quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O que podemos aprender com 007 e por que Roger Moore foi seu melhor intérprete

 

 


Quando dedico meu tempo a assistir algum filme ou ler alguma obra de ficção, faço-o não somente na esperança de obter algum entretenimento, mas também motivado pelo desejo de aprender algo. Com os filmes e livros do agente secreto 007 não é diferente. Mas o que a criação do escritor Ian Fleming teria a me ensinar?

Penso que James Bond representa um ideal de postura masculina que tem se perdido cada vez mais. E se o ensino se dá em grande parte pelo exemplo, então é válido prestar atenção nos exemplos imaginários de conduta e caráter de James Bond. O velho agente britânico ainda se coloca na tradição de heróis ocidentais que incorporam as quatro virtudes cardeais: a inteligência, a coragem, a temperança e a justiça. Talvez alguém possa se surpreender quando associo James Bond e temperança, em razão de sua fama de bon vivant e mulherengo. Mas acredito que essa seja uma interpretação superficial do personagem. É verdade que Bond é um apreciador de vodca martini ("shaken, not stirred") e ávido colecionador de mulheres. Porém, suas predileções privadas não diminuem em nada seu senso de dever: em primeiro lugar vêm sempre os imperativos do “serviço secreto de Sua Majestade”[1].

Bond parece representar o homem que, apesar de suas vocações mundanas, não deixou de cultivar a virtude da sabedoria e, por isso mesmo, embora aceite viver esse mundo e desfrutar dos prazeres que o mesmo oferece, não se esquece que tais prazeres são transitórios, traiçoeiros e volúveis. No capítulo 16 do livro Viva e deixe morrer (Live and let die), escrito por Ian Fleming, Bond tem um momento de introspecção no qual diz a si mesmo: "a vida inteira é um jogo de cartas com a morte". No capítulo 7 de Cassino Royale, Fleming descreve parte da psique de Bond nos seguintes termos: "um dia (e ele aceitava esse fato) ele seria colocado de joelhos pelo amor ou pela sorte. Quando isso acontecesse, ele sabia que também seria marcado pelo mortal sinal de interrogação que reconhecera tão frequentemente nos outros, a promessa de pagar antes de perder: a aceitação da falibilidade". James Bond não afirma este mundo porque está cegado pelo próprio apetite animal de gozá-lo, como no caso da maioria das pessoas. Ao contrário: sua aceitação deste mundo é consciente, calculada e livre de falsas expectativas — e esta é a única aceitação digna de um verdadeiro homem amadurecido. Daí porque se opera em Bond a curiosa síntese entre o bon vivant e o estoico, e porque o agente britânico conserva sua tranquilidade e firmeza aristocráticas tanto nos momentos de cumprimento do dever quanto nos momentos de fruição dos prazeres.

Pois bem: de todos os intérpretes de 007 no cinema, penso que nenhum ator incorporou com tanta naturalidade esta postura do virtuoso aristocrático quanto o ator inglês Roger Moore. Exemplo emblemático do que estou tentando dizer podemos encontrar numa cena em particular do filme Octopussy. Após passar a noite com Magda (que é funcionária do vilão Kamal Khan), o Bond de Roger Moore descobre tarde demais que estava sendo enganado pela moça: ele só tem tempo de observá-la escapar pela janela de seu quarto carregando um item precioso. Qual a reação do 007? Irritação? Estupefação? Fúria? Desejo de vingança? Nada disso: seu semblante é de tranquila ironia [2], e seu comportamento, de frieza e concentração. No fundo, Bond não nutria grandes esperanças em relação à moça. O herói de Ian Fleming sabe o quanto a sorte é traiçoeira e o quão volúveis são as ofertas deste mundo. E Roger Moore esboçava como ninguém em seu semblante esse tipo de percepção. É como se, diante da traição sofrida por James Bond, o ator inglês estivesse tranquilamente nos dizendo sobre a garota (mesmo sem pronunciar uma única palavra naquele momento): “ora, ora… e não é que minhas péssimas expectativas a respeito dela foram confirmadas?”.

Em menor medida, também Sean Connery conseguia representar esse tipo de postura e expressão, e por isso ele é meu intérprete favorito depois de Roger Moore. Em contraste, não tenho muita simpatia pela versão do último Bond, interpretado pelo festejado Daniel Craig. Penso que esse Bond mais moderno está contaminado pelo atual afã de confundir rispidez e seriedade: hoje tudo tem de ser grave e recheado de explosões emocionais, ou, ao menos, temperado por constantes expressões de rancor, pois, do contrário, não se é suficientemente sério ou “realista” (como se a realidade não nos desse motivo para rir de vez em quando) [3]. O Bond de Daniel Craig é por vezes rancoroso demais para mim, como é constantemente rancorosa toda a gentinha juvenil desta geração. Mas o rancor é a típica reação de pessoas que não cultivaram sabedoria suficiente para perceber como este mundo funciona e, por consequência disso, esperam ansiosamente dele aquilo que ele não pode dar, ou aguardam angustiadas que ele se torne aquilo que nunca foi e nunca será. Da ausência daquele tipo de compreensão sobre o mundo resulta a frustração de expectativas fantasiosas, e desse tipo de frustração resulta o rancor. Logo, com sua expressão sempre rancorosa, o Bond de Daniel Craig revela carecer justamente daquela madura e elegante resignação, daquele sarcasmo espirituoso que tanto caracterizam James Bond no imaginário popular e o individualizam em relação a outros aventureiros fictícios que têm nas próprias habilidades físicas e no domínio de armas de fogo a principal fonte de resolução de seus problemas. Sem seu tom altaneiro, sua maturidade, elegância e espirituosidade, no que James Bond se diferencia de um Jason Bourne?

Mas se aquelas qualidades faltam no James Bond de Daniel Craig, elas transbordam no James Bond de Roger Moore, em cuja interpretação sabia alternar naturalmente entre o leve semblante espirituoso, típico do homem experiente que entendeu como este mundo absurdo funciona e por isso não se ressente mais dele, e o sério olhar concentrado (mas jamais virulento) do frio agente que tem um dever a cumprir. Ninguém soube representar de modo tão natural quanto Roger Moore essa mistura aristocrática, em um mesmo homem, da frieza do guerreiro com a espirituosidade do sábio, e penso que é nessa mistura que está a essência de James Bond - ou, ao menos, daquele James Bond que pode nos ensinar algo, na medida em que nos oferece um modelo de conduta masculina ideal: um modelo rico em virtudes e livre de afetações.    

 


Notas
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[1] Lembremos do diálogo entre Bond e uma amante sua na icônica abertura do filme O espião que me amava (The spy who loved me): 

- Where are you going?
- Sorry darling, something came up.
- But James... I need you!
- So does England.

[2] No livro Casino Royale, Ian Fleming fornece ao leitor a oportunidade de penetrar na caracterologia de Bond, ao descrever sua expressão facial: "his grey-blue eyes looked calmly back with a hint of ironical inquiry" (capítulo 8). Bond tem uma expressão "calma" com um "traço de inquirição irônica". Essa me parece ser também a expressão facial mais típica de Roger Moore ao interpretar Bond. Essa também é a expressão predominante na interpretação de Connery, Brosnan e Lazenby. Já Timothy Dalton e Daniel Craig transmitem maior apatia e frieza, embora o Casino Royale de Fleming possa, em igual medida, endossar esse tipo de interpretação. Ao conhecer Bond, Vesper diz "he reminds me rather Hoagy Carmichael, but there is something cold and ruthless in his..." (capítulo 5).  

[3] Algumas pessoas, quando querem criticar a fase Moore, mencionam o fato de que o mesmo se fantasiou de palhaço no filme Octopussy. De minha parte, julgo que a cena mais embaraçosa de toda a franquia de 007 não é a do Moore palhaço, mas aquele momento histriônico de Casino Royale, em que Daniel Craig e Eva Green decidem compartilhar suas mágoas abraçados, de roupa, sob o chuveiro ligado – típico exagero dramático que tão bem traduz o pathos excessivamente sentimentalista deste século XXI e que por isso hoje é bastante levado a sério, mas que certamente será ridicularizado pela posteridade.