes de dar atenção a seus detratores. O liberalismo clássico possui tanto uma aplicação econômica quanto política. No campo econômico, eu aconselharia de início o estudo da obra "Riqueza das nações", de Adam Smith, e, como obra mais contemporânea, "Ação humana", de Ludwig von Mises. No que diz respeito à abrangência política do liberalismo, eu recomendaria "O segundo tratado de governo civil", de John Locke, e como trabalho mais contemporâneo, "O caminho da servidão", de Hayek.

    3) No que diz respeito às críticas a certos aspectos do liberalismo clássico (principalmente os aspectos políticos), eu recomendo este trabalho citado nesta postagem, "Revolta contra a modernidade", de McAllister. Outro autor que respeito muito e que faz críticas realmente inteligentes a certas premissas do liberalismo clássico é o americano Russell Kirk. Dele, recomendo dois trabalhos: "A política da prudência" e "Conservative mind" (este último não sei se tem tradução brasileira).

    Claro que há muito mais para ser investigado e estudado relativamente a este assunto, mas estas dicas seriam apenas um ponta-pé inicial para um estudo que julgo ser mais vantajoso.

    Espero ter ajudado, Milena! Mais uma vez, muito obrigado pela visita e comentários.

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