sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O Homem do Amanhã deve abandonar seu passado?

Desde que começou a ser publicado pela Panini aqui no Brasil, em abril deste ano, o “renascimento” da DC devolveu-me o entusiasmo pelas histórias em quadrinhos, principalmente porque o verdadeiro Superman retornou. Além disso, os escritores Dan Jurgens (o velho e bom Jurgens...) e Peter J. Tomasi têm feito um grande trabalho até aqui, apresentando-nos histórias simples e agradáveis sobre um Superman seguro, confiante, determinado e perfeitamente cônscio acerca dos princípios morais que devem orientar sua conduta (a 5ª parte e conclusão da história “homens de aço”, publicada aqui neste último mês de novembro, na edição 8 de Action Comics, é um grande exemplo disso). Se o Superman retomasse totalmente seu uniforme tradicional (o atual é relativamente fiel ao clássico, mas ainda tem diferenças significativas), tudo estaria perfeito. Portanto, em geral devo parabenizar a DC Comics por atualmente realizar nos quadrinhos o oposto da Marvel: enquanto esta insiste em projetos de descaracterização de suas principais lendas para se acomodar a estranhos fetiches da atual moda, aquela – aparentemente, em grande parte pela liderança do tradicionalista Geoff Johns – reinveste nos aspectos icônicos de seus personagens mais importantes.

Mas este texto não é sobre a DC como um todo. É mais um texto sobre meu herói favorito, o Superman. Mais especificamente, desejo discutir uma ideia imposta por Peter J. Tomasi, que acredito ter potencial para projetar forte impacto sobre o mito do Homem de Aço.


Em Superman Annual n.1 (publicada em janeiro nos EUA, mas em novembro aqui no Brasil, em Superman n. 8), o Homem de Aço é confrontado pelo Monstro do Pântano. Motivo: segundo o Monstro (que é ligado à natureza), o Superman estaria criando uma “perturbação no verde”, uma “aberração vibracional”. Fundindo-se ao Superman, o Monstro do Pântano descobre que a razão desta anomalia é o fato de que ele “não aceitou este mundo como o seu” (afinal, ele é um Superman de outra realidade, a realidade anterior ao “ponto de ignição” do Flash e aos “novos 52”... acho cansativo explicar isso, então pressuponho que o leitor conheça estes fatos); ele “ainda está se prendendo a uma Terra da qual não faz mais parte”. Solução: o Superman precisa “libertar-se do passado”, precisa ser “o homem do amanhã” e deixar “o passado para trás”. O Superman aceita o conselho do Monstro do Pântano.



Está aí um exemplo de uma bela história de quadrinhos: um ensinamento moral a partir de metáforas. Quadrinhos de super-heróis jamais deveriam ser outra coisa além de fábulas morais. O que Tomasi parece querer expor é a importância que há em evitar que a fixação pelo passado nos impeça de nos integrar ao presente e, consequentemente, de realizarmos o futuro. Tomasi deixa claro que o passado jamais é perdido, pois ele faz parte de nós, e por isso constitui a “base para o futuro”. Mas apesar de jamais perdê-lo, temos de abandoná-lo.

Reconheço a qualidade desta história. Acho que a simples razão de ela ter conduzido um leitor (neste caso, eu) a refletir sobre sua mensagem já é prova suficiente desta qualidade. Mas algo nela me incomodou, porque aqui Tomasi parece fazer o Superman dar as costas a um dos aspectos mais atraentes (pelo menos para mim) de sua mitologia: seus sentimentos nostálgicos em relação a um mundo passado, ao qual ele já pertenceu. E é justamente este aspecto que está inscrito na melancólica expressão “O Último Filho de Krypton”, e que fora maravilhosamente exposto em histórias imortais que jamais deixarão de compor a mitologia do personagem, como a comovente “retorno a Krypton”, escrita na década de 60 pelo criador Jerry Siegel e desenhada por Wayne Boring.


Capa de Superman n. 141, de novembro de 1960, que contém a clássica história "retorno a Krypton", de Jerry Siegel. A arte da capa é de Curt Swan.

Além disso, contrariando a tese de Tomasi, parece-me que é justamente este aspecto nostálgico, essa saudade derivada de um sentimento de pertencimento a um mundo passado, que faz do Superman o “homem do amanhã”. Pois ele só pode representar um modelo a ser seguido na medida em que se identifica com um outro mundo e com uma outra época, uma Era de Ouro que não encontra mais exemplo em lugar algum. Portanto, poderíamos dizer que a inscrição “O Último Filho de Krypton” conduz-nos ao belíssimo ensinamento bíblico segundo o qual não devemos nos conformar a este mundo (Romanos 12, 2). O Superman só pode ser o “homem do amanhã” porque ele é, acima de tudo, o homem de um passado melhor, o passado representado em Krypton. Ele jamais irá se conformar a este mundo porque na verdade ele é de outro mundo.


"The Last Son of Krypton", incrível arte do grande José Garcia-López. Vi esta imagem pela primeira vez ainda criança (provavelmente no final dos anos 80, quando era comercializada aqui no Brasil como figurinha autocolante), e sempre interpretei-a como uma alusão ao senso de nostalgia e tragédia intrínsecas ao mito do Superman. 

  
Aparentemente, Tomasi não teve a intenção de desvincular o Superman e Krypton, mas apenas o Superman e a Terra anterior ao “ponto de ignição” e aos “novos 52”. Porém, aquilo que vale para Terra anterior, valeria também para Krypton. Afinal, segundo o Monstro do Pântano escrito por Tomasi, as anomalias sofridas pelo ecossistema estavam sendo provocadas pelos sentimentos, vivenciados pelo Homem de Aço, de não pertencimento à Terra atual (e com isso Tomasi pressupõe uma forte vinculação entre o mundo subjetivo, onde se manifestam sentimentos, e o mundo objetivo, no qual se expõem os fenômenos naturais... mas creio que isso seja irrelevante, uma vez que o importante é a mensagem moral da história). Além disso, Tomasi dissocia a ideia de “Homem do Amanhã” da ideia de sentimentos de não pertencimento a este mundo, quando eu acredito que deveria ser o contrário: o Superman é o Homem do Amanhã justamente por causa de uma herança passada. Abandonar esta herança passada equivaleria a um “conformar-se a este mundo”, e assim, nenhuma renovação sadia – seja ela social ou espiritual – seria possível.


Apesar destes apontamentos, acredito que há grande beleza na mensagem de Tomasi. Para muitas pessoas, o passado é um fardo traumático que deve ser abandonado, sob pena de estas mesmas pessoas jamais se integrarem ao presente e construírem um futuro. Mas esta regra não deveria se aplicar ao Superman e nem a quaisquer pessoas cujas origens, mesmo quando trágicas, nem por isso deixaram de ser gloriosas.  

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Liga da Justiça, um EXCELENTE filme de super-heróis que luta contra um vilão terrível: o automatismo do pensamento supostamente crítico



Durante a semana passada, assisti na companhia de minha esposa o filme da Liga da Justiça, em seu dia de estreia aqui no Brasil. Quando o filme começou, confesso que estava um pouco pessimista. Nada do que eu tinha visto nos trailers havia realmente me empolgado. Mas – talvez mais por sensação interna de dever do que de autêntico entusiasmo – fui assistir ao tão aguardado filme. E, contrariando minhas modestas expectativas, devo dizer: foi uma experiência incrível! Empolguei-me como há muito tempo não me empolgava com filme algum. Liga da Justiça mostrou-se um perfeito filme para o gênero de Super-heróis, totalmente apropriado para todas as idades (como deve ser um filme de super-heróis): nele há bons diálogos, cenas de ação empolgantes, humor equilibrado, sólidas interpretações, um vilão inequivocamente malvado, excelente trilha sonora (seja bem-vindo novamente, mr. Elfman!) e a boa e velha luta do bem contra o mal.

Saí da sala de cinema decidido a voltar mais uma vez, no fim daquela mesma semana. Minha esposa também adorou. Todo o público que estava conosco no cinema parecia ter sentido a mesma coisa. As pessoas vibravam com os momentos de ação, riam nos momentos de humor... Enfim, quando o filme terminou, a primeira coisa que pensei foi “a Warner ganhou os críticos”. Quando retornei para ver o filme mais uma vez, quatro dias depois, a sala estava completamente cheia (nunca tinha visto tanta gente em uma sala de cinema) e, novamente, a reação do público foi extremamente calorosa. Aliás, eu jamais havia testemunhado este nível de interação positiva do público da sala de cinema em relação ao filme exibido. Não vi isso na exibição de nenhum filme dos Vingadores, ou do X-Men, ou do Capitão América, ou da série Star Wars, ou mesmo de qualquer filme da própria Warner. Posso dizer que presenciei, em duas oportunidades, o absoluto sucesso do filme da Liga da Justiça em relação ao seu público consumidor.

Por estes motivos fiquei extremamente surpreso, mais tarde, com a receptividade negativa por parte dos críticos profissionais em relação a este trabalho. E o detalhe de maior importância é que a maioria destas críticas (talvez todas elas) direcionam-se a problemas que podemos encontrar em QUALQUER filme do gênero, mas que só ganharam peso ao serem compartilhados pelo filme da Liga.

Exemplos: muitos de seus detratores afirmam que a história é simplória, previsível. Bom, eu não acho que quando estes mesmos críticos foram assistir o primeiro filme dos Vingadores, tenham imaginado por algum momento que a) todos os heróis da trama não iriam se unir durante o clímax da história, ou que b) os Vingadores, unidos, seriam derrotados pelo vilão no final. Os super-heróis são um gênero previsível. Sempre sabemos por que os conflitos começarão (normalmente por causa de algum vilão megalomaníaco), e como terminarão (os heróis vencerão o vilão megalomaníaco). A estrutura de uma história de super-heróis é como a estrutura harmônica de um blues: altamente previsível e simples. O que será determinante na aferição do nível de qualidade de um blues ou deste tipo de história é o modo como esta estrutura comum e repetitiva será preenchida. E neste quesito, Liga da Justiça acertou em cheio, uma vez que a citada estrutura fora preenchida por bons diálogos (com frases que já são marcantes), excelentes cenas de batalha (que, de tão impressionantes, podem ser assistidas várias vezes), belíssima trilha sonora, etc.

Também criticou-se o vilão (Steppenwolf, ou Lobo de Estepe). Disseram que foi um vilão fraco, muitas vezes no sentido de ser simplista (sim, pois provavelmente para estes críticos inteligentíssimos, os desejos de dominação mundial de Loki, Ultron ou Caveira Vermelha eram certamente dotados de uma complexidade e profundidade psicológica dignas dos personagens de Tolstoi). Alguns também apontaram uma falta de carisma ou personalidade (acusação bastante injusta, em minha opinião). Mas devo lembrar estes críticos de que o reconhecidamente patético e desajeitado Kylo Ren não foi um obstáculo para que os mesmos rendessem os maiores elogios a Star Wars: o despertar da força. Alegou-se também que Steppenwolf fora composto por computação gráfica (CGI) de qualidade ruim. Não entendi muito bem esta parte. Achei Steppenwolf graficamente tão convincente quanto o Hulk (e eu havia assistido Thor: Ragnarok tinha apenas uma semana), isto é, não prejudica o filme, mas dá pra perceber com facilidade que se trata de um desenho, e não de uma criatura real. Então se o telespectador não teve problemas com o Hulk, ou com o Ultron, ou com inúmeros monstros que apareceram nos filmes do Thor, então ele também não terá problemas com Steppenwolf.

Alguns disseram, em um costumeiro tom de altivez, que há “furos” na narrativa (ó!). É claro que há  falhas de roteiro (que eu não consegui perceber, porque estava ocupado me entretendo com o filme)... sempre há. Mas, por exemplo, quando Rey “despertou a força” em meio a uma luta com Kylo Ren (citemos novamente Star Wars: o despertar da força...), realizando, assim, em alguns poucos segundos aquilo que Anakin e Luke levaram tempos e duro treinamento para conseguir, poucos ousaram criticar, ou rebaixar as notas do filme em razão disso.

Obviamente, não estou dizendo que Despertar da força, ou Vingadores, ou Thor etc. são filmes ruins. São todos bons filmes também. O que quero dizer é que Liga da Justiça não pode deixar de ser considerado um bom filme apenas porque possui algumas inconsistências, uma vez que as citadas inconsistências parecem ser endêmicas ao gênero super-herói/fantasia/ficção científica.

Para não dizer que absolutamente nada me incomodou neste filme, devo citar a cena de abertura do filme, com o Superman. A ideia da cena em si foi muito boa. Mas fica difícil não perceber que Henry Cavill sofreu mudanças de computação gráfica na face, para apagar o infame bigode que o ator teve de conservar por força de um contrato com o estúdio de Missão Impossível 6. Fiquei incomodado ao assistir. Porém, é preciso notar: esta cena (que talvez tenha menos de 1 minuto de duração) foi a única em que qualquer alteração neste sentido tenha sido perceptível (e mesmo assim, arrisco dizer que tenha sido perceptível apenas para pessoas com familiaridade com a face de Cavill). Em todas as outras cenas com o Superman, não pude notar nenhum traço de alteração decorrente de imagens geradas por computador.

E isso nos leva a um outro ponto deste texto: um fenômeno social já antigo, mas hoje mais evidente, que é a falta de autonomia intelectual das pessoas. Pensar por si mesmo exige coragem, porque te torna diretamente responsável por suas próprias opiniões. Mas simplesmente seguir uma opinião formada – principalmente se a tal opinião formada tenha sido produto gerado por supostos “peritos” no assunto – torna tudo mais fácil, pois se você estiver errado, basta deslocar seu oponente para o verdadeiro gerador da sua opinião. “Vá reclamar com ele... eu apenas repeti o que ele disse”. Portanto, a heteronomia intelectual (que basicamente consiste em pensar com a cabeça dos outros) é, em primeiro lugar, um sintoma de fraqueza moral, porque denuncia o medo da responsabilidade proporcionada pelo pensamento livre e espontaneidade do julgamento pessoal. É muito mais fácil viver como animal de rebanho do que como um predador independente.

Pois bem: de maneira bastante inusitada, o filme da Liga da Justiça demonstra este triste e persistente sintoma social, pois é sem número o caso de pessoas que manifestam ódio e desprezo por este filme com base na opinião de críticos. E a maior prova disso é o caso dos efeitos de CGI sobre o rosto de Cavill. Muitas pessoas têm declarado que TODAS as cenas com o Superman foram arruinadas graças a este recurso, quando na verdade, conforme já dito, apenas a cena inicial do filme (e que dura alguns poucos segundos) sofre deste problema. Estes patéticos “críticos” por derivação chegam mesmo a cometer a gafe de postar, em redes sociais, imagens do rosto de Cavill, mas que foram tiradas de outros momentos do filme onde não há qualquer sinal de deformação por CGI, como se alterado o rosto estivesse. E não faltam membros e pretensos membros do mesmo rebanho para expressarem suas críticas, com ar de sapiência e superioridade, ao rosto do ator, que na verdade aparece inalterado na imagem que é objeto de chacotas. Portanto, são pessoas que preferem seguir opiniões formadas de antemão a tirar conclusões com base nas próprias percepções e experiências. São autômatos do pensamento. Rebanho.

Claro que há muitos “haters” que procuram se beneficiar desta situação. Hoje há pessoas que escolhem Marvel ou DC como se fossem times de futebol. Mas sem o automatismo do julgamento, estes “haters” teriam vergonha de manifestar suas opiniões. Se o fazem, fazem-no porque se sentem fortemente amparados sobre a opinião de terceiros.


Por isso concluo que o grande vilão contra o qual o filme da Liga da Justiça deve lutar é o automatismo do pensamento daqueles petulantes e impotentes que se supõem críticos independentes. Esta mentalidade de rebanho já provocou consequências severas. Afinal, o filme da Liga faturou até aqui muito menos do que o esperado, graças a esta infundada epidemia de calúnia virtual. Mas isso não é nada comparado às consequências sociais mais graves que resultam, de tempos em tempos, daqueles que alienam a própria capacidade de percepção em nome da covardia – porque têm medo de assumir a responsabilidade que decorre da liberdade intelectual – e da vaidade – pois no fundo também desejam aparentar esperteza e sofisticação diante de seus verdadeiros mestres e condutores.

sábado, 4 de novembro de 2017

Algumas palavras sobre Jack Kirby e sua série "Superpowers"




Parabéns à equipe da Panini por trazer aos leitores brasileiros os dois volumes da série "Superpowers", trabalho do grande Jack Kirby (com a valiosa colaboração dos roteiristas Joey Cavalieri e Paul Kupperberg, e do desenhista Adrian Gonzales).


Enquanto lia as histórias, não pude evitar de pensar no quanto a boa fama de Kirby é merecida. O homem realmente tinha uma imaginação inigualável. Seus trabalhos  sempre nos trazem esta sensação de que estamos presenciando um evento fantástico e épico. Sua arte e escrita são dotadas daquele tipo de simplicidade e magia capaz de oferecer-nos momentos de salutar alegria, tão vitais ao fortalecimento e renovação de nosso espírito. Seus heróis trazem consigo um senso de força e grandeza que contrasta imensamente com o tom prosaico que marca as aventuras e personalidade dos personagens nos quadrinhos atuais, sobretudo daqueles que hodiernamente são produzidos pela Marvel Comics, hoje inundada por escritores de tendências contraculturais, os quais, cegados por certas ideologias da moda, investem sua imaginação em ataques à cultura do Ocidente e de sua própria pátria. Os heróis de Kirby protagonizam épicos; comparados a eles, os heróis envenenados pelo Zeitgeist do momento - e que por isso são retratados como portadores das deformações e carências tipicamente humanas - apenas atuam em ridículos romances. 



Em "Superpowers", não encontraremos super-heróis dúbios, sinais de relativismo moral, ou tentativas patéticas de doutrinação política. "Superpowers" é tudo aquilo que os quadrinhos de super-heróis jamais deveriam deixar de ser: histórias simples e agradáveis, onde os heróis representam o bem, e os vilões, o mal. Aqui, os heróis não se  comprometem com ideologias particulares, mas com valores morais universais. Portam-se como verdadeiros guardiões das mais profundas e elementares convicções éticas da humanidade, e, neste sentido, podemos dizer que este trabalho de Kirby presta sua modesta contribuição à preservação das "coisas permanentes" (segundo a expressão do poeta T.S. Eliot). 



E, em tempos onde o próprio significado de "arte" sofre distorções (para acomodar as predileções funestas de certos espíritos doentes), tem-se aqui um exemplo de verdadeira obra artística, porque expressa à sua maneira o sublime e o belo em vez de exibir grosseiramente neuroses particulares, e por isso tal obra pode ser igualmente apreciada por pessoas de todas as idades.



Meu veredito: "Superpowers" é leitura obrigatória a todos os fãs do super-heroísmo clássico, e recomendada mesmo àqueles que, embora não sejam apaixonados pelo gênero, apenas desejam obter satisfação a partir do contato com uma boa história em quadrinhos.

sábado, 16 de setembro de 2017

ALERTA! Até mesmo o G.I.Joe caiu nas mãos dos SJW's.



 Minha infância foi dominada por duas coisas: super-heróis e Comandos em Ação. Este último foi o nome dado pela empresa Estrela à famosa franquia G.I.Joe. Os heróis militares da franquia eram admiráveis, tanto quando mostrados no desenho animado produzido pela Sunbow, quanto em suas versões de action figures, que normalmente vinham lacradas em cartelas que continham belíssimas imagens desenhadas pelo gênio Hector Garrido. Tomemos o exemplo de Flint (o "oficial combatente" em sua versão comercializada aqui no Brasil pela Estrela).



Nesta imagem está representada toda a essência, todo o espírito dos valorosos Comandos em Ação: força, disposição, bravura, coragem. Principalmente esta última, reconhecida desde Platão como uma das quatro virtudes cardeais, intrínseca ao guerreiro, e que durante a Segunda Grande Guerra o brilhante general Patton tentou extrair, inutilmente, de um soldado covarde, ao esbofeteá-lo. Percebe-se também nesta imagem toda aquela atmosfera de orgulho e otimismo que caracterizavam os EUA no período liderado pelo presidente Ronald Reagan, quando aquela nação havia reassumido, sem qualquer falsa modéstia, a ideia de um destino, que seria sua missão histórica: a conservação da liberdade do Ocidente diante do autoritarismo que vinha do leste europeu, cuja expressão máxima era o socialismo internacional da União Soviética.

O G.I. Joe é carregado de uma simbologia que até hoje expressa estas ideias, tornando a famosa franquia de personagens militares da Hasbro uma espécie de anacronismo dentro da atual cultura pop (e quando digo que o G.I.Joe é anacrônico, estou fazendo um elogio). Nestas circunstâncias, é de se imaginar que a atual esquerda radical norte-americana - caracterizada por um intenso anti-americanismo e sentimento de repúdio aos valores tradicionais do Ocidente, e que se expressa nas atitudes histéricas de grupos radicais como o ANTIFA e os SJW's (Social Justice Warriors) - correria dos produtos relacionados ao G.I.Joe como o diabo foge da cruz. Mas esta suposição mostrou-se ingênua, porque subestima a obsessão que essa gente tem por hegemonia cultural. E por que digo isso? Por causa das atitudes do atual escritor da série de quadrinhos do G.I.Joe, Aubrey Sitterson.

Sitterson pertence a esse seleto e exótico grupo de norte-americanos que publicamente se diz socialista - mas um socialista moderno, mais incomodado em fazer o mea culpa por ter nascido branco, e nos EUA, do que em resolver problemas ligados à má divisão do capital(1). Ainda mais estranho é o fato de que ele se diz fã do G.I.Joe, mas assim que começou a trabalhar na franquia, esforçou-se no sentido de mudá-la radicalmente. E até onde eu sei, só desejamos alterar aquilo que nos incomoda, não aquilo que amamos.

Ele simplesmente ignorou os três grandes líderes (Hawk, Duke e Flint), para colocar a personagem Scarlett na liderança. As histórias perderam seu tom militar, e se tornaram mais infantis, onde os adversários são criaturas exóticas, como dinossauros e insetos gigantes. O G.I. Joe também deixou de ser americano para se tornar um grupo internacionalista, que "pensa e age globalmente", conforme as palavras da líder Scarlett (o que viola o clássico slogan “a real american hero”, estampado nas cartelas das action figures desde 1982). 




 
G.I.Joe clássico.                                                                                                        G.I.Joe SJW


Os fãs se irritaram e conflitos no Twitter e em outros meios de comunicação começaram. Aparentemente se divertindo com a situação, Sitterson resolveu transformar o soldado Salvo (um personagem de design brutal e agressivo) em uma mulher negra e obesa. Afinal, o importante é ser inclusivo. Os fãs odiaram, e os conflitos continuaram. A essa altura, Sitterson - utilizando-se de técnicas comuns aos Social Justice Warriors(2), em cujo grupo ele se encaixa - começou a acusar os fãs da franquia de serem "intolerantes", “contrários à diversidade e às minorias” etc. Neste contexto, vale mencionar que personagens femininas, como Cover Girl, Lady Jaye e a própria Scarlett, estão bastante masculinizadas nos traços estilo mangá de Giannis Milonogiannis. É estranho como pessoas que advogam com tanta paixão pela causa da "inclusão", escolhem converter todas as mulheres em seres andróginos, como se quisessem expulsar toda manifestação de feminilidade de seus trabalhos.

 Salvo clássico

Salvo (ou Salva, ou Salvx... eu sei lá) SJW

Outro episódio lamentável ocorreu quando uma edição fora publicada com uma capa explicitamente homossexual para comemorar o orgulho gay. Mas o pior não era o estilo, mas a qualidade artística do trabalho, que é realmente muito ruim. Além disso, sejamos honestos: o G.I. Joe não é gay. Representá-los como gays seria tão insensato e ofensivo aos fãs quanto representar Apollo e Midnighter, heróis homossexuais do Stormwatch, como heterossexuais. Trata-se de uma violação do conceito dos personagens. Por este motivo tão simples, os fãs do G.I.Joe protestaram, e Sitterson acusou-os de "homofóbicos" (é claaaaro!).

O fuzileiro naval Gung-Ho e os motociclistas Dreadnoks representados pelo desenhista Ed Luce, na infame "capa gay" do G.I. Joe. Os fãs odiaram. Para Sitterson, eles estão sendo preconceituosos.

A lógica de Sitterson é bem simples, e conhecida por conservadores há muito tempo (pois são as maiores vítimas dela): se você não concorda comigo, vou atribuir a você uma série de calúnias, e encaixá-lo em estereótipos odiosos. Devemos admitir: é uma estratégia e tanto, principalmente em um mundo dominado pela preguiça intelectual, onde a maioria das pessoas preferem apenas ler nomes a compreender argumentos. Em um mundo assim, meros caluniadores levam a vantagem.

A tensão já era grande. E Sitterson decidiu piorar tudo. No dia 11/09, aniversário da tragédia das torres gêmeas, Sitterson ofendeu os sentimentos patrióticos de seu público, ao escrever no seu Twitter que se tratava de uma "Self-centered National Tragedy remembrance from people who were not anywhere near New York City day" (isto é, ele associou o pesar coletivo sobre a tragédia com sentimentos egoístas, além de insinuar a falta de sentido na atitude de pessoas que lamentam o fato sem terem estado presentes em NY no dia do ataque).

Foi a gota d´água para os patrióticos fãs do G.I.Joe. Sites de expressão sobre a franquia como Yojoe.com e o blog Generalsjoes escreveram notas de que não mais iriam comentar as publicações da editora IDW, enquanto Sitterson trabalhasse para ela. Muitos outros fãs passaram a se manifestar incansavelmente nas redes sociais contra Sitterson, o que está ocorrendo até agora. Por outro lado, Sitterson conseguiu apoio do site Bleeding Cool e Mary Sue. Neste último, principalmente, os fãs foram veementemente atacados, taxados de “extremistas de direita”, e de todos os outros lugares-comuns que acompanham este nome. A própria franquia como um todo fora atacada, sob a acusação de “ser um gibi militar que glorifica o exato oposto da inclusão”, e por isso Sitterson estaria apenas tentando aumentar o nível de representatividade nas histórias. Difícil não perceber o quanto o autor do texto desconhece o universo do G.I.Joe, que sempre contou com personagens femininas (sempre muito fortes, como a própria Scarlett e Lady Jay) e de outras etnias (temos personagens negros como Roadblock, Stalker e Doc; asiáticos como Quick Kick e Storm Shadow; nativos-americanos, como Spirit e Airbourne), e até portadores de deficiências físicas (como o mudo Snake Eyes).

Mas agora vamos ao segundo ponto de toda esta história, e que me irritou profundamente: a atitude ingênua de alguns fãs que, infelizmente, parecem expressar a tendência de um número muito maior.

Conversei com alguns deles pelo Facebook, e a maioria se incomodou mortalmente quando eu decidi fazer críticas aos posicionamentos políticos de Sitterson. Um fã alegou que o debate não pode ser político, e com isso ganhou apoio de outras pessoas. Meu Deus. Infelizmente, ninguém avisou a estas crianças grandes e que falam muito bonitinho, que Sitterson e seus amigos tornaram o debate político, e sem pedir o consentimento de ninguém. Isto é: Sitterson veio armado com facas para o combate, mas as crianças com quem falei insistem em enfrentá-lo com mãos vazias. Afinal, atitudes como essa geram belas palavrinhas de ordem no facebook. 

E qual a raiz desta hostilidade às denúncias ao modus operandi político de Sitterson? Pelo que pude perceber, em parte alguns se identificam com esse posicionamento (embora não tenham gostado do progressivismo do autor aplicado a seus heróis)(3) em parte, alguns realmente não querem misturar políticas a este assunto.

Eu consigo entender este último posicionamento, mas ele é ingênuo. Lutar contra um adversário explicitamente político, que se utiliza de uma desonrosa retórica política (embora tremendamente eficiente), sem denunciar estes mesmos artifícios, alegando apenas que ele "escreve mal" ou que "não respeita a essência dos personagens", é como enfrentar de mãos vazias um adversário fortemente armado, conforme já dito acima. Além disso, ignorar o elemento político no modo de pensar do adversário, quando este elemento político é fortemente constitutivo em sua personalidade e motivações, equivale a não compreendê-lo e, em geral, não combatê-lo de modo algum.

A ofensa aos sentimentos ligados ao 11/09 foi apenas a ponta do iceberg, uma simples consequência do anti-americanismo doentio de Sitterson. São as raízes ideológicas deste anti-americanismo que devem ser identificadas e denunciadas. Mas isso, estes fãs estranhamente educadinhos demais – apesar de estarem sendo massacrados publicamente pela retórica de Sitterson, do Bleeding Cool, Mary Sue e sabe-se Deus por quem mais – não ousam fazer, porque criticar publicamente as raízes ideológicas dos SJW’s exige colhões.

A boa medicina consiste em combater os sintomas de uma doença ao mesmo tempo em que se identifica e se combate sua causa. O curandeirismo primitivo, por outro lado, combate apenas os sintomas, sem se preocupar com a causa da doença. Estes fãs polidos do G.I.Joe são exemplos de curandeiros supersticiosos do debate público. E como curandeiros supersticiosos, estão destinados à prática de uma medicina fracassada.

É importante lembrar que muitos fãs do G.I.Joe perceberam isso, e tiveram a coragem de dizer publicamente que o simples fato de um socialista escrever histórias do G.I.Joe já é uma total incoerência. Opiniões assim podem ser lidas do fórum Hisstank, composto exclusivamente de fãs da franquia.

Há pessoas exigindo que Sitterson seja demitido. Exemplo disso é o bom canal do youtube Diversity & Comics, que realiza um trabalho notável e bastante importante quando se trata de denunciar as maquinações de autores ideologicamente orientados que buscam, mesmo através dos métodos mais sub-reptícios, converter quadrinhos dos heróis favoritos das pessoas em panfletagens políticas de baixíssimo nível. Já falei o que penso sobre autores serem demitidos por motivos semelhantes anos atrás neste mesmo blog, quando inúmeros leitores homossexuais organizaram um boicote e exigiram da DC Comics a demissão do escritor Orson Scott Card, quando este fora anunciado como novo roteirista do Superman. Motivo? Card era contra o casamento gay(4)

Interessante notar que, na oportunidade, os gays e seus simpatizantes conseguiram o que queriam. Nada escrito por Card sob o título do Superman fora publicado. Os fãs do G.I.Joe, por outro lado, estão reclamando desde o início do ano até o presente momento, sem alcançar resultados. Left wins; Right loses. Ah, peço perdão à ala polida de leitores do G.I.Joe por ofender seu puritanismo apolítico ao associá-los à “direita”. Foi um lapso.

Não concordei com a ideia de demitir Card, e não concordo com a ideia de demitir Sitterson. Muitos podem contra-argumentar dizendo que são casos diferentes, uma vez que Card sequer teve a chance de escrever o Superman (isto é, Card fora chutado do título do Superman por preconceito, no sentido mais estrito do termo, uma vez que seus opositores já o odiavam antes mesmo de conhecer seu trabalho como escritor), enquanto que os fãs do G.I.Joe estão fartos de Sitterson há tempos, em razão das reformulações absurdas e constrangedoras que ele de fato incorporou aos seus heróis favoritos. Este argumento faz todo o sentido. Mas creio que em um mundo livre quem deve decidir quem será demitido não é o puritanismo de fãs, mas o mercado. Que Sitterson fique no gibi do G.I.Joe, enquanto estiver vendendo. Se estão incomodados, basta não comprar as revistas. Isso forçará a demissão de um mal escritor, por meio da própria lei do mercado. Por outro lado, se o título sob o comando de Sitterson continuar vendendo, isso significa que muitos leitores do G.I.Joe estão gostando dos rumos impostos por Sitterson, e portanto, eles se merecem. O mercado é justo. Mas exigirmos histericamente que alguém perca o emprego apenas porque não gostamos das opiniões desta pessoa, é simplesmente patético.

Além disso, é infrutífero atacar Sitterson. Ele é apenas mais um indivíduo escrevendo tolices no twitter e destruindo o entretenimento de leitores de quadrinhos. Ele é um mero efeito, um joguete em uma longa cadeia causal. Deve-se denunciar e combater a causa primeira disso tudo. O problema está na base ideológica que inspira as palavras e ações destes indivíduos. Portanto, é esta base ideológica que deve ser denunciada, exposta, e atacada. Apenas pressionar uma empresa para que ela demita um funcionário é, além de moralmente baixo, totalmente inútil. 





(1) Como sinto falta dos socialistas mais ortodoxos. Ao menos eles se dedicavam a problemas realmente relevantes e concretos, como a inegável pobreza material existente neste mundo tragicamente desigual. A solução apontada se mostrou débil, mas o simples fato de se ocuparem com um problema social relevante já passa como uma grande virtude para os padrões de inteligência atuais.
(2) Sobre o significado dos SJW’s, ver meu texto publicado neste blog, em 5 de maio deste ano.
(3) Estes ficaram irritados comigo quando eu disse que ao menos podíamos extrair alguma lição de toda essa situação: como os SJW’s atuam criminosamente em relação aos conservadores, ao associá-los com ALT-Right, nazistas, etc. Fui chamado até mesmo de ignorante, apesar de que foram meus interlocutores que demonstraram uma ignorância atroz sobre o significado de conservadorismo, associando-o à alt-right e aos nazistas, e assim concordando com a retórica da qual agora eles próprios são as vítimas. E aqui tenho que fazer a mea culpa: este autor não imaginou que houvessem esquerdistas (inclusive radicais) entre os admiradores do G.I.Joe. Reconheço que foi ingenuidade minha realizar juízos apriorísticos a partir de raciocínios coerentes. Pois coerência é uma coisa que decididamente falta a estes tempos.
(4) Muitos sites e blogueiros de esquerda estão defendendo Sitterson, dizendo que é absurdo exigir a demissão de alguém por motivos ideológicos. Gostaria de saber onde estava a maioria destes heroicos defensores da liberdade de expressão, quando a pessoa atacada era Orson Scott Card. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Afinal, o que é o Justiceiro de Garth Ennis: homenagem ou calúnia à ideia de justiça retributiva?

Entre os fãs do vigilante Frank Castle parece haver um forte consenso: Garth Ennis é um dos melhores escritores que já passaram pelos títulos do Justiceiro. De fato, qualquer fã do personagem tem um duplo débito em relação ao escritor irlandês. Em primeiro lugar, Ennis foi um dos grandes responsáveis por resgatar Frank Castle do ostracismo, após o personagem sofrer intensos maus tratos por parte da Marvel no final dos anos 90 (vide a saga em que o Justiceiro se torna parte da máfia, ou quando muda de etnia após passar por cirurgias, ou quando começa a trabalhar para anjos celestiais após morrer). Em segundo lugar, não se pode negar o óbvio: Ennis sabe contar boas histórias, e isso foi essencial para o processo de recuperação do prestígio do Justiceiro.

Após reconhecer os méritos de Ennis, agora passo a uma análise mais crítica de seu trabalho no Justiceiro. O que devo adiantar de imediato é que, a meu ver, Ennis sustenta uma postura bastante ambígua em relação a Frank Castle. Em certas histórias, Ennis parece respeitar o personagem e seu simbolismo moral; parece de fato se comprometer com a defesa da ideia de justiça distributiva. Bastante emblemático neste sentido é a história “The devil by the horns”, publicada em The Punisher #3 (vol.3 – selo Marvel Knights), de junho de 20001, na qual o Justiceiro confronta novamente o Demolidor. Creio que nenhum outro escritor anterior que narrou um embate entre Justiceiro e Demolidor (como Frank Miller, Ann Nocenti e Mike Baron) tenha feito uma defesa tão apaixonada e convincente da ética de Frank Castle diante das críticas de Matt Murdock.

 The Punisher #3 (Vol.3). Capa de Tim Bradstreet.





Nesta história, mais uma vez Demolidor ataca o Justiceiro sob o argumento de que matar criminosos é errado, e que portanto Frank “possui uma escolha”, e que obviamente, a escolha correta seria não matá-los. Mas Frank estava preparado. Ele consegue atordoar o Demolidor, que desperta momentos depois, totalmente preso e imobilizado em correntes, com um revólver carregado amarrado em suas mãos, e apontado para o Justiceiro. Castle queria colocá-lo diante de um dilema moral: ele tinha a chance de impedir que o Justiceiro fizesse sua próxima vítima, mas a única maneira de fazê-lo era matando-o, com um tiro em sua cabeça. Isto é, caso o Demolidor quisesse evitar que Castle matasse mais um criminoso, ele teria que apertar o gatilho antes de Castle. De qualquer forma, ele teria uma morte em sua consciência.



O "debate" entre Justiceiro e Demolidor. Arte de Steve Dillon.

A questão é: é melhor ter na consciência a morte do agressor, ou a morte da vítima? Quando o Demolidor pergunta “que tipo de escolha é essa?”, Castle responde: “o tipo de escolha que faço sempre que aperto o gatilho”. A mensagem é clara. O Justiceiro faz o que faz porque no mundo em que ele vive é preciso decidir: ou se mata o agressor, ou se permite que a vítima pereça nas mãos do agressor cuja vida fora poupada. De qualquer modo, alguém perderá sua vida, o criminoso ou o inocente, e a responsabilidade está nas mãos daquele que tem o poder de decidir2. Castle decidiu que neste terrível dilema, deve-se preferir pela preservação da vida do inocente, porque ele não suportaria ter em sua consciência a morte do inocente. Logo, o culpado deve morrer. Portanto, o Justiceiro vive em função de um código moral, segundo o qual o culpado deve ser punido e o inocente deve ser protegido. Sua conduta é resultado de dois motivos que agem entre si reciprocamente: o desejo de punição do culpado e o desejo de preservação da vida do inocente. Portanto, pode-se dizer que a rigidez de seu comportamento em relação aos criminosos encontra em sua empatia pela vida dos inocentes um correlato fundamental.

Apesar disso, em muitas situações a narrativa e argumentação de Ennis pareceu funcionar como uma intensa calúnia à causa do Justiceiro. Isso fica particularmente evidente na história "Born", que narra o período em que Castle lutou no Vietnã. Ennis deixa claro que Castle é guiado em primeiro lugar por um forte desejo de matança. A justificativa ética de suas ações aparece apenas como um aspecto residual e secundário em sua conduta. Demonstração cabal disso é o momento em que Castle provoca, ainda que de maneira indireta (mas totalmente deliberada), a morte de um general, apenas porque este estava prestes a mandá-lo de volta pra casa. Mas Frank Castle não queria ser afastado do combate no Vietnã, porque para ele o ato de matar é um fim em si mesmo.
Capa de "Born". Arte de Wieslaw Walkushi


Quão longe está este Frank Castle de sua versão clássica escrita por gente como Gerry Conway, Steven Grant, Mike Baron e Carl Pots! Quão longe isto está da sua origem contada por Dan Abnett a Andy Lenning, publicada em Punisher: year one3, e que para mim é a origem definitiva do famoso vigilante da Marvel Comics. Na origem contada por Lenning e Abnett, Frank Castle torna explícita suas motivações: compensar a inadequação da lei positiva quando esta não pune o culpado, com a finalidade de alcançar a punição (ou justiça) natural. “Eu não falo de vingança”, diz Castle. “Revanchismo não é um motivo válido (...). Estou falando de justiça”4.

Capa de The Punisher Year One. Arte de Dale Eaglesham e Vince Evans.

Mas em "Born", o Justiceiro de Ennis não é um Punisher, uma vez que seu objetivo principal não é punir. Não; a punição é indissociável de um comprometimento ético com a justiça, conforme fica claro a partir do texto magistral de “year one”. "Punir" é o mesmo que impor a justiça. É o justo castigo. Mas em "Born", Frank parece apenas querer matar... pelo simples fato de que gosta de matar. E para tanto vale tudo, até mesmo eliminar um general. Quantos heróis e policiais o Justiceiro clássico não teria matado, se fosse prevalecer a interpretação de Ennis sobre o personagem. 

Portanto, digo que a interpretação de Garth Ennis da personalidade de Castle está errada, pois não explica o fato de que o Justiceiro jamais agiu em outras histórias sob aquelas mesmas motivações descritas em "Born". A finalidade literária de se contar uma origem é a de explicar o porquê de o personagem em questão agir como ele age agora; de explicar ao leitor porque ele se tornou aquilo que agora ele é. Mas se cotejarmos o capitão Castle escrito por Ennis com o Justiceiro existente desde 1974 (ano de sua criação e publicação), a impressão que se tem é a de que se trata de outro personagem. Portanto, houve uma falha clara da parte de Ennis5. O escritor não tentou ajudar-nos a entender o Justiceiro, mas tentou recriá-lo. E nesta reformulação a mensagem parece ser esta: é preciso ser um psicopata para aderir a um código moral fundamentado na ideia de justiça retributiva; é preciso ser um psicopata sádico para pensar que aquele que mata, merece morrer afinal. Portanto, com “Born” – e com outras histórias escritas por Ennis, em que Frank parece mais uma máquina desalmada programada para matar – exprime-se uma verdadeira calúnia à ideia de justiça retributiva e, consequentemente, àquele elemento conceitual que constitui o núcleo moral de Frank Castle.






1 no Brasil, fora publicada pela Panini no encadernado "Bem-vindo de volta, Frank", em 2008.
2 O que se pode discutir aqui é se a perspectiva de Castle sobre a sociedade na qual ele vive é, de fato, a perspectiva mais correta. Na visão do Justiceiro, a violência urbana é tamanha que tal situação se assemelha a uma guerra, e em uma guerra o adversário deve ser derrotado, mesmo que pelos meios mais brutais. E é por isso que, em sua fase clássica, o Justiceiro sempre registrava suas ações em seu famoso “diário de guerra”. Obviamente, na perspectiva do Demolidor, ainda vivemos em uma sociedade predominantemente ordeira, ainda que imperfeita. 
3 publicada no Brasil pela editora Abril Jovem em 1996 como uma mini-série quinzenal, sob o título de “Justiceiro: Ano Um”.
4 Este discurso fora reproduzido no bom filme The Punisher, de 2003, estrelado por Thomas Jane.
5 Na edição encadernada de Born publicada em 2016, é possível visualizar nas últimas páginas, como um elemento extra, o texto originalmente proposto por Ennis. Nele, Ennis é explícito ao analisar as motivações de Frank: “Frank simplesmente gosta disso (de matar), e a morte posterior de sua família é um pouco mais que uma desculpa”. Ele também deixa claro que a “voz” misteriosa com a qual Castle dialoga no Vietnã – que parece ser simplesmente a parte obscura e cruel de sua consciência – é na verdade o Grim Reaper (isto é, o Ceifador). E talvez por perceber que isso é um tanto ridículo, Ennis escreve que “we’ll play this subtly, no outright statements”. Essa atmosfera mística, que se resolve em uma metafísica grosseira e pueril, não coincide em nada com o conceito do Justiceiro. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Captain America on Charlottesville

What would Captain America say about Alt-Right's and Antifa's conflict in Charlottesville? We can find the answer in Captain America Vol.1 #275 (by J.J DeMatteis and Mike Zeck):






"Two of a kind!"

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Jornada nas Estrelas, a série clássica: o aspecto antiutópico da utopia futurista

A tripulação clássica da nave Enterprise, na excepcional arte de Joe Jusko

Na cultura popular, a série Jornada nas Estrelas (ou Star Trek) tornou-se um dos símbolos maiores da fantasia utópica sobre um futuro cheio de grandes realizações graças aos avanços da ciência. Apesar de esta visível fé no progresso científico e civilizacional constituir um dos elementos fundamentais do mito criado por Gene Roddenberry, é importante notar que, em muitos episódios da série clássica, há um claro discurso de reconhecimento e até de defesa dos elementos característicos e imutáveis da natureza humana.

Portanto, creio que um dos grandes temas da fase clássica seja a própria noção de natureza humana, a qual, conforme ensinam-nos alguns episódios, não deve ser sacrificada em prol de nenhum ideal de sociedade perfeita, de nenhuma política temporal infantilmente convertida em verdade salvífica. E esta exigência de preservação da natureza do homem não se deve a algum tipo de humanismo ingênuo que enxerga na humanidade um tipo de entidade perfeita. Ao contrário: reconhece-se a imperfeição inerente ao homem, cuja essência é eterna fonte de conflitos, mas também de liberdade e realizações.

Na verdade, o que se depreende é que, no que diz respeito ao tema da natureza humana, o discurso antiutópico da Série Clássica alterna entre a transmissão de uma mensagem que opera no âmbito deontológico, no sentido de que não devemos tentar mudar a natureza humana (por exemplo, em "a hora rubra"), e uma lição articulada a partir de uma percepção ontológica: a natureza humana é imutável, ou ao menos impassível de ser transformada mediante intervenções externas (um forte exemplo disso é o episódio "semente espacial").

Sim, Jornada nas Estrelas é um exemplo de fé no progresso da ciência; mas este progresso encontra seu limite na natureza do homem. Passo agora a expor e examinar criticamente o conteúdo de alguns episódios que demonstram um caráter profundamente antiutópico em meio à utopia idealizada por Gene Roddenberry. 



"A hora rubra" ("The return of the archons")

Episódio escrito por Gene Roddenberry

Capitão Kirk e alguns membros da tribulação da Enterprise chegam ao planeta Beta III, para investigar o desaparecimento, ocorrido há cem anos, da nave Archon, que orbitava aquele mesmo planeta. Em Beta III, Kirk se depara com pessoas tão tranquilas quanto apáticas, uma condição descrita por Spock como "satisfação vazia" ("vacant contentment").

É revelado que os habitantes de Beta III sofrem o total controle mental de uma entidade chamada Landru, daí a absoluta uniformidade do comportamento social em Beta III. Aqueles que se recusam a se comportar de forma idêntica devem ser "absorvidos", para que façam parte do "corpo", isto é, do comportamento uniforme dos habitantes de Beta III. Portanto, a individualidade é condenada em Beta III.

Uma projeção de Landru, o arquiteto da sociedade perfeita

A uma certa altura da história, Landru - que na verdade é uma máquina – se revela para Kirk e seu grupo como o arquiteto de uma sociedade ideal, de "um mundo sem ódio, sem medo, sem conflito, sem guerra, sem doença, sem crime... sem nenhum dos antigos males". E a condição para isso é que "a individualidade seja integrada na unidade do bem". No fim, graças à sua engenhosidade, Kirk neutraliza Landru e liberta os habitantes de Beta III. Durante sua partida, o capitão da Enterprise se dá por satisfeito ao saber que os habitantes de Beta III já manifestavam seus primeiros conflitos sociais. A contradição social retornara. A utopia estava desfeita. A sociedade perfeita - mas computadorizada - cedera lugar à sociedade imperfeita - porém, humana.

Este episódio, que também pode ser interpretado como uma crítica ao fanatismo religioso, oferece uma perfeita denúncia de todas as construções utópicas. Como muito bem notou Eric Voegelin (2012, p. 298), as utopias se definem por um projeto político de eliminação de uma ou mais características essenciais à natureza humana. Landru eliminou o próprio senso de individualidade dos habitantes de Beta III. Sem individualidade, não havia mais diferenças de comportamento, ou de opinião. Sem essas diferenças, não havia mais conflito. E sem conflito, a paz absoluta prevalecia... entre máquinas. Landru não conseguia compreender que seu projeto de aperfeiçoamento da vida social humana só podia ser posto em prática às custas da própria humanidade daqueles que ele desejava proteger, o que é um total contra-senso.

Eis aí um recado para marxistas: na base das contradições sociais não está apenas a divisão de classes econômicas, mas a distinção entre indivíduos. Querem chegar à conclusão da história, à sociedade sem classes, a síntese final sem contradições ou tensões dialéticas? Não basta eliminar as diferenças de classe e de propriedade. O problema é muito mais profundo. Deve-se destruir a individualidade, a criatividade, a liberdade e, consequentemente, a alma do homem.

Esta última observação é corroborada pela teoria de Eric Voegelin acerca da grande doença do homem moderno: sua incapacidade de permanecer na "metaxy platônica", que por sua vez significa a "intermedialidade" entre pólos que, embora contraditórios entre si, no entanto expõem "elementos na imutável estrutura da existência humana" (McALLISTER, 2017, p. 178). Em suma, a metaxy consiste no reconhecimento das tensões entre elementos contraditórios mas que constituem limites inerentes à realidade. Daí porque a modernidade é definida, por McAllister (2017, p. 45) - baseando-se nas lições de Voegelin - como "revolta contra a realidade". O homem moderno não suporta as contradições da vida humana, e por isso não as apreende como elementos intrínsecos e, portanto, indissociáveis de sua existência. Em sua ânsia por eliminar as contradições, ele deixa de compreender que são justamente estas contradições que, afinal, constituem o tecido de sua realidade, de sua realidade propriamente humana.

Landru é, portanto, um típico ideólogo (como Marx) revoltado contra a realidade e, neste sentido, o personagem capta a mentalidade e angústia do homem moderno. O antigo Aristóteles, por exemplo, apreendia com naturalidade a natureza intermediária (e, por isso, tensional) do homem, localizada entre as bestas e os deuses (Política, cap. 1, §9). Mas o homem moderno, com suas ambições ideológicas, em lugar de se resignar diante desta tensão que é limite imposto pelo real, busca transcendê-la como se fosse mero obstáculo e converte a tensão existencial em mera contradição dialética destinada a ser solucionada mediante artifícios igualmente dialéticos.

Neste processo, o ideólogo moderno acredita que as tensões inerentes à existência humana podem ser revogadas em favor de seu projeto utópico, que é a realização de seu paraíso mundano, sem perceber que, com isso, impõe à humanidade a maior das contradições, pois nenhuma realidade pode ser paradisíaca e mundana ao mesmo tempo. Consequentemente, pode-se dizer que o ideólogo moderno, tal como o personagem Landru ou o filósofo Marx, cegado por seu desejo de sanar todas as contradições sociais, na verdade acaba por gerar a pior e mais grotesca de todas as contradições. 


"Este lado do paraíso" ("This side of paradise")

Episódio escrito por Nathan Butler e D.C. Fontana

Desta vez, capitão Kirk, senhor Spock, dr. McCoy e outros membros da Enterprise visitam o planeta Omicron Ceti III, onde vive uma colônia de agricultores. Entre os mesmos prevalece uma completa harmonia e paz. Mais uma vez, estamos diante de uma utopia. E mais uma vez, a condição necessária desta utopia é a eliminação de certos traços essenciais à natureza humana por meio de uma influência externa.

Em Omicron 3, há plantas que liberam uma poeira que, quando em contato com as pessoas, coloca-as em um estado de tranquilidade e relaxamento. O indivíduo perde seu senso de dever e seu desejo de superar desafios e passa a dedicar-se apenas a atividades prazerosas. Por este motivo, os colonos de Omicron 3 são verdadeiros epicuristas, para os quais a única finalidade existencial é a satisfação de prazeres simples, o que contrasta com a postura mais militar e estoica dos tripulantes da Enterprise.

Kirk e McCoy em Omicron Ceti III, um verdadeiro jardim de Epicuro

Ao longo do episódio, toda a tripulação entra em contato acidental com a poeira liberada pelas plantas. Até mesmo o frio e lógico vulcano Spock é contaminado, tornando-se com isso mais passional e totalmente insubordinado. O único a resistir aos efeitos dos esporos é o capitão James T. Kirk, graças ao seu profundo senso de dever e força de caráter. Depois de libertar Spock dos efeitos dos esporos, inicia-se um processo de libertação gradual de todos os demais membros da Enterprise, bem como dos colonos de Omicron 3. Ao final, enquanto a Enterprise se distanciava de Omicron 3, seguiu-se o diálogo:

McCoy: - É a segunda vez que o homem foi expulso do paraíso.
Kirk: - Não... desta vez saímos por conta própria. Talvez não tenhamos sido feitos para o paraíso. Talvez tenhamos sido feitos para abrir nosso caminho através da luta, batalhando a cada passo. Talvez não devamos dançar ao som de liras e flautas, mas marchar ao som de tambores.

A mensagem é clara: ao homem não é adequado o caminho fácil, ou a vida consagrada aos prazeres, ainda que modestos. A natureza humana exige certa dose de luta, conflito, dificuldades. Somente nestas circunstâncias o ser humano se presta a realizações e alcança o fortalecimento de seu espírito. Se há algum paraíso, este deve ser alcançado pela virtude, e não através do prazer.  



"O computador supremo" ("The ultimate computer")
Episódio escrito por D.C. Fontana e Lawrence N. Wolfe

O Dr. Daystrom cria o M-5, um super-computador destinado a substituir os seres humanos no processo de condução das naves estelares da Federação. A Enterprise é selecionada para testá-lo, e a princípio os resultados são excelentes: o M-5 toma todas as decisões de maneira muito mais rápida e acertada do que qualquer homem poderia fazê-lo. 

O capitão Kirk sente-se extremamente frustrado pela sensação de ter se tornado obsoleto, mas resigna-se diante daquilo que parece ser um exemplo incontestável de progresso para a humanidade. Apesar de sua resignação, não deixa de se mostrar eventualmente inconformado. Sua intuição é a de que há algo errado em substituir homens por máquinas.

McCoy, Spock e Kirk questionam o dr. Daystrom sobre o M-5

Logo de início, ele contesta o Dr. Daystrom e sua criação, sob o argumento de que "os homens precisam fazer certas coisas para que continuem a ser homens... o seu computador os privará disso". Isto é, se permitimos que as máquinas façam por nós o nosso serviço, colocamos em risco nossa própria humanidade. Afinal, o homem é um ser essencialmente ativo. O que resta de nós se outro sempre age ou decide por nós? Como podemos atualizar nossas potencialidades se nossas ações e iniciativas deixam de ser exigidas pela estrutura da realidade? 

Mais adiante, ele diz ao Dr. Daystrom que máquinas são incapazes de emitir juízos de valor, o que demonstraria a incompletude do M-5. Para a surpresa de Kirk, o Dr. Daystrom revela que o M-5 continha as memórias do próprio Daystrom, e por isso seria capaz de pensar como um ser humano. 

Apesar de tudo isso, os escritores do episódio parecem querer mostrar ao espectador que uma máquina é sempre uma máquina. Há um abismo intransponível entre o homem e a máquina, pois no final das contas mesmo a máquina que supostamente pensa como um ser humano não consegue fugir de erros de programação e de interpretação de fatos.

Podemos dizer que as máquinas jamais possuirão a phronesis aristotélica, isto é, aquela capacidade de julgamento prático, extraído da experiência, consistente na compreensão concreta de fatos com suas particularidades circunstanciais, e que portanto ultrapassa o simples equacionamento lógico entre dados contidos nas premissas para se chegar a conclusões (cf. o Livro VI, parágrafos V e VII de Ética a Nicômaco). 

Exemplo deste contraste entre a phronesis humana e o mero raciocínio computadorizado é-nos fornecido aos 12 minutos do episódio, quando Kirk escolhe a si mesmo e ao Dr. McCoy para integrarem uma equipe de aterrissagem no planeta Alpha Carinae II. No entanto, a recomendação do M-5 é que Kirk e McCoy sejam excluídos da equipe, por serem "inessencais" para a missão. Por faltar ao M-5 o saber prático-concreto, a phronesis aristotélica, seu critério de escolha (uma seleção lógica, de acordo com Spock) é meramente formal. Ele seleciona a equipe com base em currículos. O capitão Kirk, por ser um homem, avalia sobretudo a natureza, a disposição e o caráter de seus tripulantes, qualidades que só podem ser compreendidas mediante experiência direta e acumulada, acompanhada de uma certa dose de intuição e instinto. No currículo do Dr. McCoy, nada pode ser dito além do fato de que é um médico-cirurgião. Suas qualidades como homem só podem ser registradas pela phronesis de Kirk. 

Talvez por faltar-lhe a phronesis, o M-5 (que se apossa totalmente dos controles da Enterprise) começa a destruir indiscriminadamente outras naves da Frota Estelar, ao erroneamente julgá-las como inimigas. Kirk consegue desativar o M-5 (por meio de uma solução extremamente inteligente), mas Scotty ainda não tem recursos técnicos para lhe devolver o controle total sobre todas as funções da Enterprise, que ainda permanece incomunicável em relação às outras naves da Frota Estelar. 

A esta altura, o comodoro Wesley da nave Lexington já pedia permissão à Federação para liquidar a Enterprise, quando Kirk, em um ato desesperado, pede a Scotty para desligar todos os recursos de defesa da Enterprise. Diante de uma Enterprise aparentemente indefesa, Wesley decide suspender o ataque fatal. 

Quando Spock pergunta a Kirk sobre o motivo de sua estratégia (que de um ponto de vista puramente lógico parecia ser equivocada), Kirk responde que incluiu em sua equação a humanidade de Wesley: por ser um homem, Wesley provavelmente se sentiria incapaz de destruir um adversário que já não oferecesse mais ameaça. Com isso, o dr. McCoy conclui que a compaixão é uma qualidade essencialmente humana, incapaz de ser reproduzida por máquinas.

Portanto, percebe-se que o M-5, apesar dos esforços de seu criador, era radicalmente diferente dos seres humanos em dois aspectos cruciais: no aspecto cognitivo (por faltar-lhe a referida phronesis) e no aspecto moral (por faltar-lhe compaixão). 

Esta recusa à tentativa de fornecer perfeitas utopias condicionadas por inteligências artificiais, bem como a irredutibilidade do homem à máquina, são temas recorrentes da fase original de Star Trek, e que atestam a sabedoria contida na Série Clássica. Porém, infelizmente essas mensagens parecem ter se perdido em versões posteriores de Jornada nas Estrelas. Assim, por exemplo, em Star Trek: a nova geração, no episódio "Datalore", o capitão Jean-Luc Picard diz que a única diferença entre Data (que é um androide) e os outros tripulantes humanos da nave, é que os humanos são "uma variedade de máquinas, de natureza eletroquímica". Lamentável.


“Semente do espaço” (“space seed”)

Episódio escrito por Gene L. Coon e Carey Willber

Geralmente apontado como um dos melhores momentos de Jornada nas Estrelas, o episódio “space seed” (“semente do espaço”) também destaca o aspecto antiutópico da série clássica relativamente aos devaneios de cientistas que sonham com o aperfeiçoamento da espécie humana. 

Nesta história, Kirk e a Enterprise encontram à deriva do espaço uma antiga espaçonave (chamada de SS Botany Bay) cujos tripulantes estão em estado de animação suspensa em câmaras criogênicas. Um deles é retirado da câmara de animação suspensa, e transportado para a Enterprise. O que até esse momento não se sabia, é que este homem recém despertado era um dos últimos remanescentes de um notável evento ocorrido durante os anos 90 do século XX: as Guerras Eugênicas. Nesse período, uma nova raça de “super-homens” havia sido criada por cientistas. Mais inteligentes e mais fortes do que os seres humanos comuns, esses super-homens julgaram que poderiam melhorar o mundo através da unificação do mesmo por meio da imposição de uma ditadura administrada por eles próprios. O maior e mais perigoso destes ditadores foi Khan Noonien Singh. Ao ser derrotado no final das Guerras Eugênicas, Khan empreendeu fuga junto de seus asseclas mais próximos em uma nave espacial, precisamente a nave agora encontrada pela tripulação da Enterprise, sendo o tripulante recém despertado o próprio Khan. Enquanto Kirk e Spock tentam descobrir sua identidade, Khan já empreende um plano para dominar a Enterprise, e por muito pouco não alcança êxito. 

Khan Noonien Singh, brilhantemente interpretado por Ricardo Montalbán


Apesar de sofrer mudanças em aspectos marginais e meramente instrumentais (inteligência e força), em sua essência, isto é, em sua constituição volitiva ou caráter, Khan permaneceu bastante comum: vaidoso, egoísta e orgulhoso, o icônico vilão não transcendeu em nada aquilo que o filósofo Nietzsche chamou de “vontade de poder”. Suas motivações permaneceram ordinárias. Ele apenas dispunha de melhores meios para alcançar seus fins: estes últimos, entretanto, ainda eram idênticos àqueles cultivados mesmo entre os mais medíocres dos homens. Khan quer dominar... mas quem não deseja exercer sua quota de domínio? Justamente por Khan permanecer demasiado humano em suas motivações e em seu caráter, Spock pôde aplicar ao seu comportamento aquela fórmula extraída a partir da observação sobre a natureza humana: “habilidade superior gera uma ambição superior“. Como naquela lenda do “anel de Giges” que nos é contada por Platão (República, II, p. 359c), Khan é apenas um camponês que encontrou um objeto que lhe confere poder, e que por isso decide tornar-se rei através do assassinato. A diferença reside apenas no fato de que, em lugar de usar um objeto extrínseco como o anel da invisibilidade, Khan utiliza de seus atributos intrínsecos, sua própria força e inteligência cientificamente aumentadas, para satisfazer sua vontade de poder. As mudanças operam apenas no nível dos acidentes; a substância permanece a mesma. Por isso, aquilo que interpreto como o aspecto antiutópico da Série Clássica – a tese da imutabilidade da essência humana – pode ser resumido nestas palavras proferidas por Khan em seu diálogo com Kirk:

 Estou surpreso com quão pouco aperfeiçoamento tem havido na evolução humana. Sim, houve algum avanço técnico... mas quão pouco mudou o homem em si”. 

Sábias palavras. O único erro de Khan foi não ter se dado conta de que sua sagaz observação aplicava-se a ele próprio: iludido por seus privilégios instrumentais – força e inteligência – Khan não percebeu que sua essência – sua vontade – restou intocada mesmo pelas mais ousadas intervenções da engenharia genética. 

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de castro Caeiro. São Paulo: atlas, 2009.

_______. Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

McALLISTER, Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. Tradução de Túlio Borges de Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2017.

PLATO. Republic. Tradução de G.M.A. Grube. Ed. de John M. Cooper. Cambridge/Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1997.

VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: helenismo, Roma e cristianismo primitivo. Volume I. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012.