segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Super-homem como arquétipo


A palavra “arquétipo” é comumente relacionada às “idéias” ou “formas” em sentido platônico, e representam “o modelo ou exemplar originário ou original de uma série qualquer” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia). No mundo dos super-heróis, não é incomum referir-se ao Super-homem como um arquétipo; e essas referências justificam-se plenamente diante da definição da palavra “arquétipo” e do lugar que a figura do Superman ocupa na cultura mundial. Pois me parece evidente que o Super-homem traz consigo a imagem universal do super-herói, de modo que, quando se fala de super-heróis sem precisar exatamente a quais super-heróis estamos nos referindo, nossa imaginação recorre imediatamente àquela velha imagem do sujeito de capa vermelha, invulnerável a balas, e capaz de levantar grandes objetos com as forças do próprio corpo. Isso é o mesmo que dizer: “a figura arquetípica do super-herói identifica-se com o Super-homem”.

Contudo, provocou-me certa dose de inquietação a história “New Jack City”, do herói Supremo, escrita pelo ótimo Alan Moore. Nesta fantástica história, Supremo (o qual é, como todos sabem, uma “cópia” da “ideia” do Super-homem) encontra o próprio Jack Kirby, ou simplesmente “Rei” (como ele mesmo se apresenta), mostrado como uma poderosa entidade capaz de materializar a própria imaginação. No interessantíssimo diálogo travado entre Supremo e o “Rei”, este último chama Supremo de “Wylie”. Ao ser questionado sobre o que seria um “Wylie”, o “Rei” responde: “ah por causa desse cara Phil Wylie. Ele escreveu um livro chamado ‘Gladiador’. Meio que introduziu o arquétipo do super-homem, que por acaso é você”. 

Ora, estamos aqui diante de um contra-senso. Pois de acordo com sua definição, um “arquétipo” não pode ser derivado. E é justamente isso que Alan Moore parece nos dizer com o particípio passado “introduced”: o arquétipo do super-homem teria sido derivado do personagem do romance “Gladiador”. Então de duas uma: ou o Super-homem é derivado ou é um arquétipo. Os dois não pode ser, sob pena de incorrermos numa contradictio in adjecto. Se ficarmos com a primeira alternativa, então deveremos, por necessidade tanto lógica quanto ontológica, pressupor um arquétipo do qual o Super-homem seja uma cópia. Contudo, o “Gladiador” não pode ser esse arquétipo, pois o “Gladiador” é apenas um sujeito com habilidades sobre-humanas. Portanto, ele pode ser reduzido a outras fontes, tais como os heróis gregos, por exemplo (e até mesmo bíblicos). Nesse sentido, o nome “Gladiador” não é de forma alguma arbitrário, pois o personagem do romance seria apenas uma reminiscência do típico herói de tradição greco-romana, revivido em nossos dias e sofrendo, por consequência disso, o influxo da ficção científica ao invés da magia (o personagem central de “Gladiador”, Hugo, recebe seus poderes a partir de experimentos científicos). De fato, Hugo é apenas um herói no sentido greco-romano: é um detentor de incríveis habilidades sujeito às tragédias inerentes à vida, sem contudo preocupar-se necessariamente com o aspecto ético de suas ações. Não era, pois, a procura incessante pela “verdade e justiça” um elemento determinante no conceito do herói de tradição pagã. Por outro lado, o é na determinação do conceito de “super-herói”. Em verdade, é impossível dissociar o aspecto ético do conceito universal de super-herói, pois este não é somente alguém superpoderoso, mas é sobretudo aquele que combate os “super-vilões”, para preservar todos aqueles valores morais que tanto prezamos, tais como a verdade, a justiça, e, sobretudo, a vida humana. Mas essa noção de super-herói, que é universal, só se inicia com o Super-homem. Ele é, portanto, o arquétipo do super-herói. Poderíamos dizer também, como Moore, o “arquétipo do super-homem”, com “s” minúsculo, pois sendo o Super-homem o arquétipo do super-herói, torna-se perfeitamente concebível a identificação entre “super-homem” e “super-herói”. Christopher Knowles disse, com razão, que todos os Super-heróis derivam, de alguma forma, do Super-homem; isso é o mesmo que dizer: todo super-herói é um super-homem (cf. KNOWLES, Christopher. Nossos deuses são super-heróis). Referências desse tipo (que reconhecem no Super-homem seu status de arquétipo) são encontradas nos próprios quadrinhos. Posso citar o próprio Supremo de Alan Moore, com seu conceito de “Supremacia”, onde há o "supremo Supremo" e seus "avatares". E em “Crise Infinita”, de Geoff Johns e Jerry Ordway, o jovem Lex Luthor declara: “Por alguma razão que não posso explicar ou entender, e provavelmente nunca poderei... tudo vem do Superman”. Em “Crise nas Infinitas Terras”, de Pérez e Wolfman, o Super-homem da “terra paralela” é lembrado como “a lenda que deu origem a todas as outras”.

Chegamos então à noção de “super-herói”, a qual, conforme o exposto, deve ser distinguida, senão in toto genere, ao menos in specie, da noção de “herói”. Só assim podemos encontrar a origem das críticas descabidas que procuram converter o Super-homem em um plágio do “Gladiador”: confundem um simples exemplo de um gênero com um arquétipo, o qual deveria ser a “raiz” da cópia. Mas é claro que o personagem do “Gladiador” não é um arquétipo. Mas o Super-homem, indiscutivelmente, é! Isso quer dizer que à noção de “super-herói” deve corresponder um arquétipo diferente da mera noção de “herói”, ou de outra noção específica a partir do gênero “herói”; do contrário não haveria especificidade, e tudo se resolveria no gênero. Assim, por exemplo, ainda que “homem” seja uma espécie de “primata”, nem por isso o arquétipo de “primata” é o mesmo arquétipo para “homem”. E embora o "macaco" seja também uma espécie de "primata", assim como o "homem", nem por isso seus arquétipos devem ser comuns, caso contrário tudo se resolveria no gênero, como explicado. O “homem” deve, necessariamente, ter seu próprio arquétipo. O mesmo ocorre entre “super-herói” (espécie) e “herói” (gênero). O personagem de “Gladiador” resolve-se numa espécie de “Herói” que não ousamos apontar aqui categoricamente, mas que com certeza não é a de "super-herói". Vimos que ele é uma reminiscência dos antigos heróis greco-romanos, mas nem por isso resolve-se na mesma espécie daqueles. Apenas podemos afirmar que ele não é um herói greco-romano (embora seja muito próximo), e muito menos um “super-herói”. Consequentemente, a noção de “super-herói” nada tem a ver com o “Gladiador” e, portanto, sendo o Super-homem o arquétipo do super-herói, afirma-se aqui sua total independência do personagem do romance de Philip Wylie. Em outras palavras: o Super-homem é de espécie totalmente original, pois ele é o verdadeiro arquétipo do super-herói.

Isso explica porque o bom-senso sempre apontou personagens como o Capitão Marvel ou o Supremo como cópias do Super-homem, mas jamais a inteligência sadia acusou o Super-homem de ser cópia do personagem de “Gladiador”. Pois o Super-homem e aqueles dois heróis pertencem à mesma espécie, que é a do “super-herói”, sendo o Super-homem o arquétipo daquela espécie. Aqui nos utilizamos do termo “cópia” no sentido platônico, filosófico, e não propriamente jurídico. Mas vale tentar resolver uma outra questão: se o Super-homem é o arquétipo, então com que justiça acusam o Capitão Marvel ou o Supremo de plágios (ou seja, “cópias” em sentido jurídico) do Super-homem (sendo que, a rigor, tudo em matéria de super-herói seria igualmente derivado do Super-homem)? Aqui, a resposta é mais simples; e para isso não nos socorreremos tanto de Platão, mas de Aristóteles. Pois o fenômeno do plágio só pode ser compreendido a partir das noções de “substância” e “acidente”. O Capitão Marvel, em especial, trouxe consigo todos aqueles elementos que caracterizariam substancialmente o Super-homem, que o individualizariam. Quando nos referimos a características substanciais, queremos dizer: a típica figura do sujeito de aparência humana, que usa uma capa, que voa, que consegue levantar um carro com um sorriso no rosto, e receber tiros de revólver que ricocheteiam no símbolo que traz no peito. Em suma, todos aqueles elementos sem os quais o Super-homem seria uma coisa diversa daquilo que ele efetivamente é. Esses elementos formam a figura universal do super-herói e, repito, o Super-homem foi o primeiro a trazer em si todos estes elementos, pois ele é o arquétipo. Se esses poderes se devem ao status de alienígena, ou se são oriundos da concessão de um mago, isso é puramente acidental. O que definiu substancialmente - e não acidentalmente - a figura do Super-homem, foram aqueles elementos supracitados. O Capitão Marvel, portanto, aparece sim como uma cópia, um plágio, pois ele trouxe em si tudo que era substancial ao Super-homem, diferindo tão-somente no aspecto acidental. Um personagem como Batman, ainda que incluso na espécie “super-herói”, e portanto fosse “cópia” em sentido platônico, não foi em sentido jurídico (plágio). Pois embora fosse super-herói – cujo arquétipo é o Super-homem – não reproduziu substancialmente o Super-homem. O Batman individualizou-se; tinha a sua própria substância. O mesmo se pode dizer de super-heróis como Homem-Aranha, Flash ou Lanterna Verde. O Capitão Marvel, por outro lado, apenas adotou aquela imagem arquetípica do super-herói, sem inovar na sua substância. Poderíamos dizer, então, que o Capitão Marvel seria, em sentido filosófico, uma cópia quase perfeita do arquétipo ou, na expressão de Schopenhauer, uma “objetivação mais adequada" da Ideia. Assim também o Supremo, o Samaritano, Hyperion, etc. Por outro lado, infelizmente, o sentido jurídico desta “adequada objetivação” é bem menos nobre, e leva o nome de plágio. Isso explicaria por que, de um lado, os fãs do Super-homem possuem um fascínio natural por todas as “homenagens” ao seu herói favorito; e, por outro, que no passado a National Periodical (atual DC comics) tenha processado a Fawcett (editora do Capitão Marvel) sob a acusação de plágio. É que a perspectiva daqueles que contemplam idéias é muito diferente daqueles que contemplam o dinheiro, ainda que o objeto de apreciação seja exatamente o mesmo.


SUPLEMENTO: SUPERMAN BEYOND

Fizemos, ao longo deste artigo, referências a duas das mais importantes histórias dos quadrinhos, para confirmar nossa assertiva: Crise nas Infinitas Terras, de Marv Wolfman, e Crise Infinita de Geoff Johns. Contudo, somos obrigados agora a adicionar uma outra história - talvez a mais importante no sentido de abordar o tema do arquétipo do Superman. Trata-se de Crise Final, ou, mais especificamente, de uma de suas histórias correlatas: "Superman Beyond" ("Superman ao Infinito", na edição da Panini), de Grant Morrison. Aqui, Morrison se utiliza de artifícios meta-linguísticos para explicar a dimensão na qual se dá essa existência arquetípica do Homem de Aço, isto é, sua transcendência com relação a todos os outros personagens que habitam o "universo" dos quadrinhos e, consequentemente, limitados pelo mesmo. Mas o mesmo não se dá com o Superman, conforme mostrado por Morrison.

A história de "Superman Beyond" começa com o herói junto a sua esposa, Lois Lane, em um hospital. Lois está quase morta (devido a eventos ocorridos em Crise Final) e apenas Clark Kent consegue, secretamente, fazer seu coração continuar a funcionar, por meio de uma massagem de sua visão infravermelha. Neste momento ele é recrutado por uma monitora, Zillo Valla, para salvar o multiverso do "inimigo definitivo": o monitor maligno chamado Mandrakk.

De fato, esse é o maior mal que poderia ser enfrentado no mundo quadrinhos. Pois Mandrakk não é apenas um poderoso inimigo. Darkseid, por exemplo, é poderosíssimo; mas enquanto mero personagem do universo fictício dos quadrinhos, ele está imerso no multiverso. Os monitores, por outro lado, transcendem o próprio multiverso. Transcendem o espaço e o tempo no qual estão confinados os heróis e vilões da DC. Eles observam o multiverso a partir de uma dimensão muito superior, analogamente ao leitor que observa as páginas de um gibi. Os monitores habitam um mundo mais fundamental, e a sua história é uma "hiper-história" (aqui poderíamos retomar o conceito de 'hiper-tempo', já explorado por Mark Waid, e que traz também implicações para a consideração do Superman como arquétipo). Por isso, quando o Superman segue Zillo Valla na cruzada contra a ameaça de Mandrakk, ele atualiza um novo poder que já possuía potencialmente: a visão 4-D. Assim, o Superman visualiza as três dimensões do espaço conjuntamente com a quarta dimensão, o tempo. Isso faz com que ele atinja o nível de compreensão superior acerca do multivero. Importante ressaltar que, juntamente com o Superman, foram recrutados todos os "supercampeões" dos outros universos, isto é, todos os outros heróis que são cópias (no sentido platônico) do nosso Superman. Entre eles estão o Capitão Marvel de uma outra Terra e Capitão Adam, uma clara referência ao Dr. Manhattan, de Watchmen.

Mas a parte mais importante para a nossa investigação é o momento no qual Superman encontra, no Limbo, um livro que contém todos os livros possíveis. Lendo-o, descobre muito sobre o Monitor e o seu próprio significado no universo. Primeiramente, é revelado que o Monitor era, primordialmente, apenas uma consciência infinita, simples e absoluta (portanto, mais uma clara representação do Deus judaico-cristã no universo DC, tal como a Fonte e a Presença). Contudo, o Monitor encontra uma "falha" dentro do seu próprio coração. Ele cria uma "sonda" para investigar a "falha". E a "sonda" então descobre que essa "falha" é a própria vida, a história, o multiverso. Isto é, o multiverso se desenvolve dentro desta consciência infinita, que é o Monitor. A visão da vida e da história a ela inerente espalha-se então para os domínios do próprio Monitor, sua consciência pura se deixa influenciar pela "falha" que ele encontrou em seu próprio interior. Consequentemente, as contradições e complexidades inerentes à história dos multiversos também "contaminam" o Monitor, e ele próprio passa a assumir uma existência histórica dotada de contradições e complexidades (como dizia Nietzsche: "quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta pra você"). Resultado: a consciência, antes pura e simples, assume a forma de um mundo histórico constituído pela raça de Monitores, verdadeiros "hiper-deuses" (transcendem, portanto, qualquer "deus" do multiverso), descendentes diretos do Monitor original e absoluto, o definitivo panteão cujos indivíduos transcendem todo o multiverso.  

Contudo, daquela primeira experiência do Monitor com o interior de seu próprio coração, restou apenas uma imagem no mundo dos hiper-deuses: uma estátua gigantesca do Superman. Em minha interpretação, essa estátua é uma clara referência à condição arquetípica do Super-homem, o qual é então o único herói cuja imagem faz-se presente no mundo dos hiper-deuses, e não somente nos multiversos, como todos os outros personagens.

Ao final, a consciência do Superman é transferida para sua gigantesca imagem no mundo dos monitores, para que possa enfrentar Mandrakk. É realmente interessante notar o momento em que ele consegue perceber até mesmo a presença do leitor: "de uma direção que não possui nome vem um som como o de uma respiração". Assim, ele toma posse de sua própria imagem arquetípica "quadrinizada" e, ao fazer isso, transcende os próprios quadrinhos. Assim, se nos fosse lícito complementar o título da história, diríamos que ela deveria chamar-se "Superman Beyond Comics".