terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Algumas reflexões sobre o mito do Superman

 

Os criadores do Superman: Joe Shuster e Jerry Siegel



“Superman was the first crusader for social justice in comics” – Mark Waid 

“Superman was about the immigrant experience in a very powerful way” – Dwayne McDuffy 

Estas duas frases foram ditas no documentário Secret Origin: the Story of DC Comics[1]. O motivo de eu destacá-las é que acredito que as mesmas expressam duas linhas de interpretação do mito do Superman com as quais eu não concordo. Passo agora a expor os motivos de minha discordância.

 

§1. Superman e Justiça Social

Como bem nos ensina Francis Bacon em seu Novum Organum, um dos maiores inimigos da ciência é o uso inadequado das palavras e suas significações. Eu acho que poucas palavras são mais mal utilizadas do que “justiça social”, e um exemplo deste mau uso é-nos dado neste comentário de Mark Waid. Afinal, o que Waid quer dizer com isso? Ele próprio não esclarece. 

A expressão “justiça social”, se não for um mero pleonasmo (pois toda justiça se dá em um contexto de vida social), significa um sentido estrito de justiça; mais precisamente, a justiça no contexto dos deveres jurídicos do Estado em relação aos cidadãos economicamente desafortunados. Neste sentido, podemos nos referir a medidas assistencialistas como “justiça social” (por exemplo: saúde pública, previdência social, direitos trabalhistas). E qualquer um que ler as primeiras histórias do Superman perceberá que o personagem não é sobre este último sentido de “justiça”. Ele não é algo como um sindicalista exclusivamente dedicado a demandar do governo melhores condições de vida e assistência econômica para os mais pobres. É verdade que há uma história dele (publicada em Action Comics n. 8) que pode ser interpretada como um crítica à ausência de políticas públicas de combate à pobreza. Mas meu ponto é o de que este é um episódio particular demais para acabar como definição completa do personagem. Em suas primeiras histórias, o Superman se envolvia em qualquer caso de injustiça, e isto no sentido mais lato da palavra: injustiça como desequilíbrio dos pratos da balança. Sempre que houvesse este desequilíbrio, lá estava ele. Portanto, a justiça do Superman era no sentido de evitar que alguém sofresse qualquer dano imerecido. É o sentido mais universal de justiça, e que pode ser definido na clássica fórmula latina: neminem laedere (“não lesar ninguém”). A única coisa que diferenciava este Superman dos primeiros anos de publicação do Superman que se tornou “clássico” era seu modus operandi. Ele era misterioso, não dava satisfações às autoridades e às vezes era excessivamente agressivo em relação aos criminosos. Em suma, neste aspecto ele não era muito diferente de Frank Castle, o Justiceiro da Marvel Comics. E ninguém chamaria o Justiceiro de “crusader for social justice”.

Por outro lado, é possível perceber um uso mais ideologizado da expressão “justiça social”. A partir daquele seu sentido estrito, muitos distorcem-no para significar algo impreciso como “combater ricos e defender pobres”. Nesse contexto, o termo “justiça social” passa então à condição de chavão empregado no contexto de um discurso classista. É possível que seja este o sentido que Waid atribua à palavra quando diz que o Superman era, inicialmente, um “crusader for social justice”.

Mas vamos analisar as primeiras histórias do Superman, para então concluirmos se o Superman daquelas publicações de 1938 a 1939 pode ser definido simplesmente como um “crusader for social justice”.

Em sua publicação de estreia, Action Comics n. 1, a primeira ação do Superman é a de salvar uma moça que será executada por um crime que não cometeu. Interessante notar que ele não protesta contra a pena de morte, mas simplesmente opõe-se à execução de um inocente, tanto que ele livra a moça inocente entregando a verdadeira culpada (e que certamente será executada). Em seguida, ele salva uma mulher que está sendo espancada pelo seu marido. Ainda na mesma história, ele dá uma lição em valentões mafiosos que capturam Lois após ela se recusar a dançar com um deles.

Em Action Comics n. 2, ele enfrenta lobistas e empresários que queriam envolver os EUA em uma Guerra para financiar a indústria bélica. Em Action Comics 3, ele conscientiza um empresário sobre as péssimas condições de trabalho de seus empregados. Em Action Comics 4, ele combate um treinador de futebol universitário que jogava sujo para garantir seu emprego. Em Action Comics 5, Superman evita acidentes e desastres, e salva Lois de afogar-se. Em Action Comics 6, ele prende um sujeito que comete estelionatos e que tenta matar Lois.  Em Action Comics 7, ele enfrenta um agiota violento que ameaça um empresário dono de um circo. Em Action Comis 8, enfrenta um corruptor de jovens. Em Action Comics 9, escapa de um policial que deseja prendê-lo. Em Action Comics 10, enfrenta um superintendente de uma prisão que tortura prisioneiros. Em Action Comics 11, combate uma quadrilha que aplica golpes no mercado de ações. Em Action Comics 12, enfrenta motoristas que não obedecem às leis de trânsito. Em New York World’s Fair n.1, ajuda em um evento beneficente para crianças que sofrem de paralisia infantil, e depois prende uma quadrilha de ladrões.  Em Action Comics 13, enfrenta um sindicato corrupto que oprime taxistas independentes.

Podemos perceber que estas primeiras histórias do Superman não apresentam qualquer visão unificada sobre o mal que há de ser combatido no mundo. Superman enfrenta gente de todo tipo e em várias circunstâncias completamente distintas entre si. O único elemento comum parece ser o realismo dos problemas enfrentados. O que eu quero dizer é que este primeiro Superman não é ideologicamente orientado, pois enfrenta toda sorte de problemas que fazem parte do cotidiano: violência doméstica, agiotas, mafiosos, patrões insensíveis, ladrões, assassinos, políticos e sindicatos corruptos. Ele não se dedica a resolver um tipo de problema específico e nem a defender uma classe específica de pessoas, como seria de se esperar de um “crusader for social justice”. Ele não está declarando guerra ao capitalismo in abstracto, mas à ganância de indivíduos; não está em uma cruzada contra a pobreza in abstracto, mas contra ações injustas de indivíduos particulares. Em uma história, Superman está enfrentando um empresário corrupto (AC n. 2); em outra, ele está defendendo um empresário honesto (AC n. 7). Em uma história, ele está protegendo meninos pobres moradores de um bairro periférico (AC n. 8), mas em uma outra, publicada no mesmo ano (1939) como tira de jornal, Superman dedica-se a salvar a vida de um rei e de uma princesa de uma nação estrangeira (a história se chama "royal deathplot"). Superman quer proteger os “oprimidos”, e qualquer um que esteja sofrendo algum tipo de injustiça enquanto mostra-se incapaz de lutar contra ela, encontra-se sob esta categoria. Ele não tem um interesse específico nos “pobres” em geral, mas apenas nos “pobres” que estejam sofrendo alguma violência ou injustiça. Do mesmo modo, ele não combate os “ricos” em geral, mas apenas aqueles que, por ganância e maldade, praticam injustiças. A questão não é política e nem ideológica; o problema é moral. Não importa a classe à qual o sujeito pertence, mas sim se ele é justo ou injusto.

Consequentemente, é fácil perceber que Siegel e Shuster não estavam escolhendo os adversários do Superman sob algum critério ideológico unificado e definido, mas estavam apenas reagindo espontaneamente aos problemas reais que eles próprios testemunhavam naquele tempo. Eles se mostravam tão sensíveis ao problema da pobreza que provoca delinquência juvenil (AC 8) – o que é uma causa pela qual um “crusader for social justice” teria simpatia – quanto ao problema da corrupção entre treinadores de futebol em universidades – o que nada tem a ver com o horizonte de questões que preocupam “justiceiros sociais”. Portanto, reduzir o Superman de Siegel e Shuster à fórmula “crusader for social justice” é empobrecê-lo, porque tal definição não abrange suficientemente todos os problemas morais que ocupavam as aventuras daquele herói. Certamente, Siegel e Shuster produziram material que pudesse provocar simpatia entre os adeptos da “justiça social”. Mas eles estavam muito longe de restringir o Superman a apenas isso.

Em suma: meu ponto é o de que não se define o todo pela parte. Dizer que o Superman das primeiras publicações é um “crusader for social justice” é propor uma interpretação empobrecedora do mesmo, porque significa reduzir seu padrão ético a um horizonte ideológico muito restrito. Significa degenerá-lo à condição de herói politizado, em lugar de reconhecê-lo por aquilo que de fato era: um herói moralista, cujas ações apoiavam-se em princípios éticos universais[2].

 

 

§2. Superman e imigração

 E por falar em interpretações empobrecedoras, comentarei agora uma outra linha de interpretação sobre o mito do Superman, e que percebo ter se tornado bastante popular. Trata-se do Superman como fábula do imigrante.

Sim, Superman é de fato um “imigrante”. Mas dizer que ele é “sobre a experiência do imigrante” (tal como sugere D. McDuffy), parece-me ser muito reducionista. Moisés e Jesus também são imigrantes, e ninguém dirá que a vida de ambos “was about the immigrant experience in a very powerful way”.

Aliás, a comparação que faço entre o mito do Superman e a vida de Jesus não é leviana (assim espero), pois penso que ambos trazem consigo uma mensagem bastante próxima: a de que a salvação não vem deste mundo. Em um texto anterior, eu escrevi sobre minha interpretação deste elemento do mito do Superman, que passo agora a transcrever:

 

Nada que é realmente bom pode vir deste mundo. O Super-homem não é um homem nascido na Terra, que se tornou superior após ler “Assim falou Zaratustra”, ou algum texto evolucionista de Herbert Spencer. Ele veio de um mundo “muito, muito distante”. Portanto, em meu modo de interpretar o mito do Superman, penso que ele nos ensina que devemos ser humildes enquanto espécie, e portanto ele afasta aquele humanismo patético que consiste na crença muitas vezes difundida de que somos capazes de realizar toda e qualquer coisa com base em nossa – supostamente profética e onipotente – racionalidade. “Não há limites para o homem!”. Há, sim. E justamente porque somos homens.[3]

 

 

Reduzir este insight de alcance universal a uma circunstancial preocupação político-ideológica com o tema da imigração, é o mesmo que privar o Superman de um dos aspectos mais profundos e fascinantes de sua mitologia. Hoje muitos adoram bancar os psicólogos, para extrair informações pessoais muitas vezes desconhecidas da própria pessoa que eles examinam. É por isso que agora alguns explicam a criação de Joe Shuster e Jerry Siegel como um desdobramento do fato de que ambos projetaram em seu Superman um herói messiânico apto a salvá-los de sua condição de imigrantes assustados (Paul Levitz quase se expressa exclusivamente neste sentido no citado documentário).

Pois eu digo que a ânsia humana por um messias é uma necessidade universal, e o insight de que o salvador não pode vir deste nosso mundo (isto é, não pode ser originariamente um de nós) é igualmente universal. O mito do Superman incorpora estes dois elementos, e é por isso que se tornou imortal e universalmente conhecido. Se o mito do Superman fosse restrito à experiência da imigração, ou que esta experiência fosse sua tônica, então este mito só poderia agradar a imigrantes e só faria sentido para imigrantes.

 

§3. Conclusão

 As duas interpretações que combato têm em comum o fato de que politizam aquilo que deveria estar para além da política.

 A política é a técnica da administração dos meios que conduzem à satisfação de interesses públicos circunstanciais. Um mito, por sua vez, deve elevar-nos para além do local, do circunstancial; deve elevar-nos a uma sabedoria universal. A política faz parte da arte de viver bem neste mundo. Em contraste, o mito verdadeiramente heroico deveria preparar-nos para a superação deste mundo (a começar pela superação de nós mesmos). A política é mais uma técnica de conservação do corpo. Mas a razão de ser do heroísmo mitológico é a de nos proporcionar uma alma.

 Portanto, não deveríamos diminuir a dignidade do mesmo rebaixando-o à condição de componente de um discurso orientado por modismos político-partidários. Fazer isso é o mesmo que destituir o mito de sua universalidade, vale dizer, destituí-lo daquilo que afinal confere-lhe uma extensão mitológica -- o que é uma contradição e, portanto, um erro grosseiro.

 




Notas

[1] Este documentário pode ser assistido neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=N1lSTjClKfs&t=695s

2 Já escrevi algo próximo desta discussão neste blog: https://herosinvictus.blogspot.com/2015/07/grant-morrison-superman-comecou-como-um.html

3 O texto completo pode ser lido aqui: https://herosinvictus.blogspot.com/2015/07/o-que-o-mito-do-superman-pode-nos.html

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