terça-feira, 29 de maio de 2018

Os X-Men e o eterno conflito social entre o talento e a mediocridade




É um lugar-comum assumir os X-Men como uma metáfora (ou, talvez mais precisamente, uma alegoria) sobre os conflitos raciais ocorridos nos EUA durante a década de 60. Assim, por exemplo, na biografia da Marvel Comics escrita por Sean Howie (“Marvel Comics: a história secreta”), o autor reforça esta opinião, e associa a personalidade de Charles Xavier à figura de Martin Luther King, enquanto que Magneto, o mutante radical, representaria o líder (também radical) Malcolm X. Para Howie, a mensagem de X-Men é clara: os conflitos raciais deveriam acabar, mas por meio de uma política moderada, conciliadora, tal como aquela proposta por Xavier (e Luther King). Acredito que não sejam poucos aqueles que dão continuidade a esta interpretação metafórica dos X-Men, e com isso associando-os, pela via analógica, a outras categorias de minorias sociais, sejam elas étnicas ou de gênero.

O elemento fascinante de uma metáfora é que, não sendo literal, ela oferece ao leitor latitude suficiente para que ele mesmo faça suas próprias interpretações acerca do significado da mensagem. Portanto, não há uma regra que possa definir, com total exatidão, qual seria a melhor interpretação de uma metáfora, ainda que, obviamente, a interpretação precise ser formulada dentro de certos limites, sob pena de soar completamente desvinculada da metáfora sobre a qual incide e assim perder totalmente sua analogia com a mesma. O vínculo entre a interpretação oferecida e a metáfora interpretada pressupõe um certo nível inequívoco de identidade entre ambas, um ponto de identidade que não pode ser negado por nenhum leitor minimamente sério e razoável. Sem dúvida, muitas histórias dos X-Men são uma metáfora sobre a condição social de uma minoria. Mas que tipo de minoria?

De minha parte, eu não consigo associar os X-Men a minorias raciais, étnicas, ou de gênero. Longe de representar conflitos baseados em diferenças de cor, de costumes, ou de gênero sexual, creio que os X-Men se referem às minorias constituídas por pessoas de talento. Afinal, basta nos perguntarmos: por que os mutantes são odiados pelas pessoas comuns? Porque possuem aparência diferente? Não. Porque possuem modos de vida e crenças diferentes? Não. Porque são de algum gênero sexual minoritário? Obviamente que não. Nas histórias dos X-Men, os mutantes são odiados porque eles possuem mais poder que as pessoas comuns; porque possuem talentos especiais dos quais as pessoas comuns são destituídas. O que faz os mutantes serem odiados é o fato de que seus talentos geram um misto de inveja, medo e ressentimento nas pessoas destituídas destes mesmos talentos. Portanto, o inimigo dos X-Men não é uma maioria de qualquer tipo, mas o agrupamento de pessoas medíocres.

Como diz José Ingenieros em seu conhecido livro “O homem medíocre”, o termo “medíocre” incorpora em seu radical a expressão “médio”. Portanto, “medíocre” é o homem médio, o indivíduo comum. Este indivíduo comum, porque ciente de sua impotência espiritual, de sua incapacidade de destacar-se em meio à multidão de ordinários, tende secretamente a invejar e sentir-se ameaçado por qualquer pessoa capaz de exibir algum talento especial. Esta inveja e este medo conduzem ao ódio, ao ressentimento, e ele não demorará a expressar publicamente esta frustração, sem, no entanto, deixar de justificá-la por meio de sofismas, aparentemente coerentes. Todo o marxismo é um sofisma deste tipo. No fim, o marxismo não passa de um discurso razoavelmente bem articulado em sua superfície, cuja finalidade é justificar o ódio de muitos por uma classe minoritária (os “burgueses”). O Nacional-Socialismo era a mesma coisa: uma tentativa de justificar o ódio de muitos por uma classe constituída por poucos (os judeus). Nos dois casos, o elemento comum consiste no fato de que as minorias odiadas detinham um tipo de poder que a maioria não detinha, embora desejasse obtê-lo para si.

A receptividade pública a estas doutrinas deve-se ao fato de que as mesmas justificam, dentro de um discurso aparentemente coerente, aquela pretensão majoritária, pretensão esta que, dissociada de qualquer justificação ideológica, soaria absurda e até criminosa à sã consciência. Mas um dos papéis da ideologia (1) é justamente o de corromper a sã consciência, conduzindo a mente do indivíduo a uma espécie de embriaguez intelectual que, tal como toda forma de embriaguez, é incômoda ao espírito sadio, mas altamente prazerosa e consoladora à alma torturada pela frustração.

E assim, se minha interpretação estiver correta, o jogo parece se inverter: os X-Men não representam uma metáfora da necessidade de inclusão – ao menos não de uma inclusão de certas minorias vitimistas e chorosas, que desejam desesperadamente compensar sua ausência de rigor e talento por meio de subsídios públicos ou privilégios de quaisquer tipos (2).

Em vez disso, os X-Men são uma denúncia: a denúncia da inveja e do ressentimento de que padecem as pessoas medíocres, as quais, ironicamente, compõem em grande parte as fileiras de certas minorias belicosas e histéricas, inconformadas com a desigualdade de distribuição de poderes e talentos inerente a este mundo, e que a todo momento clamam pela revogação dos méritos e pelo nivelamento artificial das vantagens naturais, inclusive tratando o termo “meritocracia” como sinônimo de injustiça social. O ódio ao mérito é ódio ao talento, e o talento é a manifestação mais nobre do poder.

"Subjugar o mérito através da pressão política" – eis a máxima aspiração dos medíocres que aparecem nas páginas dos quadrinhos dos X-Men, mas que, infelizmente, também se manifestam neste mundo real.



(1) Utilizo-me aqui do termo "ideologia" no sentido definido por Eric Voegelin: um sistema fechado de ideias salvíficas que tem por objetivo promover o contentamento terreno através da ação política. Um pressuposto da paixão ideológica é uma certa dose de afastamento da realidade, o que somente é possível por meio da loucura, ou por causa de uma revolta subjetiva em relação à mesma.

(2) Exemplo disso foi o caso do cancelamento, ocorrido em 2017 no Rio Grande do Sul, de uma exposição de arte que seria patrocinada pelo banco Santander. Os artistas da exposição e outras pessoas que com eles possuíam afinidade política trataram a situação como um caso de “censura” e perseguição a uma minoria injustiçada. Na verdade, a situação era bem mais simples. As pessoas apenas não conseguiram se conformar ao ver o dinheiro do Santander – que em circunstâncias normais deveria ser aplicado em serviços públicos através do recolhimento de tributos, mas que graças à Lei Rouanet, seria investido naquela exposição – financiando trabalhos tão grosseiros, estúpidos e ofensivos, que só poderiam ser considerados “artísticos” em um sentido muito pejorativo da palavra. Diante da péssima repercussão provocada pela publicação precoce das imagens destes trabalhos na internet, o Santander resolveu desistir de financiar a exposição. Ou seja, os artistas não foram censurados, uma vez que não foram proibidos de expor suas obras... eles apenas perderam o patrocínio do Santander.
Outro exemplo mais assustador desta tendência se manifesta no cenário educacional. Com base na lei 10.639/03, que dispõe sobre a obrigatoriedade de inclusão de conteúdos ligados à história e cultura afro-brasileira em todo o currículo escolar dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, muitos educadores defendem a inclusão (aqui, um eufemismo para imposição) do estudo das obras de pensadores, escritores e cientistas, baseando-se na etnia ou raça dos mesmos (eles precisam ser "afro-descendentes"), e não na qualidade de seus respectivos trabalhos. Isto é: o critério principal de escolha de, por exemplo, uma obra de filosofia, não deve ser o nível de correspondência entre a mesma e a realidade que ela pretende explicar, mas a cor da pele de seu autor. Eis um caso flagrante onde as futilidades políticas de um povo assumem a primazia sobre a busca sincera do conhecimento e da verdade.

sábado, 5 de maio de 2018

A alegoria do católico Demolidor


Uma verdade inconveniente: para resistir ao mal, é preciso cultivar um demônio interior.

Thanos de “Vingadores – Guerra Infinita”: um vilão realmente perigoso




Vamos começar justificando o título deste texto: por que afirmo que a versão cinematográfica de Thanos tornou-o realmente perigoso? Nos quadrinhos ele já não era o mais perigoso vilão da Marvel? Sim, ele era. Mas isso não fazia dele algo realmente perigoso. E por quê? Porque em minha forma de entender, um vilão realmente perigoso é aquele que consegue seduzir o leitor (ou telespectador), pois muito mais relevante do que surrar heróis fictícios em um mundo fictício, é a capacidade que uma ideia possui de subverter a imaginação moral das pessoas reais. E o Thanos cinematográfico é uma ideia com este poder. Agora vejamos os fundamentos desta afirmação.

Há uma pequena diferença entre o Thanos dos quadrinhos, originalmente concebido pelo grande Jim Starlin, e o Thanos que aparece no último filme dos Vingadores: o primeiro é um amante da Morte, e o desejo de conquistar sua amada constitui sua principal motivação, daí o seu desejo de aniquilar toda a vida; o segundo, ao contrário, é um ser dedicado à melhoria das condições de vida. Ele insiste que a vida se sustenta dentro de um equilíbrio com a morte, e que este equilíbrio, quando rompido, tem por consequência a decadência da vida, que é o sofrimento dos seres vivos. Quando há mais geração de vida do que morte, a consequência é a escassez dos meios materiais que sustentam a vida (se mais pessoas se alimentam, menos alimento sobra). Aparentemente, esta versão de Thanos é sensível o bastante para se revoltar com o sofrimento sentido pelos seres vivos, daí seu objetivo de restabelecer o equilíbrio entre vida e morte, por meio da aniquilação pura e simples dos seres vivos “excedentes”. Porém, Thanos insiste que esta aniquilação precisa ser aleatória – isto é, não deve haver privilegiados ou escolhidos - do contrário seria injusta. Isto é, além de sensível ao sofrimento causado pelas limitações materiais inerentes à existência, Thanos também pretende ser justo.

Portanto, se o Thanos de Starlin é um niilista, um cultor do Nada, amante da Morte, o Thanos de “Guerra Infinita” é um ideólogo, um ser apaixonado pela ideia de meliorismo das condições materiais de vida. E é este o ponto em que eu queria chegar. Um niilista pode parecer atraente a algumas pessoas, uma pequena minoria de amargurados em relação à vida. Mas o ideólogo é capaz de seduzir a grande maioria das pessoas de nosso tempo, pois a obsessão pelo meliorismo terreno, pela realização de paraísos terrestres, constitui a mais poderosa ilusão moderna.

O Thanos de Jim Starlin também se mostra eventualmente preocupado com o equilíbrio entre vida e morte, mas sua motivação mais fundamental é sempre a de agradar a Morte.

Para resistir aos encantos da versão cinematográfica de Thanos  (e de qualquer ideólogo da vida real), o telespectador precisa possuir uma alta envergadura espiritual, força moral suficiente para suportar a metaxy platônica ou a tensão cristã, e assim aceitar que o real e o ideal devem permanecer separados, como condição de sua complementaridade. Thanos é uma expressão da mentalidade moderna que deseja romper esta fronteira (entre o real e o ideal), fundindo ao real o nosso ideal.

Uma boa explicação destas noções o leitor poderá encontrar no excelente livro “Revolta contra a modernidade”, de Ted V. McAllister1. Nele, McAllister analisa as ideias (e críticas) de Leo Strauss e Eric Voegelin sobre a mentalidade moderna. Enquanto Strauss destaca o problema do relativismo moral e sua contribuição para o enfraquecimento do espírito do homem moderno, Voegelin concentra suas críticas no mal da ideologia. McAllister, parafraseando Voegelin, define ideologia como “um sistema intelectual fechado, no qual o conhecimento humano serve como meio para a realização do contentamento terreno” (MCALLISTER, 2017, p. 39). A ideologia depende da fé na possibilidade de realização do “contentamento terreno”. Esta fé, por sua vez, baseia-se naquilo que podemos chamar, a partir de Voegelin, de “imanentização dos símbolos de transcendência”.

Sistemas de crença tradicionais como o cristianismo nos oferecem símbolos de salvação, uma escatologia que dá sentido à história. Porém, esta salvação e essa escatologia permanecem transcendentes, no sentido de que não se confundem com uma vida ou realização terrenas. O paraíso cristão não é deste mundo, e nem a salvação cristã se realiza neste mundo. O ideólogo, que é nada mais do que o messias politizado (e, portanto, é um falso messias), apropria-se deste simbolismo transcendente e aplica-o ao mundo imanente, isto é, ao mundo material que vivenciamos por intermédio de nosso corpo e seus sentidos. Assim, o promessa cristã de salvação, que dentro da lógica cristã deve permanecer transcendente (referente a um outro mundo e a um outro modo de existência), degenera-se em promessa de salvação terrena, de contentamento terreno, que há de realiza-se neste mundo, neste mesmo modo de existência. A salvação da alma degenera-se em salvação do corpo.

Meu exemplar de "Revolta contra a modernidade", de McAllister.

Obviamente, animado pela promessa de contentamento terreno e por isso insensível à ideia de salvação transcendente, o homem moderno perde todos os escrúpulos em relação aos meios que conduzem àquele fim. Se só existe este mundo, então tudo vale para torná-lo melhor. Neste contexto, a aniquilação de alguns como condição sine qua non da promoção da alegria de muitos já não parece ser uma ideia absurda; ao contrário: torna-se moralmente justificável, e até necessária. E assim, surgem os Stalins, Mussolinis, Hitlers, Maos, e outros ideólogos mais sutis, mas que possuem em comum esta perturbadora aura de messianismo político comprovada pela devoção cega e acrítica de seus seguidores.

Como fábula de super-heróis, “Guerra Infinita” cumpre sua mais sublime missão: Thanos, o ideólogo, apesar de encantador, não deixa de ser mostrado como o vilão da história, contra quem os bons heróis devem lutar. A ideia de realização de paraísos terrestres não deve sobrepor-se à santidade da vida, e a realidade, mesmo que acompanhada de tantas dores e dificuldades, precisa ser incondicionalmente preservada diante da vaidade de revolucionários enlouquecidos.




1 MCALLISTER, Ted V. Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. São Paulo: É Realizações, 2017.