domingo, 20 de dezembro de 2020

Minhas considerações críticas a “Superman: para o alto e avante”, de Tom King e Andy Kubert

 


A premissa é boa. Superman viaja pelo universo para salvar a vida de uma única criança que fora capturada por uma alienígena cruel. A partir desta simples proposta, podemos deduzir que, em seu curso, Superman deparar-se-á com novos problemas e terá de lidar com outros alienígenas superpoderosos, conhecerá outros seres em apuros e resolverá a situação, até que, enfim, ele possa atingir seu objetivo final, que é o de resgatar a criança e retornar com ela ao planeta Terra. É o tipo de premissa que sempre gerará uma boa história, porque a estrutura do roteiro já é instigante. Trata-se da clássica e universal estrutura de roteiro do viajante aventureiro, e isso vem dando certo desde quando Homero escreveu a Odisseia. Esta mesma estrutura é reutilizada, por exemplo, no Pequeno Príncipe, na antiga série de TV do Incrível Hulk (protagonizada pelo saudoso Bill Bixby), e em Jornada nas Estrelas (principalmente a série clássica). E sempre com sucesso.

 

Portanto, a estrutura é, por si só, praticamente infalível. Tudo o que o escritor precisa fazer é preencher esta estrutura. Não tem como dar errado. Exceto, é claro, se o escritor for Tom King. Quem conhece o trabalho do homem sabe que sua especialidade é a de deprimir seu leitor. E sua fórmula pra isso é bastante simples: ele deprime os heróis que escreve. Na verdade, a fórmula é mais abrangente: trata-se de vulgarizá-los. Se estão tristes, então ficam excessivamente abatidos, resignados, como toda pessoa medíocre. Se os personagens de King não estão deprimidos, então estão exultantes demais, o que expressa afetação. E, infelizmente, com o Superman não é muito diferente. Na maior parte do tempo, King não escreve o Superman, mas um sujeito que eu gostaria de chamar de Simpleman: trata-se de um carinha triste, desanimado, e que geralmente confunde bondade com bonachismo, tal como faz a média da humanidade. Em suma, um tipinho simplório, comum, muito diferente do Superman como deve ser, isto é, superior ao homem ordinário (aliás, o nome do personagem é bastante autoexplicativo neste sentido). Simpleman é como todo sujeitinho comum, com o acréscimo de que ele voa e tem super-força. E usa uma roupa azul com capa vermelha. 

 

Um exemplo do que estou querendo dizer já podemos encontrar nas primeiras páginas. Quando Batman descreve ao Superman um crime ocorrido em Gotham (e que envolve a criança capturada), qual a reação do Superman? Uma atitude combativa, temperante,  e a promessa de resolução da situação? Não; esta teria sido a reação de um verdadeiro Superman. Em vez disso, a atitude do Superman (ou melhor, do Simpleman) é o abatimento e a resignação. “I’m sorry” é sua resposta ao Batman (e ele diz “I’m sorry” com uma expressão facial de “acho que quero chorar”). Na verdade, eu perdi a conta de quantas vezes Superman disse “I’m sorry” durante a história. Ou de quantas vezes Kubert o desenhou com essa cara de chorão derrotista.

 

Aliás, este é um ponto que deve ser sublinhado. Eu tenho percebido que muitos artistas acreditam que desenhar o Superman consiste em fazer um cara fortão em uma roupa azul e capa vermelha. Estes artistas não entendem que, se apenas fazem isso, então estarão desenhando um sujeito fantasiado de Superman, e não o Superman propriamente dito. Eles se esquecem que as expressões corporais e faciais são tão importantes quanto o corpo robusto, a roupa azul e a capa vermelha. Pois não basta desenhar as características extrínsecas de um personagem; é necessário desenhar também suas características intrínsecas. E se o Superman não demonstrar altivez e virtude em sua expressão corporal e facial, então ele se parecerá apenas com um sujeito fortinho vestido de Superman. É por isso que julgo inaceitável o conteúdo da página abaixo:

 


Neste momento, Superman estava em uma espécie de posto telefônico intergaláctico, esperando ansiosamente sua vez para falar com a esposa Lois Lane. Sua expressão corporal – que denota entrega à ansiedade, cansaço, impaciência, nervosismo, aflição – rebaixa-o à categoria de um homem absolutamente comum, que se deixa consumir por emoções vulgares, como o tédio e o desânimo (eu realmente fiquei surpreso por King não tê-lo feito puxar um smartphone do bolso, ligar o Whatssapp ou um joguinho eletrônico, enquanto brinca de fazer bolas de chiclete). Aqui é manifesto o rebaixamento do Superman à condição de Simpleman, o herói favorito de Tom King. Entenda, senhor King: o que faz do Superman “super” não são apenas os poderes físicos, mas sobretudo as virtudes morais. E a temperança é uma das virtudes cardinais. Se o Superman é incapaz de exercê-la, então ele não deveria ser chamado de Superman. Não há nada mais simplório e ordinário do que ser intemperante. Mas o Superman é o oposto do simplório e do ordinário. Ele é “super”, lembra-se? O nome dele é “Superman”, lembra-se?

 

Essa página me faz lembrar de um outro ponto. Há alguns meses atrás, o ator Dean Cain (que interpretou o Superman durante os anos 90 na série Lois and Clark), escreveu no twitter que, se interpretasse o Superman hoje, provavelmente não permitiriam que ele dissesse o lema “truth, justice and American way”. Na ocasião, Tom King escreveu uma resposta a Cain, chamando-o de “motherfucker” (sim, King é um desses valentões de redes sociais[1]), e em seguida mostrando uma página da história aqui comentada, Superman: up in the sky, na qual o sargento Rock diz aquelas palavras. Mas não é o Superman que diz aquelas palavras, o que mantém em pé a acusação feita por Dean Cain. Aliás, na página de “up in the sky” na qual o Superman realmente diz aquelas palavras (quando ele está esparramado como um adolescente preguiçoso na cadeira de espera do posto telefônico intergaláctico) é em um tom de desprezo: “Truth, justice, the American way... I don’t care”. Se ele, o Superman, não conseguir falar logo com sua esposa ao telefone, então que se lasque todos os seus princípios... ele ficará irritadinho. “Truth, justice and American way” tem lá sua importância, mas mais importante é falar ao telefone. O que King nos mostra é que este Superman não consegue manter-se firme em relação aos seus princípios quando suficientemente pressionado pelas circunstâncias e pela sua própria intemperança... assim como todo homem comum. Por isso eu digo: em momentos como este, King não escreve o Superman, mas o Simpleman.

 


Durante a Era de Prata dos quadrinhos, os escritores e os desenhistas projetavam no Superman aquilo que eles acreditavam que deveríamos ser; na atualidade (que eu gostaria de chamar de "A Era de Lata dos quadrinhos"), temos escritores como Tom King que projetam no Superman aquilo que eles próprios já são (ou imaginam que sejam). Isso é sintoma da mais grosseira autoindulgência. Sempre deveríamos inclinar nossa cabeça para o alto, caso pudéssemos ver o Superman. Entretanto, caso pudéssemos, King está nos dizendo que deveríamos encará-lo de frente. Para King, nós já somos o Superman; não porque nos superamos, mas porque o Superman desceu ao nosso nível. Julgo isso um enorme desserviço ao arquétipo do super-herói.

 

Mas para ser justo, devo reconhecer que “para o alto e avante” tem bons momentos. Muito de vez em quando, King resgata o Superman de sua condição de Simpleman, e o heroísmo, a altivez e a bravura retornam às páginas de história em quadrinhos do maior dos super-heróis (de onde nunca deveriam sair). Aliás, King mostra que entendeu o Último filho de Krypton em um ponto fundamental: Superman é sobre heroica compaixão. Tudo o que ele faz nesta história é para salvar uma única garotinha, e este tipo de sacrifício está inteiramente de acordo com aquilo que o personagem representa. A conclusão da história é excelente, e se todo o resto dela não estivesse recheado de inúmeros momentos de sentimentalismo grosseiro, de emoções exageradas, em suma, de situações patéticas com carinhas de choro e lamentação e abraços afetados, eu diria que “Superman: para o alto e avante” até mesmo poderia entrar para o rol das histórias realmente significativas do Superman, eternamente incorporadas ao seu mito.

 

Em particular, devo elogiar a boa sacada de King quando o Superman, questionado pela garotinha se ele venceria o Batman, responde: “O Batman venceria [...] Eu o deixaria vencer [...] Se você conhecesse o Batman, saberia que isso significaria muito para ele [...] Ele passou por muita coisa. Ele merece alguma felicidade”.

 


Isso me fez relembrar do Superman da Era de Prata, em uma aventura sua junto de Batman na cidade engarrafada de Kandor, onde ele não tinha poderes. O plano de Superman era criar uma falsa ameaça em Kandor para que o Batman pudesse resolvê-la e, assim, recuperasse sua autoestima, recentemente abalada após ter sido inútil em sua última aventura na companhia de Superman. Porém, Batman acaba descobrindo todo o plano. Ofendido, o homem-morcego desafia Superman para uma luta dentro das tradições de Kandor (em um ringue, com escudos e espadas), com o objetivo de reaver sua honra. Durante a luta, Superman pensa: “percebo uma brecha na postura de Batman, mas não vou me aproveitar”. Em seguida, Superman é atingido por Batman, pois sua “hesitação é fatal diante da brilhante habilidade acrobática do homem-morcego”, conforme descreve a narrativa(2). Foram maravilhosas histórias como essas que, durante minha infância, fizeram-me transferir minha predileção ao Superman, antes apaixonadamente dedicada ao Batman. Pois o que me encantava no Homem de Aço era essa compaixão, essa nobreza de espírito, esse altruísmo irrestrito, aliados a uma postura absolutamente viril e inquebrantável senso de bravura, heroísmo e coragem. O Superman não tinha tempo para frivolidades como vencer duelos. Mais importante era fazer seu amigo sentir-se bem consigo mesmo.

 


Conclusão: minha opinião sobre “Superman: para o alto e avante” contém alguma ambiguidade. Por um lado, eu aplaudo Tom King por adotar como premissa um dos aspectos mais importantes do Superman: sua heroica compaixão. Por outro, a execução da obra, em sua maior parte, conduz a resultados um tanto perturbadores, pois o heroísmo compassivo do Superman é, em vários momentos, privado de toda altivez e dignidade, degenerando-se em momentos absolutamente patéticos. O bom é muitas vezes convertido em bonachão.

 

“Patético” significa exagero de emoções. E em King, toda emoção é exagerada; por toda parte sempre há abraços acalorados entre os personagens, muitas expressões faciais que denotam abatimento, muita lamentação, enfim, um emotivismo incessante e repetitivo que pode facilmente causar cansaço no leitor avesso à monotonia. O Superman deveria transcender o sentimentalismo, pois, como nos ensinou Aristóteles, tudo que é exagerado é viciado. E um Superman tem de ser a imagem da virtude.



Notas

1 Outro inusitado episódio no twitter envolvendo King foi quando o editor Mark Doyle deixou a DC Comics. Na ocasião, King disse coisas extremamente gentis sobre Doyle: “Mark Doyle, o editor transcendente, visionário, brilhante, está deixando a DC Comics. Eu não teria uma carreira sem ele [...]. Uma verdadeira lenda”. Imediatamente ele recebeu uma resposta de Tom Brevoort: “Não foi você que forçou sua saída dos títulos do Batman e se gabou disso numa entrevista? É odioso chorar pelo corpo quando você ajudou a matá-lo”.

2 Esta história (“The feud between Batman and Superman”) foi publicada em Word’s Finest #143, de 1964, e escrita por Edmond Hamilton e desenhada por Curt Swan (uma de minhas duplas favoritas). Aqui no Brasil, foi publicada no início dos anos 90 no fascículo 16 da coleção Invictus, da editora Nova Sampa, e foi graças a esta publicação que pude lê-la. Desconheço se esta história foi publicada anteriormente no Brasil. Ainda pretendo prestar minhas homenagens à maravilhosa coleção Invictus neste blog. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário