Em sua coleção de ensaios intitulada Apocalípticos e Integrados (1964), o livre pensador italiano
Umberto Eco escreve sobre a “cultura de massa” e uma de suas expressões
literárias mais populares: as histórias em quadrinhos. Analisando de modo
bastante geral as ideias de Eco, pode-se dizer que as histórias em quadrinhos
estariam repletas de conformismo com o status quo, e por isso seus leitores –
típicos consumidores formados pelos parâmetros impostos pela “indústria
cultural” (impossível não notar aqui forte influência da “escola de Frankfurt”) – fariam parte do grupo de “integrados”, pessoas que
veem com bons olhos os produtos da cultura de massa, mais receptivos a seus
símbolos e resultados, e por isso pouco inclinados ao dissenso. Do outro lado,
temos os “apocalípticos”, críticos severos desta mesma cultura de massa, a qual
analisam sob uma perspectiva profundamente escatológica, e por isso
consideram-na a morte da verdadeira cultura. O Superman insere-se como um
personagem de forte expressão arquetípica no contexto da cultura de massa. Em
grande medida, ele é tomado por Eco como o
grande herói da cultura de massa, e por isso torna-se digno das análises do
famoso escritor italiano. Analisando o mito do Superman, Eco espera desvendar
algumas das principais estruturas ideológicas que se colocam na base desta
cultura de massa, estruturas estas que tanto podem ser o resultado de processos
inconscientes quanto de objetivos inconfessos, mas muito bem planejados.
E quais seriam as teses principais de Eco sobre o mito do
Superman?
Destacarei sua tese mais política sobre o Superman, e que já
foi em parte expressa nas primeiras linhas deste texto. Logo no prefácio da
obra, Eco escreve que o Superman, típico herói da cultura de massa, “usa das
suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta
passividade, renunciando a todo projeto que não tenha sido previamente
homologado pelos cadastros do bom senso oficial, tornando-se o exemplo da proba
consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais
estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução” (p. 10).
Logo, Eco busca contrastar no Superman suas incríveis habilidades físicas e
suas modestas (na verdade, inexistentes) ambições políticas. Com isso, Superman
realiza um ideal de passividade política, que vem ao encontro dos interesses
daqueles que não desejam perder seu poder. É por isso que mais adiante, já no
capítulo quase exclusivamente dedicado ao Superman, Eco questiona se o Superman
não é, na verdade, um instrumento pedagógico de “heterodireção”, isto é, um
mecanismo simbólico que existe para impor sutilmente ao inocente leitor um
conjunto de ideologias. Segundo Eco, o Superman é produzido para ser consumido
por homens “heterodirigidos”, isto é, “homens a quem constantemente se sugere o
que deve desejar e como obtê-lo” (p. 261). Em suma, o Superman é instrumento de
manipulação, e seus leitores, são pessoas manipuláveis. Ao que parece, este
processo de manipulação se dá em dois
níveis. Vale lembrar que o ensaio fora escrito na década de 60. Portanto, o
Superman analisado por Eco é aquele da chamada Era de Prata dos quadrinhos.
1. Seria o Superman um destruidor de consciências?
Em um nível, Eco apresenta a tese de que o Superman, em
função da estrutura de suas narrativas, contribui para a destruição gradual do
senso de responsabilidade pessoal de seu leitor. Ok, vou explicar. Eco, baseado
na filosofia de gente como Husserl, Sartre e Heidegger, sustenta que nossa
consciência interna de nossa própria responsabilidade pessoal depende da
consciência que temos de nossa própria temporalidade. Citando Husserl, Eco
escreve que “minha temporalidade é minha liberdade” (p. 255), e depois conclui
que “perdendo a consciência” do tempo, esquece-se dos problemas que no tempo se
baseiam, “isto é, a existência de uma liberdade, da liberdade de fazer
projetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da
responsabilidade que dele provém” (p. 261). Em suma, só nos consideramos
responsáveis em função daquilo que realizamos e que devemos realizar, e estas
realizações projetam-se no tempo (como algo que já fora feito mas, principalmente, como algo que há de ser realizado). Somente na medida em que me coloco na
temporalidade, é que sinto a angústia do dever de ter de realizar, bem como a
esperança de redimir meu próprio ato já realizado, no passado. E assim, nas
palavras de Husserl, “o passado me determina, (...) mas o futuro, por sua vez,
‘liberta o passado’” (p. 255). Portanto, em função do futuro – do que ainda há
de ser realizado – nenhum fato passado impõe uma determinação completa sobre
meu ser. Portanto, liberdade e existência temporal são noções indissociáveis.
Mas como a criação de Siegel e Shuster se encaixa em toda
esta confusão filosófica? Ou pior: como o Superman estaria a serviço da
destruição de tudo isso? Resposta: segundo Eco, a estrutura narrativa das
histórias do Superman não é linear, e por isso não obedece a qualquer padrão de
“consumo” do personagem: o Superman não envelhece, não se casa, não tem filhos,
não muda de emprego, etc. Enfim, não se realiza nele nenhum daqueles fatos
biográficos que expressam a temporalidade de qualquer biografia verdadeiramente
humana. É como se o Superman não estivesse no tempo. E consequentemente, “o
Superman só se sustenta como mito se o leitor perder o controle das relações
temporais e renunciar a raciocinar com base nelas, abandonando-se, assim, ao
fluxo incontrolável das estórias que lhe são contadas e mantendo-se na ilusão
de um contínuo presente” (p. 260). Isto é: na visão de Eco, é como se o
Superman - o herói não só invulnerável a balas de revólver, mas também à ação
do tempo – retirasse do leitor a consciência de sua própria temporalidade, numa
espécie de efeito hipnótico, na medida em que o segundo permite-se absorver na
dimensão atemporal na qual vive o primeiro.
Porém, eu discordo inteiramente de Eco. Acredito que o
ilustre escritor esteja sendo “apocalíptico” demais em suas análises. Se
atentarmos para sua tese, veremos que ela se sustenta sobre uma premissa
básica: a ideia de que liberdade/senso de responsabilidade e temporalidade estão
profundamente ligadas, e de tal modo, que a primeira só pode ser pensada pela
segunda. Ora, isso não parece inteiramente correto. Antes, é perfeitamente
possível postular justamente a tese contrária, isto é, que de nosso senso
interno de responsabilidade pressupõe uma consciência ainda mais profunda de
que, em última instância, não somos seres meramente temporais (embora nossa
existência se expresse temporalmente). Explico.
Segundo o filósofo Arthur Schopenhauer, a liberdade se
opõe à ideia de causalidade, pois esta última impõe uma relação necessária –
isto é, uma relação impossível de ser alterada ou manipulada – entre causa e
efeito: tão logo se apresente uma causa, o efeito se seguirá dela
necessariamente. O efeito não decide, não escolhe. E tão pouco a causa, que é
nada além de um efeito de uma causa anterior, e assim sucessivamente, ao
infinito... Pois bem: uma sucessão de causa e efeitos só se dá no tempo. Na
verdade, jamais perceberíamos o tempo, não fosse nossa percepção das mudanças,
e mudanças só se realizam pela relação de causa e efeito (por exemplo: eu
percebo a passagem do tempo ao notar o movimento do ponteiro do relógio, o qual
se movimenta devido a um mecanismo coordenado segundo relações de causa e
efeito). Logo, se eu percebesse a mim mesmo como um ser meramente temporal,
então eu me colocaria em uma relação causal, a qual se dá segundo relações
necessárias, as quais não admitem poder de escolha, mas apenas uma sucessão de
fatos segundo leis inexoráveis. Logo, temporalidade não é liberdade, mas
ausência dela. Mas de onde vem meu inegável senso de responsabilidade pessoal
por minhas ações? Segundo Schopenhauer, ao lado de nossa dimensão temporal,
somos possuidores de uma dimensão atemporal, que não podemos julgar segundo
padrões temporais. Esta dimensão atemporal seria precisamente nosso caráter,
expressão máxima de nossa vontade. Minhas ações podem ocorrer no tempo, mas o
fundamento de minhas ações, meu caráter, não. Minhas ações decorrem daquilo que
sou, e aquilo que sou, embora se expresse no tempo, no entanto não tira deste seu
fundamento. Não há uma razão suficiente pela qual eu posso explicar aquilo que
sou. A constituição volitiva de cada um (o caráter) é um ponto terminal de
qualquer explicação, para além da qual o intelecto simplesmente não consegue
avançar através de seus esquemas causais de explicação. É por isso que, não
importa o quanto sociólogos, psicólogos, psiquiatras, geneticistas e
antropólogos se esforcem, nenhum deles consegue explicar satisfatoriamente por
que cada ser humano é tal como é. Podemos deduzir que um homem egoísta terá
atitudes egoístas ao longo de sua vida; mas não conseguimos concluir
satisfatoriamente por que tal homem é, afinal de contas, egoísta. Um sociólogo
poderia dizer que o egoísmo do indivíduo em questão é devido, por exemplo, a
uma sociedade de consumo. Mas bastaria pouco esforço para demonstrar a
existência de muitos outros indivíduos que, submetidos à mesma sociedade de
consumo, demonstram possuir um caráter inclinado ao altruísmo. Logo, as
circunstâncias externas, longe de determinarem a essência de cada um, parecem
apenas oportunizar a cada um que expresse sua própria essência, em si
independente, de origem misteriosa, e por isso atemporal. Logo, a associação
entre temporalidade e liberdade (a raiz da responsabilidade) não é nem um pouco
necessária, mas não passa de uma opinião defendida por Sartre, Husserl,
Heidegger, e Eco. Logo, a narrativa atemporal das aventuras do Superman pode
ser inocentada da terrível acusação de estar a serviço de um plano maligno: o
de destruir o senso de responsabilidade pessoal de seus leitores.
2. Superman, o sabotador de ambições
político-revolucionárias
Em um segundo nível, o Superman é apresentado como um
símbolo de rejeição de qualquer projeto revolucionário em política. Já citei
acima um trecho segundo o qual o Superman inspira “um ideal de absoluta passividade
(política)”, e assim “tornando-se o
exemplo da proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o
Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma
revolução”. Mais adiante, Eco enfatiza este aspecto de “passividade política”.
Assim, analisando a expressão do “mal” combatido incansavelmente pelo Superman
em suas aventuras, percebe-se que este mal normalmente apresenta-se apenas como
“atentado à propriedade privada” (p. 276): o Superman se opõe, quase que
exclusivamente, a ladrões, homens perversos pertencentes ao submundo do crime.
Por outro lado, Eco cita exemplos de ações beneficentes organizadas pelo
Superman, com o objetivo de ajudar órfãos e indigentes. E com isso conclui que
“assim como o mal assume o aspecto único de ofensa à propriedade privada, o
bem configura-se apenas como caridade”
(p. 277). Fácil perceber que Eco, sob um olhar extremamente crítico, vê o
Superman como o defensor metafórico de toda sociedade organizada em sua
economia segundo princípios do liberalismo clássico. E Eco contra-ataca esta
postura do Superman: “o Superman é praticamente onipotente (...). sua
capacidade operativa se estende em uma escala cósmica. Ora, um ser dotado de
tais capacidades, teria diante de si um largo campo de ação. De um homem que
pode produzir trabalho e riqueza em dimensões astronômicas ao fim de poucos
segundos, poderíamos esperar as mais estonteantes revoluções da ordem política,
econômica, tecnológica do mundo” (p. 275). Isto é: o Superman poderia ser o
Super-Fidel Castro, mas infelizmente, continua apenas a ser o Superman.
Mas aqui ouso afirmar que, por trás da aparente inocência
dos escritores da Era de Prata (devemos lembrar que este trabalho de Eco fora
publicado em 1964), havia talvez uma certa sapiência política, atuante em um
nível quase inconsciente, porque simplesmente desenvolvida, de forma
instintiva, no contexto dos costumes de uma sociedade que construiu sua
história em torno do pessimismo em relação ao homem público dotado de imensos
poderes políticos, e otimismo em relação ao homem privado ligado à sua
comunidade por laços construídos espontaneamente.
Anos mais tarde, seriam apresentadas a nós histórias em que
o Superman é colocado em posição de resolver as questões suscitadas por Eco, e
os resultados seriam insatisfatórios. Temos, por exemplo, a graphic novel “Paz
na Terra”, de Paul Dini e Alex Ross, onde o Superman decide usar seus poderes
para acabar com a fome. O resultado decepciona profundamente o Homem de Aço:
este conclui que enquanto persistir o egoísmo e a indiferença no coração
humano, qualquer esforço de acabar com a miséria será inútil. Isto é, o
Superman conclui que o problema humano não é econômico, mas moral. Somente uma
reforma interior poderia sanar a humanidade. E esta reforma interior não pode
ser operada nem mesmo por um Super-homem, mas apenas por cada indivíduo humano,
em seu confronto existencial consigo mesmo. Em outras histórias, um Superman
“alternativo” (existente em alguma realidade “paralela”) é mostrado mais ao
gosto de Eco. Em “Injustice: gods among us”, o Superman decide ser o ditador do
mundo, para finalmente destruir, mediante ação (e violência) política, todos os
males do mundo. Em "Superman: red son", o escritor Mark Millar mostra-nos o que possivelmente aconteceria ao Superman se sua nave, vinda de Krypton, tivesse pousado em uma fazenda coletiva da Ucrânia durante a vigência da União Soviética; em outras palavras, o que aconteceria se Superman fosse educado sob a doutrina comunista, em lugar de ser educado por um casal de fazendeiros do Kansas politicamente despretensiosos. O resultado é bastante interessante. Kal-El ainda conserva seu caráter puro e boas intenções; afinal, estas são qualidades inatas. O temperamento e o caráter são inatos, mas o intelecto é socialmente construído. Com sua inteligência preenchida pela ideologia comunista, Superman acredita que tem o dever de não somente proteger a vida de pessoas inocentes diante de perigos iminentes, mas, principalmente, seu dever é o de eliminar todas as carências materiais do mundo e, para isso, suas boas intenções gradualmente se tornam em premissas de decisões inescrupulosas e ditatoriais. O Superman comunista de Millar é um monstruoso paradoxo: tão moralmente puro quanto politicamente cruel. "Superman: red son" é a expressão fictícia das teses defendidas por pensadores como Hayek há quase 8 décadas atrás, e amplamente confirmadas pela
experiência humana nos anos seguintes: o político, para consertar o mundo os problemas materiais do mundo,
precisa se intrometer em todas as esferas da vida humana; a ao fazê-lo, elimina
toda a liberdade, desencadeando uma miséria moral muito mais intensa do que a
miséria material existente sob o status quo que ele então buscou destruir.
No fim das contas, o apocalíptico e intelectualizado Eco
estava sendo politicamente ingênuo ao sugerir que o Superman fosse tão
politizado. Por outro lado, os modestos escritores do Superman e seus leitores
“heterodirigidos”, estes pobres consumidores de produtos de cultura de massa e “integrados”
à mesma, estavam afinal com a razão ao contentar-se com as atitudes heroicas e
ao mesmo tempo tão modestas de um personagem dedicado à defesa “da propriedade
privada” e à promoção de “eventos beneficentes”. E esta constatação pode
parecer paradoxal, mas não surpreenderia um estadista brilhante como Edmund
Burke, para quem as tradições são muitas vezes mais sábias do que as fantasias
de um único indivíduo, e justamente porque as tradições resultam das
experiências triunfantes de incontáveis indivíduos. E nesse aspecto o homem
simples leva vantagem sobre o homem intelectualizado, e o “integrado” pode
sobressair-se ao “apocalíptico”: é que enquanto este último é prepotente o
bastante para confiar apenas no próprio julgamento, o primeiro não tem escolha
senão assentir modestamente aos costumes reiterados pela comunidade em cujo
interior ele vive, sem saber que, com isso, está na verdade adotando para si os
padrões cuidadosamente elaborados por incontáveis gerações.
Superman: um mito inserido na lógica do mercado
Um outro aspecto do mito do Superman também explorado por
Eco é a sua singular característica de encerrar em si duas qualidades
contraditórias: evidentemente, o Superman é um mito, e nesta qualidade, é um
“arquétipo”, isto é, um conceito imutável
que “deve imobilizar-se numa fixidez emblemática que o torne facilmente
reconhecível” (p. 251); mas enquanto personagem publicado mensalmente, ele
também possui uma dimensão “romanesca”, vale dizer: suas aventuras obedecem a
uma continuidade infinita, em constante mudança,
e nesta condição, tais aventuras sempre apresentam uma novidade ao leitor. A
partir destas premissas de Eco, seguirei com algumas reflexões pessoais.
De um lado, temos o mito que jamais muda, e cuja história se
desenvolve em circunstâncias familiares ao leitor. Assim, por exemplo, a
história de Aquiles e suas proezas e tragédia narradas na Ilíada são em
essência as mesmas, desde os tempos de Homero. Do outro lado, temos a narrativa
de romance desprovida de qualquer dimensão mitológica. Seus personagens não são
arquétipos, e por isso o autor pode fazer com eles o que quiser. Além disso, é
da essência da narrativa do romance que as situações descritas sejam sempre
novas. O romance encanta o leitor pela novidade que apresenta; o mito, pela sua
força simbólica. Parece-me evidente que o mito contém uma dignidade
infinitamente maior. Seu sucesso consiste em um sua universalidade, ou, nas
belas palavras de Eco, o mito encerra “a soma de determinadas aspirações
coletivas”. Isso significa que o mito se comunica com a humanidade, justamente
porque sua mensagem é universal. É fácil perceber porque o Superman é um mito.
Seu poder simbólico é inegável. A criação de Siegel e Shuster representa aquele
ideal aspirado por qualquer ser humano: a máxima força física, a máxima
determinação moral. Ele é precisamente uma expressão estética daquele destino
que a humanidade, tomada em seu conjunto, sempre almejará.
Diferentemente, o romance é descartável. Justamente por
entreter o leitor pela novidade que apresenta, tão logo seja completamente
consumido pelo leitor, a novidade desaparece e, consequentemente, o seu poder
de entretenimento também. E então pode ser jogado fora. Mais uma vez,
reconhece-se no Superman a sua dimensão romanesca a partir destas definições. É
preciso admitir: entre suas histórias mensalmente publicadas, poucas são de
fato memoráveis (obviamente esta observação pode ser feita sobre qualquer
super-herói de quadrinhos). O leitor compra a nova revista do mês apenas para
saciar sua curiosidade de saber como se deu a continuidade da história que fora
apresentada do mês anterior, e para ganhar a expectativa de como será sua
continuidade no mês seguinte. Tão logo ele tome posse dessas informações, o
fascículo é guardado, e só será reaberto para tirar alguma dúvida, relembrar
algum fato, ou simplesmente para rever a arte do desenhista.
Eis, portanto, a contradição do Superman: ele é, a um tempo,
universal e circunstancial; arquetípico e imortal, mas também com uma dimensão
descartável. Talvez esta seja a consequência natural de um mito que fora criado
e desenvolvido em uma época imersa na lógica do mercado e produção. E é neste
segundo aspecto que se impõe aquele que talvez seja o maior inimigo do
Superman: a sua vulnerabilidade a novidades tolas idealizadas por editores e
escritores mesquinhos, além de desenhistas incompetentes. Anos atrás, em um
texto publicado neste mesmo blog, chamei esta ameaça de “vilão
metalinguístico”. Nome bastante pedante, devo reconhecer hoje. Mas há verdade no conceito ao qual ele se refere. Por mais que amemos o personagem e reconheçamos a essência dele, nunca
poderemos livrá-lo totalmente da má influência de editores oportunistas e
escritores ruins que insistem em deformá-lo para que, assim, talvez aumentem um
pouco as vendas e subam as cifras de seus próprios salários. Desde 1938, o
Superman já foi circunstancialmente retratado como um idiota e colocado em
situações humilhantes que contrastavam com sua enorme estatura mitológica. E
isso sempre ocorrerá, uma vez que sua dimensão arquetípica está sempre
acompanhada por sua dimensão romanesca. Ele é um mito que, infelizmente, por vezes é confundido com simples produto de mercado. E nenhum grande super-herói
consegue se blindar contra isso. Vide o caso mais recente do Capitão América
“nazista”, sobre o qual já falei algumas coisas neste blog. Por outro lado, é
preciso afirmar que a dimensão romanesca precisa estar subordinada à
arquetípica. A veracidade desta exigência confirma-se pelo fato de que os
leitores mais sensíveis normalmente se revoltam com as mudanças drásticas e
inadequadas pelas quais o super-herói passa. Certa vez, em uma discussão com um
leitor de quadrinhos, eu estava me queixando de alguma reformulação estúpida
pela qual o Superman passava (e que, aliás, já foi revogada). E então este
leitor respondeu: “o Superman é aquilo que a DC Comics decide que ele deve
ser”. Estas são as palavras de um leitor estúpido, incapaz de reconhecer a
dimensão mitológica do super-herói, para rebaixá-lo apenas à sua dimensão
romanesca e descartável.
E assim chegamos a um outro ponto. Embora nossos personagens
favoritos não possam blindar-se contra esta terrível ameaça – isto é, os
comerciantes da DC e Marvel que gostam de prostituí-los como produtos de
mercado em lugar de respeitá-los como mitos – no entanto, acredito que o leitor
inteligente e sensível a mudanças arbitrárias possa blindar a si mesmo. E como
isso é possível? Primeiro, reconhecendo a essência do personagem. Em outras
palavras, mediante a apreensão da dimensão mitológica e arquetípica do
super-herói. Segundo, selecionando os materiais que irá consumir, adquirindo
apenas aqueles que sejam fieis e adequados à dimensão mitológica do personagem
(isto é, apenas se quiser evitar decepções).