Os Cavaleiros do Zodíaco no clássico design de Shingo Araki e Mich Himeno (com base no trabalho original de Masami Kurumada)
Revisitando alguns episódios do
clássico anime “Cavaleiros do Zodíaco” (ou Saint
Seiya, como é conhecido internacionalmente), deparei-me com um intrigante
diálogo entre Máscara da Morte (o corrupto e cruel cavaleiro de ouro do signo
de Câncer) e Mestre Ancião (cavaleiro de ouro do signo de Libra e mestre de Shiryu), no qual testemunhamos uma apaixonada defesa do
absolutismo moral, e consequente oposição ao relativismo moral.
Primeiro, cabe aqui alguns
esclarecimentos: por “absolutismo moral” entendo aquela doutrina segundo a qual
qualidades morais – como “certo” e “errado”, “ético” ou “antiético”, “moral” ou
“imoral”, “justo” ou “injusto”, “bom” ou “mau” – não podem ser intercambiadas, de
maneira que aquilo que é moralmente correto jamais há de ser confundido como o
moralmente errado, e um valor moral (tal como “vida” ou “propriedade” ou “bem”)
jamais há de ser confundido com um desvalor moral (como “assassinato” ou
“roubo” ou “mal”).
Diferentemente, por “relativismo
moral” entendo a doutrina segundo a qual qualidades ou valores morais não são
absolutamente distintos em si mesmos,
por serem aqui considerados elementos convencionados e subjetivamente
condicionados, de maneira que aquilo que é considerado injusto hoje, pode
facilmente ser considerado justo amanhã, e vice-versa, a depender das opiniões
e conveniências humanas. Para o relativista, não há critérios morais de
julgamento que sejam absolutos.
Obviamente, em função dos limites
naturais da capacidade de julgamento humano, o absolutista tem de admitir a
possibilidade de situações concretas nas quais o julgamento moral (inclusive
dele próprio) se torne difícil. Mas isso não significa que estas situações, quando
consideradas em si, não sejam
definidas de um ponto de vista moral; significa apenas que nós não conseguimos defini-las com precisão. Considerado em si, o
justo não se confunde jamais com o injusto, ainda que nem sempre nós, seres
humanos imperfeitos, sejamos capazes de notar a diferença.
O absolutismo moral encontra
forte paralelo com aquilo que eu gostaria de chamar de absolutismo
epistemológico: para este, a verdade jamais se confunde com a mentira, ou a
realidade, com a ilusão. É possível que nós nos enganemos em função de nossos
limites cognitivos, e eventualmente confundamos uma ilusão com a realidade. Mas
isso não significa que ilusão e realidade, ou verdade e mentira, sejam noções
intercambiáveis; significa apenas que nós não conseguimos separá-las em razão
de nossa própria incapacidade, embora considerados em si estes entes sempre sejam absolutamente distintos. Do fato de
que eu tenha visto ao longe um cavalo, e confundido-o com um unicórnio, não
muda o fato de que em si ele continua
a ser um simples cavalo.
Pois bem: tendo estas noções em
conta, pode-se notar que o sábio Mestre Ancião aparece como um legítimo
defensor do absolutismo moral, enquanto que o pedante e vaidoso Máscara da
Morte (embora bastante carismático, em minha opinião), apresenta-se como um
propagador do relativismo moral. Assim segue o diálogo, que acredito ter sido
mostrado no 39º episódio da “Saga do Santuário”[1]:
Máscara da Morte: - As definições de justiça mudam com o
passar do tempo; isso é uma coisa que a História já provou. O que Ares pretende
fazer agora pode ser diabólico, mas vencendo, ele será o justo. Ou seja,
Mestre: o errado pode se tornar o certo; se o senhor perder, o injusto passa a
ser o senhor. Está entendendo, Mestre Ancião?
Mestre Ancião: - Seu tolo!
Máscara da Morte: - O que disse?
Mestre Ancião: - A injustiça nunca se torna justiça. E é
a própria história humana que prova que isso é verdade. Os impérios que
possuíam exércitos poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História:
este é o destino das forças do mal. O mal nunca deixará de ser o que é. E o bem
é uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta
verdade nesta grande correnteza da vida2.
Logo, percebe-se que para o
Máscara da Morte a justiça não passa de uma convenção momentânea subjetivamente
condicionada. Mais precisamente, a justiça é apenas uma convenção imposta pelo
mais forte, pelo vencedor do conflito. Esta definição nos conduz ao Livro I da
obra “A República”, de Platão. Nele, Sócrates dialoga com o sofista Trasímaco
que, seguindo a tendência geral dominante entre os sofistas, apresenta-se como
um cínico relativista. Para Trasímaco, a justiça “não é outra coisa senão a
conveniência do mais forte” (338a-e). E vai mais além ao argumentar que a
injustiça é mais útil e proveitosa do que a justiça, na medida em que esta
serve apenas para restringir o súdito ou o fraco, enquanto que aquela é o meio
pelo qual o tirano satisfaz seus desejos e apetites (343a-e).
Mestre Ancião
Se Máscara da Morte é Trasímaco,
o Mestre Ancião é Sócrates (ou Platão). Sócrates ataca primeiro a posição de
Trasímaco em seu elemento utilitarista: para Sócrates, a injustiça não consegue
ser mais útil do que a justiça, nem mesmo para o homem injusto. E para explicar
esta asserção, Sócrates argumenta que, mesmo nos exércitos mais injustos e
cruéis, deve prevalecer alguma justiça entre seus membros, do contrário haveria
tantas discordâncias e dissensões entre eles que logo acabariam destruindo uns
aos outros (351 e 352a-e).
Este argumento utilitarista
encontra paralelo nas palavras do Mestre Ancião, na medida em que este afirma
que “os impérios que possuíam exércitos
poderosos foram derrotados, e sumiram do fluxo da História: este é o destino
das forças do mal”. Em minha maneira de interpretar, aquilo que o Mestre
disse corresponde à tese de Sócrates: pois para este a justiça é ordem,
harmonia; injustiça é caos, confusão, discórdia. Portanto, a injustiça ou o mal
em geral não são capazes de sustentar uma ordem, uma organização ou uma
harmonia, mas por sua própria natureza caótica, estão sempre condenados a
produzir efeitos temporários. Embora as injustiças possam eventualmente
triunfar, este triunfo é sempre efêmero. Mesmo toda a ousadia e ferocidade não
podem prosperar para sempre quando sustentadas pelas fundações caóticas da
injustiça. É como um edifício gigantesco construído muito rapidamente sobre
bases matematicamente imprecisas: ele está condenado a desmoronar.
O Terceiro Reich é um exemplo
emblemático disso. Apesar de todo o brilhantismo estratégico, tático e
tecnológico do exército alemão, o Terceiro Reich não conseguiu sustentar-se
diante do ódio e antipatia universais que sua doutrina provocou em todo o resto
do mundo civilizado. Todos sabemos que, no fim, Hitler teve de resistir
praticamente sozinho, uma vez que as outras duas nações do Eixo (Itália e
Japão) eram bastante frágeis e ofereceram pouca ajuda (para não dizer que só
atrapalharam, como foi o caso da Itália). Mas o que poucos comentam, é que
Hitler sempre sofreu com resistências internas, primeiro durante a década de 30
dentro da própria Alemanha (onde sofreu várias ameaças a verdadeiros atentados
à sua vida); depois, teve na França de Vichy um aliado no qual jamais pôde
confiar, e que só contribuiu para aumentar suas angústias e incertezas; e por
último, já durante a 2ª Guerra, teve que conviver com várias conspirações
elaboradas pela própria Wehrmacht, das quais resultou um atentado que quase deu
certo (a famosa “Operação Valquíria”). O Mal é em si caótico; e enquanto tal,
destituído de toda a harmonia e organização que conduzem ao êxito inabalável,
ainda que muitas vezes gradual.
E isso nos conduz à segunda e
mais importante parte da argumentação de Platão. Após demonstrar que a justiça
é socialmente mais útil do que a injustiça, Sócrates precisa agora provar para
os inquietos Glauco e Adimanto que, além de útil, a justiça é um bem que vale
por si (357a-d). É neste ponto que se prova que a justiça não é uma mera
convenção subjetivamente ou historicamente determinada, condicionada pelas leis
sancionadas pelo Estado ou pela conveniência do mais forte. E o argumento é o
seguinte: aquilo que vale para a vida social, vale com maior razão para a alma
do homem. Pois se no âmbito político os diferentes indivíduos, divididos em
diferentes classes profissionais, devem atuar de forma harmônica para garantir
a vida social sadia, do mesmo modo, cada indivíduo deve harmonizar suas
diferentes faculdades anímicas através do cultivo das virtudes cardeais (temperança,
coragem, sabedoria) para assim realizar sua ordem espiritual interna (e
consequentemente, a quarta virtude cardeal, que é a justiça). Para Platão,
justiça significa ordem, harmonia. O homem justo é aquele que cultiva a ordem
interna de sua alma.
Deste modo, a justiça deixa de
ser definida apenas em termos utilitaristas, pois apesar de ser socialmente
útil, esta não é sua verdadeira tônica. A justiça é um valor intrínseco, que
vale por si, porque é “a saúde da alma” (nas palavras de Werner Jaeger), tão
essencial ao espírito quanto é a saúde do corpo para a vida (444 a-e).
Portanto, na medida em que é uma virtude intrínseca à saúde da alma humana, ela
deixa de ser definida em termos puramente extrínsecos e arbitrários; deixa de
ser o “reflexo das variáveis influências exteriores do poder e dos partidos”
(mais uma vez, cito Jaeger) para se converter na ordem interior da alma do
indivíduo. Não importa o quanto o direito positivo é alterado, seja pela
conveniência do mais forte ou de qualquer outro grupo. Em sua raiz, a
justiça é harmonia da alma, e este seu conceito é atemporal. Consequentemente,
pode-se repetir aqui sobre a justiça aquelas belas palavras do Mestre Ancião,
quando este se referiu ao Bem em geral:
"é
uma coisa que não muda, por mais que o tempo passe: ninguém pode alterar esta
verdade nesta grande correnteza da vida".
[1] Este
diálogo pode ser assistido neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=IJHb_xwJ_Fw&t=1s
2 Uma questão
que ainda pretendo responder para mim mesmo é se este diálogo fora idealizado
pelo autor original do mangá, Masami Kurumada, ou se foi inserido apenas pelos
responsáveis pela adaptação da obra neste anime. Apesar de eu me considerar um
intenso admirador dos Cavaleiros desde quando o anime fora exibido pela Rede
Manchete, durante as tardes de 1994, eu nunca li o mangá, o que é certamente
uma negligência imperdoável de minha parte.
Muito bom o seu texto. CDZ é meu anime favorito e filosofar é um exercício diário (risos). Parabéns pelo teu blog. É um alento encontrar um espaço como este para contemplar reflexões inteligentes.
ResponderExcluirMuito obrigado, Adriano! Também é um alento para mim receber elogios de leitores inteligentes. Abraço!
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