O Superman publicado pela Panini neste mês traz um
encontro entre o kriptoniano e o Exterminador. Mas o que poderia ser uma boa
história foi arruinado pelo roteiro de James Bonny (e pelos traços quase
“anime” de Tyler Kirkham, que fazem o Superman parecer extremamente tolo e
imaturo).
O maior de todos os heróis foi aqui vítima daquele
inexplicável fetiche pela regra do “não matar a qualquer custo”. Já discuti
sobre isso anos atrás, quando Mark Waid teve chiliques ao assistir Man of Steel
de Zack Snyder (1). Hoje eu faria uma concessão a Waid: talvez o lendário escritor
estivesse certo ao dizer que o Superman não deveria ter sido colocado numa
situação como aquela apresentada na conclusão do filme de Snyder. Hoje me sinto cada vez
mais tocado pela inocência da Era de Prata. Heróis como o Superman devem mesmo
existir para representar o que há de melhor em nós, e talvez isso signifique
que os mesmos não devam ser confrontados com certos intrincados problemas da
vida real, para os quais mesmo a melhor solução não deixa de ser um tanto
grosseira. Mas, caso o Superman seja forçado pelas escolhas do roteirista a
enfrentar um problema moral como aquele da conclusão de man of steel, se o
Superman precisar mesmo escolher entre a vida do agressor ou da vítima, neste caso
minha resposta permanece a mesma: nestas circunstâncias, o agressor deve ser
morto, e a vítima, preservada.
Mas não é assim que o escritor James Bonny pensa. Numa
tentativa desajeitada de responder ao Man of Steel de Zack Snyder, Bonny coloca
novamente Superman diante daquele mesmo problema. Mas desta vez, o agressor é o
Exterminador, e a vítima, Lois Lane.
Para resumir: basicamente Slade Wilson aponta uma pistola para a cabeça de Lois, e impõe este (falso) dilema ao Superman: ou
este o mata com a visão de calor, ou ele mata Lois.
O Superman resiste, enquanto reflete que “tirar uma
vida é matar uma parte de si... matar corrompe, e leva à destruição de mundos”. No final das contas, o Exterminador deixa Lois ir. Tudo
era um jogo (arquitetado por Amanda Waller) para testar o caráter do
Superman.
“Ó tempos, ó costumes!” diria Cícero... O Superman
estava mesmo pronto para deixar sua nobre esposa Lois morrer, permitir que seu
próprio filho Jon ficasse sem a mãe, apenas para preservar a vida de um verme
como Slade Wilson (que, diga-se de passagem, provocou toda a situação por livre
e espontânea vontade) e para preservar a si mesmo, pois ele, Superman, não
poderia correr o risco de corromper-se. Pois eu digo que um Superman deveria
ser capaz de olhar para o abismo, sem se impressionar quando este olhasse de
volta (2).
Na verdade, o raciocínio de Bonny é totalmente
absurdo, incapaz de resistir a qualquer análise mais séria. Vejamos. Por que a vida
há de ser preservada a qualquer custo? Certamente, porque o valor da vida é
absoluto, incondicional. Pois bem. Mas então justamente por isso é que Slade
Wilson (ou qualquer outro psicopata do gênero) haveria de ser sacrificado
naquelas circunstâncias, uma vez que ele põe em risco a existência deste valor
absoluto (que é a vida). Negar aquele que nega a vida é afirmar a vida, pois a
negação de uma negação equivale à uma afirmação. E se o valor em
questão é absoluto, então os atos de preservação do mesmo também podem ser
irrestritos.
Além disso, estritamente falando, o Superman não teria
causado a morte de Slade Wilson caso fritasse o cérebro deste último naquelas
circunstâncias. Pois assim como não é razoável esperar de um ser racional que
ele queira a causa sem ao mesmo tempo querer o efeito (em função da necessária
ligação entre ambos), também não é razoável esperar de um ser racional que ele coloque em risco a vida de alguém sem esperar que outras pessoas (incluindo aí a própria
vítima da agressão) se utilizem de todos os meios para impedi-lo de cometer crime
tão terrível, uma vez que aqui também se verifica uma ligação necessária entre as escolhas do agressor e as reações dos envolvidos que
desejam impedi-lo. Portanto, aquele que põe vidas em risco sabe que está pondo em risco a sua própria. Nestas circunstâncias - isto é, enquanto reação à iminente subtração da vida -, todo ato de execução se torna legítima defesa, e, portanto, é mera extensão da escolha do próprio criminoso. Nesta situação, o agressor executado executou a si mesmo, uma vez que não deixou escolha a
ninguém. Somente ele tinha escolha.
Esta dissociação entre causa e efeito - como se fosse possível querer a causa sem ao mesmo tempo querer seu efeito - em vista de evadir-se da própria responsabilidade moral, faz-me lembrar daquela piada sobre o réu acusado de homicídio, o qual, quando questionado pelo tribunal se ele de fato havia matado a vítima, respondeu serenamente: "é claro que não. Eu apenas o empurrei do vigésimo andar de um prédio. Foi a queda que o matou". Se o juiz da causa fosse o James Bonny, provavelmente este réu teria sido absolvido. Pois tanto o hilário argumento de defesa do réu quanto a condenação aos atos necessários à preservação da vida da vítima diante do risco iminente imposto pelo agressor, conforme mostrado na história em quadrinhos aqui discutida, possuem o mesmo fundamento: a mencionada dissociação entre causa e efeito.
Nossas intuições morais podem comprovar estas asserções
um tanto abstratas. Pois convido o leitor a usar sua criatividade e imaginar um
desfecho diferente para a história de Bonny: o Superman se omite (pois não
deseja corromper-se), Slade Wilson puxa o gatilho e estoura os miolos de Lois
Lane. E depois este super-banana teria que explicar ao seu pobre filho Jon que permitiu que sua mãe Lois morresse, pois "matar é errado". A isso o garoto poderia replicar aos prantos:
“Mas e permitir que alguém inocente morra... não é?”.
Desagradável, não? Para evitar este inconveniente (que
certamente revoltaria o leitor e faria do Superman um personagem tão imbecil
quanto este código moral fetichista) Bonny teve
de recorrer a alguns tipos de “deus ex machina” pra lá de ruins: explosões que
interrompem o clímax, a história de que era tudo um “teste”, etc. Assim, para o leitor sem imaginação e de julgamento raso, tudo parece ter acabado bem:
ninguém morreu e ao mesmo tempo o Superman permaneceu fiel ao código moral de
nunca matar, não percebendo que, a prevalecer essa regra, todo ato de legítima
defesa teria de ser condenado como algo que “leva à destruição de
mundos” (conforme as palavras do próprio Superman escrito por James Bonny). Sim, proteger vidas (incluindo aí a própria) diante de ataques injustificados de psicopatas sádicos virou crime de genocídio. Ou, mais precisamente... mundocídio!
Espero que ninguém julgue mal este texto. Não estou dizendo que o Superman deveria bancar o Justiceiro e sair por aí eliminando a escória do mundo. Minha análise se limita àquela situação específica, onde há um risco atual (e não apenas potencial) à vida de um inocente, de modo que não seria razoável esperar outro desfecho senão a morte do mesmo. Digo que, neste caso, seria moralmente absurda a omissão por parte daqueles que dispõem de meios suficientes de evitar o assassinato da vítima.
Espero que ninguém julgue mal este texto. Não estou dizendo que o Superman deveria bancar o Justiceiro e sair por aí eliminando a escória do mundo. Minha análise se limita àquela situação específica, onde há um risco atual (e não apenas potencial) à vida de um inocente, de modo que não seria razoável esperar outro desfecho senão a morte do mesmo. Digo que, neste caso, seria moralmente absurda a omissão por parte daqueles que dispõem de meios suficientes de evitar o assassinato da vítima.
Agora devemos nos perguntar: se o Superman de
Bonny tivesse enfrentado o monstro Apocalipse em seu primeiro encontro, o que
teria acontecido? Resposta: ao perceber que só poderia vencer o monstro
matando-o, teria desistido. Aí apanharia até morrer. Em seguida, o Apocalipse
teria matado o resto da Liga da Justiça, depois destruído Metrópolis, depois o
mundo. Isto é: para não flertar com o terrível delito de mundocídio, o Superman teria permitido que o Apocalipse destruísse o mundo. Bem-vindo à fantástica (e tão covarde quanto incoerente) Ética dos homens do século XXI.
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Notas
(1) http://herosinvictus.blogspot.com/2013/07/man-of-steel-mark-waid-e-dilemas-morais.html
(2) De acordo com Nietzsche, "quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para você". Pra mim, o heroísmo consiste basicamente nisso: olhar para o abismo sem se deixar corromper por sua escuridão. Talvez não exista teste maior e mais louvável da virtude humana. O Superman de James Bonny tremeu diante deste teste, e por isso preferiu fugir do mesmo.
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