terça-feira, 3 de novembro de 2020

Gerry Conway, o lugar do Justiceiro na cultura, e os danos que o partidarismo provoca na mente humana

 

Arte de Mike Zeck

Schopenhauer dizia que o microcosmo reflete todo o macrocosmo, e, por isso, para que você conheça o todo, basta prestar muita atenção em alguma de suas partes. Este tipo de convicção também parece ter orientado a prática antropológica e etnográfica de Malinowski. E é por isso que, por meio deste texto, sinto-me autorizado a tentar concluir algo sobre a humanidade a partir de um fato bastante singular, e que muitos julgariam de pouca importância. Refiro-me às atitudes do escritor de quadrinhos Gerry Conway em relação a uma famosa criação sua, o Justiceiro (ou Punisher).

 

Já expliquei que o símbolo associado ao Justiceiro, a famosa caveira, tornou-se em nossa cultura um sinal de Justiça Retributiva, bem como de outros valores que a ela estão marginalmente associados: a coragem, o fortaleza, a ousadia, e até mesmo a agressividade. Afinal, a Justiça não é uma virtude para pessoas passivas. Sim, desde Platão sabemos que Justiça é harmonia, um estado de ausência de lesividade, e é por isso que ela fora definida na clássica fórmula latina como neminem laedere – “não lesar ninguém”. Entretanto, o justo não é somente aquele “não lesa ninguém”, mas também aquele que busca impor a punição àqueles que lesaram alguém. Afinal, Justiça é sobretudo equivalência, igualdade, proporção, e disso sabemos muito bem desde Aristóteles (que expôs tudo isso muito bem até o ponto em que os preconceitos da época não atrapalharam seu raciocínio, por exemplo, ao supor existir diferente dignidade entre aquele que desempenha cargos públicos e aquele que não desempenha-os).

 

Consequentemente, aquele que destrói aquele estado de harmonia deve ser penalizado por isso, e esta pena deve ser proporcional à gravidade do ato lesivo. Eis aí o ponto que define o Justiceiro e o símbolo de sua caveira: Frank Castle pune os homicidas com a morte, pois somente a vida paga a vida. E, convenhamos, impor a punição estritamente justa não é para qualquer um. É preciso algum rigor espiritual para isso, pois, no caso do homicídio, ser justo significa condenar à morte aquele que matou alguém (ou, para ser mais preciso, significa executar a pena que o próprio homicida se impôs ao tirar a vida de alguém).

 

Claro, a cabeça da maioria das pessoas não articula conscientemente toda esta miríade de conceitos que estão implicados na caveira do Justiceiro, e por isso percebe-os sob noções mais simplórias, ou mesmo através de sentimentos irrefletidos. No fim das contas, toda esta intrincada explicação é resumida na impressão “badass” que aquele símbolo da caveira causa nas pessoas. É por isso que a caveira se popularizou entre aqueles cuja profissão está intrinsecamente associada ao conflito físico ou, ao menos, à possibilidade de esse tipo de conflito ocorrer: soldados e policiais.

 

Exemplo emblemático disso foi o famoso sniper norte-americano Chris Kyle. Durante o tempo em que serviu na Guerra do Iraque, Kyle atuou em uma unidade autointitulada de The Punishers, cujos membros costumavam adornar seus uniformes e equipamentos com o símbolo do Justiceiro (este fato é mostrado no filme sobre a vida de Kyle, American Sniper, dirigido por Clint Eastwood). O próprio Kyle justificou em sua autobiografia a predileção da unidade pelo famoso personagem da Marvel Comics, nos seguintes termos: “ele matava caras maus. Ele fazia com que os criminosos o temessem [...]. Nós pintávamos [a caveira] com spray em nossos Hummers e uniforme, e em nossos capacetes e em todas as nossas armas. Nós a pichávamos em todo prédio ou muro sempre que podíamos, nós queríamos que as pessoas soubessem: ‘nós estamos aqui e queremos acabar com vocês’(1).

 


Na época, Gerry Conway manifestou sua desaprovação: “Eu era uma pessoa contra a guerra. Eu argumentei contra ela, e certamente escrevi contra ela [...] Eu estou pasmo [...] Como criador, é muito difícil pra mim ver isso. Ninguém pediu minha permissão(2). Esta última frase revela um nível de pretensão tão descabido que só podemos considerá-la como um deslize da parte de Conway. Afinal, ninguém precisa pedir permissão a Conway. Os soldados não estavam comercializando produtos com a marca “The Punisher”. Eles estavam homenageando a criação de Conway. É realmente triste constatar que Conway, ao ver sua criação sendo adorada por homens que arriscaram suas vidas para proteger ele e seu país, não possa manifestar nada além de descontentamento e reprovação. Conway não gosta de guerras? Ok. Mas ele criou um personagem que simboliza o aspecto tanto trágico quanto heroico da guerra (3). E certamente lucrou com isso.

 

Depois, tivemos o caso dos policiais norte-americanos. Já comentei sobre isso no texto anterior, e expus a forma um tanto tola como a Marvel Comics lidou com o assunto (o que só serviu para denunciar a própria hipocrisia e petulância de seus escritores e editores). Qual foi a resposta de Conway quando questionado sobre isso? Novamente, críticas:

 

Pra mim, é perturbador sempre que vejo as autoridades abraçando a iconografia do Justiceiro, porque o Justiceiro representa a falha do sistema legal. Ele acusa o colapso da autoridade moral social e a realidade de que algumas pessoas não podem depender de instituições como a polícia ou o exército para agirem.

        O anti-herói vigilante é fundamentalmente uma crítica ao sistema legal, um exemplo do colapso social, então quando policiais colocam a caveira do Justiceiro em seus carros ou quando militares usam patches da caveira, eles estão basicamente indo para o lado de um inimigo do sistema. Eles estão adotando uma mentalidade de fora-da-lei. Não importa se você pensa que o que ele faz é ou não justificado, se você admira ou não seu código moral, o fato é que ele é um fora-da-lei. Ele é um criminoso. A polícia não deveria adotar um criminoso como seu símbolo.

        [...] Meu ponto de vista é o de que o Justiceiro é um anti-herói [...] Se um oficial da lei, representando o sistema de justiça, coloca o símbolo de um criminoso em sua viatura [...] ele ou ela está fazendo uma declaração muito imprudente sobre seu entendimento da lei”.(4)

 

E talvez Conway esteja fazendo uma declaração muito imprudente sobre seu entendimento da mentalidade desses policiais. Eu duvido que eles associem a caveira do Justiceiro ao fato do mesmo ser um “fora-da-lei”. A caveira está associada à valentia, à justiça, e até a sentimentos mais simplórios. Mais ou menos como disse Chris Kyle, a caveira significa para muitos algo como “somos durões e podemos acabar com vocês”. Conway está supondo que esses policiais são aficionados na leitura de The Punisher, o que provavelmente não é o caso. E mesmo que fosse, o Justiceiro não é totalmente contra a lei. Ele vai atrás daqueles que infringem a lei (sobretudo aquela que proíbe o homicídio). Isso demonstra que há cumplicidade entre o personagem e o sistema legal. Ou ao menos uma cumplicidade parcial, uma vez que, sem dúvida, o personagem infringe a lei processual. Além disso, convenhamos... a definição de “criminoso” é simplesmente “aquele que desobedece leis”, ou “fora-da-lei”, como Conway supõe? Considerando a quantidade de leis positivas absolutamente injustas que já foram sancionadas e aplicadas ao longo da história da humanidade, eu diria que aquela definição de criminoso é criminosa.

 

Devo ainda acrescentar que o argumento de que o Justiceiro simboliza a falência do sistema legal, e que policiais servem a este sistema e que, por isso, policiais e a simbologia do Justiceiro seriam totalmente incompatíveis entre si, é extremamente fraco. Sim, policiais servem ao sistema legal. Mas disso não se segue que eles estejam totalmente felizes com o sistema legal. Se os policiais estão frustrados com o sistema, não vejo por que razão eles não podem se manifestar a respeito. No entanto, reitero que eu não acredito que este seja o motivo principal do uso da caveira em suas viaturas. Creio que o motivo seja muito mais simplório, e até mais estético do que filosófico. Eles não estão protestando contra o sistema legal; estão apenas mandando um recado... algo como "criminosos, tremei!".

 

Aqui, alguém pode dizer: “o Conway não gosta que usem o símbolo do Justiceiro simplesmente porque ele não acredita que ele seja um bom exemplo, ponto”. De fato, o próprio Conway disse sobre Frank Castle que, em sua “opinião, ele não é uma boa pessoa”(5). Mas se este é o ponto de Conway, por que diabos ele deseja que o símbolo com o qual ele próprio não simpatiza (apesar de ter ajudado a criar) seja utilizado por pessoas com as quais ele simpatiza? Pois é esta a sua postura adotada relativamente ao movimento Black Lives Matter (BLM). Em sua campanha - iniciada em junho deste ano, e que objetiva associar o símbolo do Justiceiro ao BLM, e conseguir fundos para financiar este movimento – Conway escreve que

 

Por muito tempo, símbolos associados ao personagem que eu co-criei têm sido cooptados por forças de opressão e para intimidar americanos negros. Este personagem e seu símbolo nunca foram criados como um símbolo de opressão. Este símbolo é o de falência sistemática da justiça igualitária [equal justice]. É hora de reivindicar este símbolo para a causa da justiça igualitária [equal justice] e do Black Lives Matter (6).

 

Em outras palavras, agora o Justiceiro não é mais um símbolo que significa o “fora-da-lei”, ou mesmo um “criminoso”. Frank Castle não é mais uma má pessoa. Agora ele é um campeão da “equal justice”. Como explicar isso? Policiais não podem usar a caveira, pois ela significa “crime”. Mas participantes do BLM podem usar a caveira. Ora, então o BLM é um movimento criminoso? Não, não... esqueça a retórica anterior. Agora Conway decidiu que a caveira é sobre justiça, equal justice! Se é assim, por que os policiais e os militares no Iraque não poderiam ostentar um símbolo que se refere a tão belo princípio? Por que policiais e militares não podem ser igualmente favoráveis à equal justice? Porque, naquela oportunidade, Conway só enxergava aspectos moralmente reprováveis no simbolismo do Justiceiro. Mas agora sua interpretação mudou. Como desfazer este imbróglio?

 

Não vejo saída senão admitindo o seguinte: o problema de Conway não era tanto com o personagem, mas com as pessoas que homenageavam o personagem que ele criou. O Ego de Conway não suportava ver o produto de seu trabalho criativo ser homenageado por pessoas cujas atividades ele desgosta. Por ser simpático ao BLM, ele deseja ver o símbolo que ele ajudou a criar associado àquilo que o agrada. Só assim consigo explicar por que a retórica da crítica cedeu espaço à retórica do proselitismo, e Frank Castle, de repente, voltou a ser um cara legal.

 

E agora posso retornar ao ponto que inaugurou deste texto, isto é, sobre como fenômenos microcósmicos podem pôr às claras aspectos macrocósmicos. A conduta dúbia de Conway revela como a mente humana pode se meter em autocontradições, guiada por orientações emocionais muitas vezes ocultas até mesmo para o próprio agente. E, o mais interessante, é o modo como “douramos a pílula”, isto é, o modo como ocultamos estas orientações emocionais através da máscara do moralismo e do discurso aparentemente esclarecido. E, sobretudo, o quanto nosso Ego, nosso amor de si mesmos, funciona como uma força inconsciente no processo de preservação de nossas pretensões narcisistas. No fundo, Conway apenas não quer ter sua imagem refletida em certos espelhos, e eu acho que ele vê algo dele no velho Castle, porque ele é foi um dos criadores do personagem. Daí ele se incomodar tanto ao ver a imagem do personagem ser apropriada por indivíduos atuantes dentro de certos grupos. Não devemos nos esquecer o modo como ele se expressou em sua campanha: o Justiceiro fora "cooptado" ("co-opted") pelo outro grupo, e agora é hora de ele ser "reivindicado" ("it's time to claim this symbol...") por nosso grupo. Sintomático. Talvez este seja o cúmulo do narcisismo: julgar que certos espelhos são indignos de refletirem nossa própria imagem. E, para o ególatra, a imagem refletida é tudo: ela tem prioridade até mesmo em relação à coerência consigo mesmo. É como se Conway dissesse: “não importa o que eu disse antes; eu apenas não quero ver minha imagem refletida naqueles caras, e quero vê-la refletida nestes caras”. Meu palpite é o de que esta não é uma característica exclusiva de Conway, e sim que sua atitude apenas revela um padrão bastante disseminado em nossa espécie. Mas por ora, é só um palpite. A conversão desta constatação em juízo universal demandaria um trabalho de verificação de vários casos particulares que não pretendo executar no momento.

 

Como leitor de quadrinhos de longa data, eu só gostaria de fazer mais duas considerações. Primeiro, registrar minha admiração por Gerry Conway. Apesar do que escrevi até o momento poder ser visto como uma crítica a ele, o fato é que tenho grande admiração por seu trabalho. Não só por ter ajudado a criar o Justiceiro, mas sobretudo por causa das histórias que ele escreveu do Homem-Aranha durante os anos 70 e 80, e que foram as primeiras histórias que tive o prazer de ler. Considero-as a melhor fase do herói aracnídeo. Por isso, Gerry Conway está entre meus escritores favoritos.

 

A segunda coisa que eu gostaria de fazer é manifestar uma preocupação. Espero que o texto escrito por Conway para promover esta artificial e forçada parceria entre Justiceiro e BLM não faça escola entre os escritores da Marvel, que já causaram danos demais a Frank Castle. Não, não estou dizendo que sou contra pessoas utilizarem símbolos do Justiceiro na luta contra práticas racistas. Sou contra os tolos de mente acrítica (aquela turma do “se o criador falou, então está falado”) começarem a restringir o Justiceiro à luta contra racistas, como se o racismo fosse a única manifestação da injustiça.

 

Aliás, a expressão equal justice pode facilmente induzir cabecinhas ideologizadas (que se caracterizam por sua estreiteza de pensamento, já que costumam limitar-se aos lobbies e novilínguas dos grupelhos aos quais pertencem) a imaginarem que o Justiceiro luta apenas por igualdade racial. Na verdade, esta expressão, equal justice, é um pleonasmo pueril. Pois a justiça é sempre sobre igualdade ou proporcionalidade (quando a igualdade literal não é possível) entre crime e castigo. E é por isso que tanto policiais, soldados, ou civis comuns que são vítimas de violência motivada pelo racismo, podem se sentir à vontade junto aos símbolos relacionados ao Justiceiro: ele representa Justiça Retributiva, e esta impõe a proporção correta entre crime e castigo. No contexto deste universo moral, não há negros ou brancos, mas apenas culpados ou inocentes, e a punição proporcional ao dano causado. Esta é uma mensagem universal e por isso pode ser significativa para qualquer um. Restringi-la a uma mania, a um modismo, empobrece-a. Em todo caso, fico feliz que Conway finalmente percebeu que a caveira do Punisher significa justiça. Agora ele precisa perceber que, pelas mesmas razões, o símbolo da caveira é adequado a qualquer um e em qualquer contexto de busca por justiça retributiva, e isso inclui soldados e policiais.

O Justiceiro pode ser vítima daquele mesmo empobrecimento, se restrito a uma luta particular e à perspectiva de um grupo particular. O que torna o Justiceiro extremamente interessante é o fato de que, para ele, o mundo não se divide em cores, mas entre os inocentes que devem ser protegidos e os culpados que devem ser punidos. E estas duas classes podem ser encontradas em qualquer grupo, a depender dos critérios de definição. Do ponto de vista econômico, há os ricos e os pobres; do racial, os negros e os brancos; do religioso, os crentes e os ateus; do político, os direitistas e os esquerdistas. Mas pela perspectiva de Frank Castle, isso tudo é de pouca importância, pois culpados e inocentes estão disseminados e misturados em todos estes grupos, e esta é a única classificação que realmente importa para o Justiceiro: a classificação moral, exclusivamente baseada na escala da culpa e da inocência



Notas

1 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

2 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

3 Desde sua criação, o Justiceiro é mostrado como alguém que acredita na continuidade de sua missão de soldado, antes atuante no Vietnã, agora atuando contra criminosos dentro de seu próprio país. Sua mentalidade de militar em Guerra fica explícita sobretudo no fato de que o mesmo mantinha um “diário de guerra”, no qual registrava sua perspectiva pessoal sobre os acontecimentos que vivenciava.

4 cf. https://www.syfy.com/syfywire/punisher-creator-gerry-conway-cops-using-the-skull-logo-are-like-people-using-the

5 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

6 Cf. https://www.customink.com/fundraising/black-lives-matter-skulls-for-justice-presented-by-gerry-conway

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