Entre os fãs do vigilante Frank Castle parece haver um forte
consenso: Garth Ennis é um dos melhores escritores que já passaram pelos
títulos do Justiceiro. De fato, qualquer fã do personagem tem um duplo débito
em relação ao escritor irlandês. Em primeiro lugar, Ennis foi um dos grandes
responsáveis por resgatar Frank Castle do ostracismo, após o personagem sofrer
intensos maus tratos por parte da Marvel no final dos anos 90 (vide a saga em
que o Justiceiro se torna parte da máfia, ou quando muda de etnia após passar
por cirurgias, ou quando começa a trabalhar para anjos celestiais após morrer).
Em segundo lugar, não se pode negar o óbvio: Ennis sabe contar boas histórias,
e isso foi essencial para o processo de recuperação do prestígio do Justiceiro.
Após reconhecer os méritos de Ennis, agora passo a uma análise mais crítica de
seu trabalho no Justiceiro. O que devo adiantar de imediato é que, a meu ver,
Ennis sustenta uma postura bastante ambígua em relação a Frank Castle. Em
certas histórias, Ennis parece respeitar o personagem e seu simbolismo moral;
parece de fato se comprometer com a defesa da ideia de justiça distributiva.
Bastante emblemático neste sentido é a história “The devil by the horns”,
publicada em The Punisher #3 (vol.3 – selo Marvel Knights), de junho de 20001, na qual o Justiceiro confronta
novamente o Demolidor. Creio que nenhum outro escritor anterior que narrou um
embate entre Justiceiro e Demolidor (como Frank Miller, Ann Nocenti e Mike
Baron) tenha feito uma defesa tão apaixonada e convincente da ética de Frank Castle
diante das críticas de Matt Murdock.
The Punisher #3 (Vol.3). Capa de Tim Bradstreet.
Nesta história, mais uma vez Demolidor ataca o Justiceiro
sob o argumento de que matar criminosos é errado, e que portanto Frank “possui
uma escolha”, e que obviamente, a escolha correta seria não matá-los. Mas Frank
estava preparado. Ele consegue atordoar o Demolidor, que desperta momentos
depois, totalmente preso e imobilizado em correntes, com um revólver carregado amarrado
em suas mãos, e apontado para o Justiceiro. Castle queria colocá-lo diante de
um dilema moral: ele tinha a chance de impedir que o Justiceiro fizesse sua
próxima vítima, mas a única maneira de fazê-lo era matando-o, com um tiro em
sua cabeça. Isto é, caso o Demolidor quisesse evitar que Castle matasse mais um
criminoso, ele teria que apertar o gatilho antes de Castle. De qualquer forma,
ele teria uma morte em sua consciência.
O "debate" entre Justiceiro e Demolidor. Arte de Steve Dillon.
A questão é: é melhor ter na consciência a morte do
agressor, ou a morte da vítima? Quando o Demolidor pergunta “que tipo de
escolha é essa?”, Castle responde: “o tipo de escolha que faço sempre que
aperto o gatilho”. A mensagem é clara. O Justiceiro faz o que faz porque no
mundo em que ele vive é preciso decidir: ou se mata o agressor, ou se permite
que a vítima pereça nas mãos do agressor cuja vida fora poupada. De qualquer
modo, alguém perderá sua vida, o criminoso ou o inocente, e a responsabilidade
está nas mãos daquele que tem o poder de decidir2.
Castle decidiu que neste terrível dilema, deve-se preferir pela preservação da
vida do inocente, porque ele não suportaria ter em sua consciência a morte do
inocente. Logo, o culpado deve morrer. Portanto, o Justiceiro vive em função de
um código moral, segundo o qual o culpado deve ser punido e o inocente deve ser
protegido. Sua conduta é resultado de dois motivos que agem entre si
reciprocamente: o desejo de punição do culpado e o desejo de preservação da
vida do inocente. Portanto, pode-se dizer
que a rigidez de seu comportamento em relação aos criminosos encontra em sua
empatia pela vida dos inocentes um correlato fundamental.
Apesar disso, em muitas situações a narrativa e argumentação de Ennis pareceu
funcionar como uma intensa calúnia à causa do Justiceiro. Isso fica
particularmente evidente na história "Born", que narra o período em
que Castle lutou no Vietnã. Ennis deixa claro que Castle é guiado em primeiro
lugar por um forte desejo de matança. A justificativa ética de suas ações
aparece apenas como um aspecto residual e secundário em sua conduta.
Demonstração cabal disso é o momento em que Castle provoca, ainda que de
maneira indireta (mas totalmente deliberada), a morte de um general, apenas
porque este estava prestes a mandá-lo de volta pra casa. Mas Frank Castle não
queria ser afastado do combate no Vietnã, porque para ele o ato de matar é um fim
em si mesmo.
Capa de "Born". Arte de Wieslaw Walkushi
Quão longe está este Frank Castle de sua versão clássica
escrita por gente como Gerry Conway, Steven Grant, Mike Baron e Carl Pots! Quão
longe isto está da sua origem contada por Dan Abnett a Andy Lenning, publicada
em Punisher: year one3, e que
para mim é a origem definitiva do famoso vigilante da Marvel Comics. Na origem
contada por Lenning e Abnett, Frank Castle torna explícita suas motivações:
compensar a inadequação da lei positiva quando esta não pune o culpado, com a
finalidade de alcançar a punição (ou justiça) natural. “Eu não falo de
vingança”, diz Castle. “Revanchismo não é um motivo válido (...). Estou falando
de justiça”4.
Capa de The Punisher Year One. Arte de Dale Eaglesham e Vince Evans.
Mas em "Born", o Justiceiro de Ennis não é um Punisher, uma vez que seu objetivo
principal não é punir. Não; a punição é indissociável de um comprometimento
ético com a justiça, conforme fica claro a partir do texto magistral de “year
one”. "Punir" é o mesmo que impor a justiça. É o justo castigo. Mas
em "Born", Frank parece apenas querer matar... pelo simples fato de
que gosta de matar. E para tanto vale tudo, até mesmo eliminar um general.
Quantos heróis e policiais o Justiceiro clássico não teria matado, se fosse prevalecer
a interpretação de Ennis sobre o personagem.
Portanto, digo que a interpretação de Garth Ennis da personalidade de Castle
está errada, pois não explica o fato de que o Justiceiro jamais agiu em
outras histórias sob aquelas mesmas motivações descritas em "Born". A finalidade literária de se contar uma
origem é a de explicar o porquê de o personagem em questão agir como ele age
agora; de explicar ao leitor porque ele se
tornou aquilo que agora ele é.
Mas se cotejarmos o capitão Castle escrito por Ennis com o Justiceiro existente
desde 1974 (ano de sua criação e publicação), a impressão que se tem é a de que
se trata de outro personagem. Portanto, houve uma falha clara da parte de Ennis5. O escritor não tentou ajudar-nos a
entender o Justiceiro, mas tentou recriá-lo. E nesta reformulação a mensagem
parece ser esta: é preciso ser um
psicopata para aderir a um código moral fundamentado na ideia de justiça
retributiva; é preciso ser um psicopata sádico para pensar que aquele que mata,
merece morrer afinal. Portanto, com “Born” – e com outras histórias
escritas por Ennis, em que Frank parece mais uma máquina desalmada programada
para matar – exprime-se uma verdadeira calúnia à ideia de justiça retributiva
e, consequentemente, àquele elemento conceitual que constitui o núcleo moral de
Frank Castle.
1 no Brasil,
fora publicada pela Panini no encadernado "Bem-vindo de volta, Frank",
em 2008.
2 O que se
pode discutir aqui é se a perspectiva de Castle sobre a sociedade na qual ele
vive é, de fato, a perspectiva mais correta. Na visão do Justiceiro, a
violência urbana é tamanha que tal situação se assemelha a uma guerra, e em uma
guerra o adversário deve ser derrotado, mesmo que pelos meios mais brutais. E é
por isso que, em sua fase clássica, o Justiceiro sempre registrava suas ações
em seu famoso “diário de guerra”. Obviamente, na perspectiva do Demolidor,
ainda vivemos em uma sociedade predominantemente ordeira, ainda que imperfeita.
3 publicada
no Brasil pela editora Abril Jovem em 1996 como uma mini-série quinzenal, sob o
título de “Justiceiro: Ano Um”.
4 Este
discurso fora reproduzido no bom filme The
Punisher, de 2003, estrelado por Thomas Jane.
5 Na edição
encadernada de Born publicada em 2016, é possível visualizar nas últimas
páginas, como um elemento extra, o texto originalmente proposto por Ennis.
Nele, Ennis é explícito ao analisar as motivações de Frank: “Frank simplesmente
gosta disso (de matar), e a morte posterior de sua família é um pouco mais que
uma desculpa”. Ele também deixa claro que a “voz” misteriosa com a qual Castle
dialoga no Vietnã – que parece ser simplesmente a parte obscura e cruel de sua
consciência – é na verdade o Grim Reaper (isto é, o Ceifador). E talvez por
perceber que isso é um tanto ridículo, Ennis escreve que “we’ll play this
subtly, no outright statements”. Essa atmosfera mística, que se resolve em uma
metafísica grosseira e pueril, não coincide em nada com o conceito do
Justiceiro.
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