Vamos começar justificando o título deste texto: por que
afirmo que a versão cinematográfica de Thanos tornou-o realmente perigoso? Nos quadrinhos ele já não era o mais perigoso
vilão da Marvel? Sim, ele era. Mas isso não fazia dele algo realmente perigoso. E por quê? Porque em
minha forma de entender, um vilão realmente
perigoso é aquele que consegue seduzir o leitor (ou telespectador), pois muito
mais relevante do que surrar heróis fictícios em um mundo fictício, é a
capacidade que uma ideia possui de subverter a imaginação moral das pessoas
reais. E o Thanos cinematográfico é uma ideia com este poder. Agora vejamos os
fundamentos desta afirmação.
Há uma pequena diferença entre o Thanos dos quadrinhos,
originalmente concebido pelo grande Jim Starlin, e o Thanos que aparece no
último filme dos Vingadores: o primeiro é um amante da Morte, e o desejo de
conquistar sua amada constitui sua principal motivação, daí o seu desejo de
aniquilar toda a vida; o segundo, ao contrário, é um ser dedicado à melhoria
das condições de vida. Ele insiste que a vida se sustenta dentro de um
equilíbrio com a morte, e que este equilíbrio, quando rompido, tem por
consequência a decadência da vida, que é o sofrimento dos seres vivos. Quando
há mais geração de vida do que morte, a consequência é a escassez dos meios
materiais que sustentam a vida (se mais pessoas se alimentam, menos alimento
sobra). Aparentemente, esta versão de Thanos é sensível o bastante para se
revoltar com o sofrimento sentido pelos seres vivos, daí seu objetivo de
restabelecer o equilíbrio entre vida e morte, por meio da aniquilação pura e
simples dos seres vivos “excedentes”. Porém, Thanos insiste que esta
aniquilação precisa ser aleatória – isto é, não deve haver privilegiados ou
escolhidos - do contrário seria injusta. Isto é, além de sensível ao sofrimento
causado pelas limitações materiais inerentes à existência, Thanos também pretende
ser justo.
Portanto, se o Thanos de Starlin é um niilista, um cultor do
Nada, amante da Morte, o Thanos de “Guerra Infinita” é um ideólogo, um ser
apaixonado pela ideia de meliorismo das condições materiais de vida. E é este o
ponto em que eu queria chegar. Um niilista pode parecer atraente a algumas pessoas,
uma pequena minoria de amargurados em relação à vida. Mas o ideólogo é capaz de
seduzir a grande maioria das pessoas de nosso tempo, pois a obsessão pelo
meliorismo terreno, pela realização de paraísos terrestres, constitui a mais
poderosa ilusão moderna.
O Thanos de Jim Starlin também se mostra eventualmente preocupado com o equilíbrio entre vida e morte, mas sua motivação mais fundamental é sempre a de agradar a Morte.
Para resistir aos encantos da versão cinematográfica de Thanos (e de qualquer ideólogo
da vida real), o telespectador precisa possuir uma alta envergadura espiritual,
força moral suficiente para suportar a metaxy
platônica ou a tensão cristã, e assim aceitar que o real e o ideal devem
permanecer separados, como condição de sua complementaridade. Thanos é uma expressão da mentalidade
moderna que deseja romper esta fronteira (entre o real e o ideal), fundindo ao
real o nosso ideal.
Uma boa explicação destas noções o leitor poderá encontrar
no excelente livro “Revolta contra a modernidade”, de Ted V. McAllister1. Nele, McAllister analisa as ideias (e críticas)
de Leo Strauss e Eric Voegelin sobre a mentalidade moderna. Enquanto Strauss
destaca o problema do relativismo moral e sua contribuição para o
enfraquecimento do espírito do homem moderno, Voegelin concentra suas críticas
no mal da ideologia. McAllister, parafraseando Voegelin, define ideologia como
“um sistema intelectual fechado, no qual o conhecimento humano serve como meio
para a realização do contentamento terreno” (MCALLISTER, 2017, p. 39). A
ideologia depende da fé na possibilidade de realização do “contentamento
terreno”. Esta fé, por sua vez, baseia-se naquilo que podemos chamar, a partir
de Voegelin, de “imanentização dos símbolos de transcendência”.
Sistemas de crença tradicionais como o cristianismo nos oferecem símbolos de salvação, uma escatologia que dá sentido à história. Porém, esta salvação e essa escatologia permanecem transcendentes, no sentido de que não se confundem com uma vida ou realização terrenas. O paraíso cristão não é deste mundo, e nem a salvação cristã se realiza neste mundo. O ideólogo, que é nada mais do que o messias politizado (e, portanto, é um falso messias), apropria-se deste simbolismo transcendente e aplica-o ao mundo imanente, isto é, ao mundo material que vivenciamos por intermédio de nosso corpo e seus sentidos. Assim, o promessa cristã de salvação, que dentro da lógica cristã deve permanecer transcendente (referente a um outro mundo e a um outro modo de existência), degenera-se em promessa de salvação terrena, de contentamento terreno, que há de realiza-se neste mundo, neste mesmo modo de existência. A salvação da alma degenera-se em salvação do corpo.
Sistemas de crença tradicionais como o cristianismo nos oferecem símbolos de salvação, uma escatologia que dá sentido à história. Porém, esta salvação e essa escatologia permanecem transcendentes, no sentido de que não se confundem com uma vida ou realização terrenas. O paraíso cristão não é deste mundo, e nem a salvação cristã se realiza neste mundo. O ideólogo, que é nada mais do que o messias politizado (e, portanto, é um falso messias), apropria-se deste simbolismo transcendente e aplica-o ao mundo imanente, isto é, ao mundo material que vivenciamos por intermédio de nosso corpo e seus sentidos. Assim, o promessa cristã de salvação, que dentro da lógica cristã deve permanecer transcendente (referente a um outro mundo e a um outro modo de existência), degenera-se em promessa de salvação terrena, de contentamento terreno, que há de realiza-se neste mundo, neste mesmo modo de existência. A salvação da alma degenera-se em salvação do corpo.
Meu exemplar de "Revolta contra a modernidade", de McAllister.
Obviamente, animado pela promessa de contentamento terreno e
por isso insensível à ideia de salvação transcendente, o homem moderno perde
todos os escrúpulos em relação aos meios que conduzem àquele fim. Se só existe este mundo, então tudo vale para torná-lo melhor. Neste contexto, a aniquilação
de alguns como condição sine qua non
da promoção da alegria de muitos já não parece ser uma ideia absurda; ao
contrário: torna-se moralmente justificável, e até necessária. E assim, surgem
os Stalins, Mussolinis, Hitlers, Maos, e outros ideólogos mais sutis, mas que possuem
em comum esta perturbadora aura de messianismo político comprovada pela devoção
cega e acrítica de seus seguidores.
Como fábula de super-heróis, “Guerra Infinita” cumpre sua
mais sublime missão: Thanos, o ideólogo, apesar de encantador, não deixa de ser
mostrado como o vilão da história, contra quem os bons heróis devem lutar. A
ideia de realização de paraísos terrestres não deve sobrepor-se à santidade da
vida, e a realidade, mesmo que acompanhada de tantas dores e dificuldades,
precisa ser incondicionalmente preservada diante da vaidade de revolucionários
enlouquecidos.
1 MCALLISTER,
Ted V. Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de
uma ordem pós-liberal. São Paulo: É Realizações, 2017.
Oi Rogério, tudo bem?
ResponderExcluirAchei muito bacana o seu blog e seus artigos, Parabéns!
Estou escrevendo meu TCC sobre Guerra Infinita. Na verdade, a intenção é construir uma metáfora de Thanos como sendo a personificação do neoliberalismo e, junto a isso, traçar paralelos dos demais personagens com outros componentes da nossa Sociedade.
Se tiver dicas de autores para eu poder utilizar ou quiser saber um pouco mais, seria ótimo!
Abraços.
Oi, Milena. Muito obrigado pelos elogios. Parabéns pela iniciativa do TCC. Minhas dicas seriam as seguintes:
ResponderExcluir1) se o conceito de "neoliberalismo" irá ocupar um lugar central em seu trabalho, eu recomendaria que você dedicasse um bom espaço para definir cuidadosamente o que se pode entender por "neoliberalismo" no contexto do seu TCC, uma vez que este termo tem sido utilizado exageradamente nos últimos anos de maneira muito imprecisa, muitas vezes se referindo a coisas completamente diferentes entre si. Ainda pior é o sentido pejorativo em que o termo é muitas vezes empregado, como se o mesmo significasse apenas um sistema econômico desumano onde prevalece a lei do mais forte, criado especificamente para beneficiar apenas grandes corporações e estabelecer monopólios no mercado. Poucas pessoas em sã consciência defenderiam teorias deste tipo. Assim, muitas vezes o termo "neoliberalismo" é apenas utilizado como uma forma de caluniar certas ideias e princípios originários do liberalismo clássico, sem que estas mesmas ideias e princípios sejam avaliadas de forma séria e imparcial por seus críticos. Por todos estes motivos, eu prefiro me utilizar do termo "liberalismo clássico", cujo significado é mais bem definido na literatura política e econômica.
2) Assim, minha segunda dica seria: procure ler os grandes teóricos do liberalismo clássico, antes de dar atenção a seus detratores. O liberalismo clássico possui tanto uma aplicação econômica quanto política. No campo econômico, eu aconselharia de início o estudo da obra "Riqueza das nações", de Adam Smith, e, como obra mais contemporânea, "Ação humana", de Ludwig von Mises. No que diz respeito à abrangência política do liberalismo, eu recomendaria "O segundo tratado de governo civil", de John Locke, e como trabalho mais contemporâneo, "O caminho da servidão", de Hayek.
3) No que diz respeito às críticas a certos aspectos do liberalismo clássico (principalmente os aspectos políticos), eu recomendo este trabalho citado nesta postagem, "Revolta contra a modernidade", de McAllister. Outro autor que respeito muito e que faz críticas realmente inteligentes a certas premissas do liberalismo clássico é o americano Russell Kirk. Dele, recomendo dois trabalhos: "A política da prudência" e "Conservative mind" (este último não sei se tem tradução brasileira).
Claro que há muito mais para ser investigado e estudado relativamente a este assunto, mas estas dicas seriam apenas um ponta-pé inicial para um estudo que julgo ser mais vantajoso.
Espero ter ajudado, Milena! Mais uma vez, muito obrigado pela visita e comentários.