sábado, 11 de junho de 2011

O “Reboot” da DC ou "Como criar um super-vilão metaquadrinístico"

A notícia mais comentada atualmente entre os leitores de quadrinhos é tal “reboot” (palavrinha cretina, mas bastante popular, que em si significa coisa nenhuma, mas que é utilizada no mesmo sentido de “reinício” ou “novo começo”) que os personagens da DC Comics sofrerão. Primeiro, a DC liberou imagens que mostravam os seus principais heróis da Liga da Justiça (com exceção do Ciborgue, que não é de modo algum um dos “heróis principal”) com novos uniformes. Alguns apresentavam mudanças quase insensíveis (como o Batman); outros, mudanças mais radicais. Foi o caso do Superman. Aliás, o Superman se tornou a figura central da polêmica. Aparentemente, a grande maioria dos leitores de quadrinhos se sentiu desconfortável com seu uniforme e seu aspecto excessivamente jovial; e, aparentemente, praticamente TODOS os seus fãs simplesmente odiaram a mudança. E aqui se encontra a questão realmente interessante: o tal “reboot”, longe de fomentar o entusiasmo dos leitores de quadrinhos de modo geral, e dos fãs do Superman em particular, tornou-se o ponto central das atuais discussões de fóruns voltados ao gênero apenas pelo medo e ansiedade que tem provocado. Sim, todos querem saber sobre o tal “reboot”, mas não pela sadia curiosidade relacionada à expectativa de uma grande história, e sim para satisfazer dúvidas sobre um futuro que parece incerto e sombrio. Por isso, podemos comparar a ansiedade do atual leitor de quadrinhos com o pavor que todos sentiriam após ouvir um anúncio da comprovação da proximidade do fim do mundo. Pois é justamente isso que a DC tem anunciado: o fim de um mundo, ainda que fictício.

Como já escrevi acima, esse “reboot” é ainda mais agressivo em relação ao Super-homem, pois as imagens do novo Super-homem mostram também novidades substanciais no uniforme. Portanto, o problema está aí: na descaracterização do uniforme. Uma mudança nos aspectos acidentais da biografia ou do uniforme do Super-homem não são repudiáveis. Na verdade, são normais. O Super-homem já passou por várias reformulações neste sentido, sem que provocasse aversão. Só na última década, ele já teve duas origens diferentes (uma contada por Mark Waid, e outra por Geoff Johns). Mas uma alteração substancial no uniforme do Super-homem já é outra história. Em verdade, o Super-homem jamais sofreu uma alteração substancial – seja no uniforme, seja na sua biografia – desde sua criação (com exceção do Super-homem elétrico. Mas essa mudança foi passageira). Os elementos essenciais sempre estiveram lá, desde que fora criado por Siegel e Shuster em 1938. Ele sempre foi um alienígena vindo de Kripton, que chegou à Terra, dentro de uma nave, enviado por seu pai para que não perecesse com seu planeta natal; ele sempre foi super-forte, super-rápido e invulnerável a armas de fogo; da mesma forma, sua capa, botas e sunga vermelhas sempre estiveram no seu uniforme, assim como o “S” no peito e a roupa azul.É por isso que os fãs do Super-homem (inclusive este que está escrevendo) normalmente sustentam uma postura conservadora com relação ao Super-homem. Porque para eles, admirar o Super-homem não é somente admirar um mero personagem de quadrinhos; mas o respeito que nutrem pelo Super-homem assemelha-se ao respeito que um patriota nutre por sua bandeira. E há razões pra isso. Há muito tempo o Super-homem abandonou o status de mero personagem fictício para tornar-se também um símbolo, cuja existência transcende a mera ficção passageira para alcançar um tipo de ficção toda especial: a mitologia. Assim, torna-se perfeitamente compreensível a estupefação dos fãs do Super-homem diante da ameaça da reformulação radical. Não se muda um símbolo, e nem se reformula um mito. Não se tiraria as faixas vermelhas da bandeira dos EUA; então por que haveria de se alterar a roupa do Super-homem?



Consequentemente, um “reboot” sobre o Super-homem – nas proporções que a DC anuncia – deixa de ser mera propaganda de uma nova história, para tornar-se verdadeira ameaça: a ameaça da corrupção de uma lenda, ou descaracterização de um símbolo. Mas este não é o ponto deste texto, porque eu, sinceramente, não acredito num “reboot” do Super-homem nessas proporções. Cedo ou tarde, ele volta a ser exatamente como sempre foi. Eu já havia falado sobre a ilusória inatualidade do Super-homem no artigo anterior. Tudo que escrevi lá, continuo afirmando. Até porque aquilo fora escrito a partir  de uma consideração sub specie aeternitatis (aqui uso a expressão apenas em sentido análogo) dos quadrinhos, a qual comprova que a pretensa inatualidade do Super-homem e sua conseqüente necessidade de alteração sustenta-se apenas numa mente canhestra que provavelmente começou a ler quadrinhos há poucos dias e, ainda assim, numa leitura concentrada em títulos de personagens como Wolverine e afins. A ameaça do “reboot” é apenas ilusória, porque ela esconde seu verdadeiro fundamento ou razão de ser: a construção de um super-vilão metaquadrinístico. Vou me explicar. Um super-vilão é aquele personagem que se opõe ao super-herói. Enquanto o super-herói é a personificação do bem, da preservação e da construção, o super-vilão é a personificação do mal, da destruição e da desconstrução. E como eles apresentam interesses opostos, a consequência é a luta e enfrentamento mútuo. E é este choque de vontades que seduz o leitor. É claro que, assim como o super-herói é fictício e existe tão somente dentro da ficção (nas páginas dos quadrinhos), assim também deve ser o super-vilão, do contrário eles não poderiam enfrentar-se, certo? Errado! Pois há um vilão que não está nas páginas de quadrinhos, mas se encontra fora e além dela, e por isso ele é um vilão metaquadrinístico. No entanto, seus interesses são exatamente idênticos aos do vilão dos quadrinhos e, portanto, opostos ao do herói: ele cobiça a destruição em lugar da preservação, e a desconstrução em lugar da construção. Isto é, ele é o próprio mal. No momento, esse vilão metaquadrinístico é a própria DC comics, ou, mais particularmente, seus atuais principais idealizadores (Dan Didio, Jim Lee, Geoff Johns etc.). Estes sujeitos incrivelmente “maus” desejam destruir e desconstruir tudo; e seu poder é tamanho, que nem mesmo o Homem de Aço mostrou-se invulnerável o suficiente para resistir. (Ao menos momentaneamente. Como eu já disse, acredito firmemente que ele irá voltar com força total e com a sunga por cima da calça, para livrar, mais uma vez, Metrópolis dessa ameaça tão perversa). Mas os vilões metaquadrinísticos estão, no momento, se afirmando; e seu plano parece estar dando certo. Em todos os fóruns do gênero, o assunto entre os debatedores não é sobre que vilão o Super-homem ou Batman enfrentarão; o problema não é a ameaça nos quadrinhos; mas é justamente a ameaça fora dos quadrinhos. A questão não é mais “como o Super-homem poderá enfrentar Brainiac agora?”; mas sim “meu Deus, vejam o que a DC fez com o Super-homem! Será que ele um dia voltará ao normal?”. Ou seja: discute-se sobre a destruição e desconstrução que pode ser proporcionada somente por um vilão metaquadrinístico. E esses vilões são tão sádicos e poderosos, que eles, além de destruírem de acordo com seu arbítrio o mundo do herói, ainda brincam com a mente do leitor. Assim, a DC, após anunciar em maio mudanças tão radicais, no início de junho declararam que tais mudanças não significavam um “reboot”. Ou seja: basicamente, disseram que o “reboot” não é um “reboot”, em flagrante contradição com o princípio lógico da não-contradição! Quantas mentes não devem ter se danificado ao tentar compreender aquilo que, em verdade, não pode ser compreendido, justamente porque não faz qualquer sentido. Temos que admitir: é um estratagema magnífico, digno de uma mente brilhante e cruel como a de um Lex Luthor!

Creio que não seja necessário dizer novamente que tenho convicção de que tudo isso não vai durar muito. Mas é interessante notar o deslocamento da vilania atual: a verdadeira ameaça não pode mais ser trazida pelo vilão dos quadrinhos, então os criadores se socorrem dos vilões metaquadrinísticos, que na verdade são eles próprios. A razão disso é que o interesse do leitor pela história em quadrinhos motiva-se, basicamente, pela dinâmica existente no conflito de interesses entre vilão e herói. O leitor quer ver o herói confrontar-se com uma ameaça sem proporções, suficientemente grande para fomentar-lhe a dúvida acerca do sucesso do herói. Só então, depois de sua milagrosa sobrevivência, é que a vitória parece realmente satisfatória. Mas essa dinâmica parece ter se desgastado ao longo destes 70 anos. Todos sabem que o vilão dos quadrinhos já não é suficientemente poderoso. E desde que Superman retornou de sua morte, e Batman de sua paralisia, durante os anos 90, comprovou-se que, no terreno dos quadrinhos, os super-heróis são infinitamente mais poderosos que seus vilões. Mas o mesmo não pode ser dito quando se trata do mundo fora dos quadrinhos. Aqui, os heróis estão realmente à mercê. E assim, com a entrada do super-vilão metaquadrinístico, o leitor pode sentir medo novamente, e apenas desejar, com a mais forte esperança, que seu herói favorito ao menos sobreviva.