sábado, 19 de agosto de 2017

Afinal, o que é o Justiceiro de Garth Ennis: homenagem ou calúnia à ideia de justiça retributiva?

Entre os fãs do vigilante Frank Castle parece haver um forte consenso: Garth Ennis é um dos melhores escritores que já passaram pelos títulos do Justiceiro. De fato, qualquer fã do personagem tem um duplo débito em relação ao escritor irlandês. Em primeiro lugar, Ennis foi um dos grandes responsáveis por resgatar Frank Castle do ostracismo, após o personagem sofrer intensos maus tratos por parte da Marvel no final dos anos 90 (vide a saga em que o Justiceiro se torna parte da máfia, ou quando muda de etnia após passar por cirurgias, ou quando começa a trabalhar para anjos celestiais após morrer). Em segundo lugar, não se pode negar o óbvio: Ennis sabe contar boas histórias, e isso foi essencial para o processo de recuperação do prestígio do Justiceiro.

Após reconhecer os méritos de Ennis, agora passo a uma análise mais crítica de seu trabalho no Justiceiro. O que devo adiantar de imediato é que, a meu ver, Ennis sustenta uma postura bastante ambígua em relação a Frank Castle. Em certas histórias, Ennis parece respeitar o personagem e seu simbolismo moral; parece de fato se comprometer com a defesa da ideia de justiça distributiva. Bastante emblemático neste sentido é a história “The devil by the horns”, publicada em The Punisher #3 (vol.3 – selo Marvel Knights), de junho de 20001, na qual o Justiceiro confronta novamente o Demolidor. Creio que nenhum outro escritor anterior que narrou um embate entre Justiceiro e Demolidor (como Frank Miller, Ann Nocenti e Mike Baron) tenha feito uma defesa tão apaixonada e convincente da ética de Frank Castle diante das críticas de Matt Murdock.

 The Punisher #3 (Vol.3). Capa de Tim Bradstreet.





Nesta história, mais uma vez Demolidor ataca o Justiceiro sob o argumento de que matar criminosos é errado, e que portanto Frank “possui uma escolha”, e que obviamente, a escolha correta seria não matá-los. Mas Frank estava preparado. Ele consegue atordoar o Demolidor, que desperta momentos depois, totalmente preso e imobilizado em correntes, com um revólver carregado amarrado em suas mãos, e apontado para o Justiceiro. Castle queria colocá-lo diante de um dilema moral: ele tinha a chance de impedir que o Justiceiro fizesse sua próxima vítima, mas a única maneira de fazê-lo era matando-o, com um tiro em sua cabeça. Isto é, caso o Demolidor quisesse evitar que Castle matasse mais um criminoso, ele teria que apertar o gatilho antes de Castle. De qualquer forma, ele teria uma morte em sua consciência.



O "debate" entre Justiceiro e Demolidor. Arte de Steve Dillon.

A questão é: é melhor ter na consciência a morte do agressor, ou a morte da vítima? Quando o Demolidor pergunta “que tipo de escolha é essa?”, Castle responde: “o tipo de escolha que faço sempre que aperto o gatilho”. A mensagem é clara. O Justiceiro faz o que faz porque no mundo em que ele vive é preciso decidir: ou se mata o agressor, ou se permite que a vítima pereça nas mãos do agressor cuja vida fora poupada. De qualquer modo, alguém perderá sua vida, o criminoso ou o inocente, e a responsabilidade está nas mãos daquele que tem o poder de decidir2. Castle decidiu que neste terrível dilema, deve-se preferir pela preservação da vida do inocente, porque ele não suportaria ter em sua consciência a morte do inocente. Logo, o culpado deve morrer. Portanto, o Justiceiro vive em função de um código moral, segundo o qual o culpado deve ser punido e o inocente deve ser protegido. Sua conduta é resultado de dois motivos que agem entre si reciprocamente: o desejo de punição do culpado e o desejo de preservação da vida do inocente. Portanto, pode-se dizer que a rigidez de seu comportamento em relação aos criminosos encontra em sua empatia pela vida dos inocentes um correlato fundamental.

Apesar disso, em muitas situações a narrativa e argumentação de Ennis pareceu funcionar como uma intensa calúnia à causa do Justiceiro. Isso fica particularmente evidente na história "Born", que narra o período em que Castle lutou no Vietnã. Ennis deixa claro que Castle é guiado em primeiro lugar por um forte desejo de matança. A justificativa ética de suas ações aparece apenas como um aspecto residual e secundário em sua conduta. Demonstração cabal disso é o momento em que Castle provoca, ainda que de maneira indireta (mas totalmente deliberada), a morte de um general, apenas porque este estava prestes a mandá-lo de volta pra casa. Mas Frank Castle não queria ser afastado do combate no Vietnã, porque para ele o ato de matar é um fim em si mesmo.
Capa de "Born". Arte de Wieslaw Walkushi


Quão longe está este Frank Castle de sua versão clássica escrita por gente como Gerry Conway, Steven Grant, Mike Baron e Carl Pots! Quão longe isto está da sua origem contada por Dan Abnett a Andy Lenning, publicada em Punisher: year one3, e que para mim é a origem definitiva do famoso vigilante da Marvel Comics. Na origem contada por Lenning e Abnett, Frank Castle torna explícita suas motivações: compensar a inadequação da lei positiva quando esta não pune o culpado, com a finalidade de alcançar a punição (ou justiça) natural. “Eu não falo de vingança”, diz Castle. “Revanchismo não é um motivo válido (...). Estou falando de justiça”4.

Capa de The Punisher Year One. Arte de Dale Eaglesham e Vince Evans.

Mas em "Born", o Justiceiro de Ennis não é um Punisher, uma vez que seu objetivo principal não é punir. Não; a punição é indissociável de um comprometimento ético com a justiça, conforme fica claro a partir do texto magistral de “year one”. "Punir" é o mesmo que impor a justiça. É o justo castigo. Mas em "Born", Frank parece apenas querer matar... pelo simples fato de que gosta de matar. E para tanto vale tudo, até mesmo eliminar um general. Quantos heróis e policiais o Justiceiro clássico não teria matado, se fosse prevalecer a interpretação de Ennis sobre o personagem. 

Portanto, digo que a interpretação de Garth Ennis da personalidade de Castle está errada, pois não explica o fato de que o Justiceiro jamais agiu em outras histórias sob aquelas mesmas motivações descritas em "Born". A finalidade literária de se contar uma origem é a de explicar o porquê de o personagem em questão agir como ele age agora; de explicar ao leitor porque ele se tornou aquilo que agora ele é. Mas se cotejarmos o capitão Castle escrito por Ennis com o Justiceiro existente desde 1974 (ano de sua criação e publicação), a impressão que se tem é a de que se trata de outro personagem. Portanto, houve uma falha clara da parte de Ennis5. O escritor não tentou ajudar-nos a entender o Justiceiro, mas tentou recriá-lo. E nesta reformulação a mensagem parece ser esta: é preciso ser um psicopata para aderir a um código moral fundamentado na ideia de justiça retributiva; é preciso ser um psicopata sádico para pensar que aquele que mata, merece morrer afinal. Portanto, com “Born” – e com outras histórias escritas por Ennis, em que Frank parece mais uma máquina desalmada programada para matar – exprime-se uma verdadeira calúnia à ideia de justiça retributiva e, consequentemente, àquele elemento conceitual que constitui o núcleo moral de Frank Castle.






1 no Brasil, fora publicada pela Panini no encadernado "Bem-vindo de volta, Frank", em 2008.
2 O que se pode discutir aqui é se a perspectiva de Castle sobre a sociedade na qual ele vive é, de fato, a perspectiva mais correta. Na visão do Justiceiro, a violência urbana é tamanha que tal situação se assemelha a uma guerra, e em uma guerra o adversário deve ser derrotado, mesmo que pelos meios mais brutais. E é por isso que, em sua fase clássica, o Justiceiro sempre registrava suas ações em seu famoso “diário de guerra”. Obviamente, na perspectiva do Demolidor, ainda vivemos em uma sociedade predominantemente ordeira, ainda que imperfeita. 
3 publicada no Brasil pela editora Abril Jovem em 1996 como uma mini-série quinzenal, sob o título de “Justiceiro: Ano Um”.
4 Este discurso fora reproduzido no bom filme The Punisher, de 2003, estrelado por Thomas Jane.
5 Na edição encadernada de Born publicada em 2016, é possível visualizar nas últimas páginas, como um elemento extra, o texto originalmente proposto por Ennis. Nele, Ennis é explícito ao analisar as motivações de Frank: “Frank simplesmente gosta disso (de matar), e a morte posterior de sua família é um pouco mais que uma desculpa”. Ele também deixa claro que a “voz” misteriosa com a qual Castle dialoga no Vietnã – que parece ser simplesmente a parte obscura e cruel de sua consciência – é na verdade o Grim Reaper (isto é, o Ceifador). E talvez por perceber que isso é um tanto ridículo, Ennis escreve que “we’ll play this subtly, no outright statements”. Essa atmosfera mística, que se resolve em uma metafísica grosseira e pueril, não coincide em nada com o conceito do Justiceiro. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Captain America on Charlottesville

What would Captain America say about Alt-Right's and Antifa's conflict in Charlottesville? We can find the answer in Captain America Vol.1 #275 (by J.J DeMatteis and Mike Zeck):






"Two of a kind!"

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Jornada nas Estrelas, a série clássica: o aspecto antiutópico da utopia futurista

A tripulação clássica da nave Enterprise, na excepcional arte de Joe Jusko

Na cultura popular, a série Jornada nas Estrelas (ou Star Trek) tornou-se um dos símbolos maiores da fantasia utópica sobre um futuro cheio de grandes realizações graças aos avanços da ciência. Apesar de esta visível fé no progresso científico e civilizacional constituir um dos elementos fundamentais do mito criado por Gene Roddenberry, é importante notar que, em muitos episódios da série clássica, há um claro discurso de reconhecimento e até de defesa dos elementos característicos e imutáveis da natureza humana.

Portanto, creio que um dos grandes temas da fase clássica seja a própria noção de natureza humana, a qual, conforme ensinam-nos alguns episódios, não deve ser sacrificada em prol de nenhum ideal de sociedade perfeita, de nenhuma política temporal infantilmente convertida em verdade salvífica. E esta exigência de preservação da natureza do homem não se deve a algum tipo de humanismo ingênuo que enxerga na humanidade um tipo de entidade perfeita. Ao contrário: reconhece-se a imperfeição inerente ao homem, cuja essência é eterna fonte de conflitos, mas também de liberdade e realizações.

Na verdade, o que se depreende é que, no que diz respeito ao tema da natureza humana, o discurso antiutópico da Série Clássica alterna entre a transmissão de uma mensagem que opera no âmbito deontológico, no sentido de que não devemos tentar mudar a natureza humana (por exemplo, em "a hora rubra"), e uma lição articulada a partir de uma percepção ontológica: a natureza humana é imutável, ou ao menos impassível de ser transformada mediante intervenções externas (um forte exemplo disso é o episódio "semente espacial").

Sim, Jornada nas Estrelas é um exemplo de fé no progresso da ciência; mas este progresso encontra seu limite na natureza do homem. Passo agora a expor e examinar criticamente o conteúdo de alguns episódios que demonstram um caráter profundamente antiutópico em meio à utopia idealizada por Gene Roddenberry. 



"A hora rubra" ("The return of the archons")

Episódio escrito por Gene Roddenberry

Capitão Kirk e alguns membros da tribulação da Enterprise chegam ao planeta Beta III, para investigar o desaparecimento, ocorrido há cem anos, da nave Archon, que orbitava aquele mesmo planeta. Em Beta III, Kirk se depara com pessoas tão tranquilas quanto apáticas, uma condição descrita por Spock como "satisfação vazia" ("vacant contentment").

É revelado que os habitantes de Beta III sofrem o total controle mental de uma entidade chamada Landru, daí a absoluta uniformidade do comportamento social em Beta III. Aqueles que se recusam a se comportar de forma idêntica devem ser "absorvidos", para que façam parte do "corpo", isto é, do comportamento uniforme dos habitantes de Beta III. Portanto, a individualidade é condenada em Beta III.

Uma projeção de Landru, o arquiteto da sociedade perfeita

A uma certa altura da história, Landru - que na verdade é uma máquina – se revela para Kirk e seu grupo como o arquiteto de uma sociedade ideal, de "um mundo sem ódio, sem medo, sem conflito, sem guerra, sem doença, sem crime... sem nenhum dos antigos males". E a condição para isso é que "a individualidade seja integrada na unidade do bem". No fim, graças à sua engenhosidade, Kirk neutraliza Landru e liberta os habitantes de Beta III. Durante sua partida, o capitão da Enterprise se dá por satisfeito ao saber que os habitantes de Beta III já manifestavam seus primeiros conflitos sociais. A contradição social retornara. A utopia estava desfeita. A sociedade perfeita - mas computadorizada - cedera lugar à sociedade imperfeita - porém, humana.

Este episódio, que também pode ser interpretado como uma crítica ao fanatismo religioso, oferece uma perfeita denúncia de todas as construções utópicas. Como muito bem notou Eric Voegelin (2012, p. 298), as utopias se definem por um projeto político de eliminação de uma ou mais características essenciais à natureza humana. Landru eliminou o próprio senso de individualidade dos habitantes de Beta III. Sem individualidade, não havia mais diferenças de comportamento, ou de opinião. Sem essas diferenças, não havia mais conflito. E sem conflito, a paz absoluta prevalecia... entre máquinas. Landru não conseguia compreender que seu projeto de aperfeiçoamento da vida social humana só podia ser posto em prática às custas da própria humanidade daqueles que ele desejava proteger, o que é um total contra-senso.

Eis aí um recado para marxistas: na base das contradições sociais não está apenas a divisão de classes econômicas, mas a distinção entre indivíduos. Querem chegar à conclusão da história, à sociedade sem classes, a síntese final sem contradições ou tensões dialéticas? Não basta eliminar as diferenças de classe e de propriedade. O problema é muito mais profundo. Deve-se destruir a individualidade, a criatividade, a liberdade e, consequentemente, a alma do homem.

Esta última observação é corroborada pela teoria de Eric Voegelin acerca da grande doença do homem moderno: sua incapacidade de permanecer na "metaxy platônica", que por sua vez significa a "intermedialidade" entre pólos que, embora contraditórios entre si, no entanto expõem "elementos na imutável estrutura da existência humana" (McALLISTER, 2017, p. 178). Em suma, a metaxy consiste no reconhecimento das tensões entre elementos contraditórios mas que constituem limites inerentes à realidade. Daí porque a modernidade é definida, por McAllister (2017, p. 45) - baseando-se nas lições de Voegelin - como "revolta contra a realidade". O homem moderno não suporta as contradições da vida humana, e por isso não as apreende como elementos intrínsecos e, portanto, indissociáveis de sua existência. Em sua ânsia por eliminar as contradições, ele deixa de compreender que são justamente estas contradições que, afinal, constituem o tecido de sua realidade, de sua realidade propriamente humana.

Landru é, portanto, um típico ideólogo (como Marx) revoltado contra a realidade e, neste sentido, o personagem capta a mentalidade e angústia do homem moderno. O antigo Aristóteles, por exemplo, apreendia com naturalidade a natureza intermediária (e, por isso, tensional) do homem, localizada entre as bestas e os deuses (Política, cap. 1, §9). Mas o homem moderno, com suas ambições ideológicas, em lugar de se resignar diante desta tensão que é limite imposto pelo real, busca transcendê-la como se fosse mero obstáculo e converte a tensão existencial em mera contradição dialética destinada a ser solucionada mediante artifícios igualmente dialéticos.

Neste processo, o ideólogo moderno acredita que as tensões inerentes à existência humana podem ser revogadas em favor de seu projeto utópico, que é a realização de seu paraíso mundano, sem perceber que, com isso, impõe à humanidade a maior das contradições, pois nenhuma realidade pode ser paradisíaca e mundana ao mesmo tempo. Consequentemente, pode-se dizer que o ideólogo moderno, tal como o personagem Landru ou o filósofo Marx, cegado por seu desejo de sanar todas as contradições sociais, na verdade acaba por gerar a pior e mais grotesca de todas as contradições. 


"Este lado do paraíso" ("This side of paradise")

Episódio escrito por Nathan Butler e D.C. Fontana

Desta vez, capitão Kirk, senhor Spock, dr. McCoy e outros membros da Enterprise visitam o planeta Omicron Ceti III, onde vive uma colônia de agricultores. Entre os mesmos prevalece uma completa harmonia e paz. Mais uma vez, estamos diante de uma utopia. E mais uma vez, a condição necessária desta utopia é a eliminação de certos traços essenciais à natureza humana por meio de uma influência externa.

Em Omicron 3, há plantas que liberam uma poeira que, quando em contato com as pessoas, coloca-as em um estado de tranquilidade e relaxamento. O indivíduo perde seu senso de dever e seu desejo de superar desafios e passa a dedicar-se apenas a atividades prazerosas. Por este motivo, os colonos de Omicron 3 são verdadeiros epicuristas, para os quais a única finalidade existencial é a satisfação de prazeres simples, o que contrasta com a postura mais militar e estoica dos tripulantes da Enterprise.

Kirk e McCoy em Omicron Ceti III, um verdadeiro jardim de Epicuro

Ao longo do episódio, toda a tripulação entra em contato acidental com a poeira liberada pelas plantas. Até mesmo o frio e lógico vulcano Spock é contaminado, tornando-se com isso mais passional e totalmente insubordinado. O único a resistir aos efeitos dos esporos é o capitão James T. Kirk, graças ao seu profundo senso de dever e força de caráter. Depois de libertar Spock dos efeitos dos esporos, inicia-se um processo de libertação gradual de todos os demais membros da Enterprise, bem como dos colonos de Omicron 3. Ao final, enquanto a Enterprise se distanciava de Omicron 3, seguiu-se o diálogo:

McCoy: - É a segunda vez que o homem foi expulso do paraíso.
Kirk: - Não... desta vez saímos por conta própria. Talvez não tenhamos sido feitos para o paraíso. Talvez tenhamos sido feitos para abrir nosso caminho através da luta, batalhando a cada passo. Talvez não devamos dançar ao som de liras e flautas, mas marchar ao som de tambores.

A mensagem é clara: ao homem não é adequado o caminho fácil, ou a vida consagrada aos prazeres, ainda que modestos. A natureza humana exige certa dose de luta, conflito, dificuldades. Somente nestas circunstâncias o ser humano se presta a realizações e alcança o fortalecimento de seu espírito. Se há algum paraíso, este deve ser alcançado pela virtude, e não através do prazer.  



"O computador supremo" ("The ultimate computer")
Episódio escrito por D.C. Fontana e Lawrence N. Wolfe

O Dr. Daystrom cria o M-5, um super-computador destinado a substituir os seres humanos no processo de condução das naves estelares da Federação. A Enterprise é selecionada para testá-lo, e a princípio os resultados são excelentes: o M-5 toma todas as decisões de maneira muito mais rápida e acertada do que qualquer homem poderia fazê-lo. 

O capitão Kirk sente-se extremamente frustrado pela sensação de ter se tornado obsoleto, mas resigna-se diante daquilo que parece ser um exemplo incontestável de progresso para a humanidade. Apesar de sua resignação, não deixa de se mostrar eventualmente inconformado. Sua intuição é a de que há algo errado em substituir homens por máquinas.

McCoy, Spock e Kirk questionam o dr. Daystrom sobre o M-5

Logo de início, ele contesta o Dr. Daystrom e sua criação, sob o argumento de que "os homens precisam fazer certas coisas para que continuem a ser homens... o seu computador os privará disso". Isto é, se permitimos que as máquinas façam por nós o nosso serviço, colocamos em risco nossa própria humanidade. Afinal, o homem é um ser essencialmente ativo. O que resta de nós se outro sempre age ou decide por nós? Como podemos atualizar nossas potencialidades se nossas ações e iniciativas deixam de ser exigidas pela estrutura da realidade? 

Mais adiante, ele diz ao Dr. Daystrom que máquinas são incapazes de emitir juízos de valor, o que demonstraria a incompletude do M-5. Para a surpresa de Kirk, o Dr. Daystrom revela que o M-5 continha as memórias do próprio Daystrom, e por isso seria capaz de pensar como um ser humano. 

Apesar de tudo isso, os escritores do episódio parecem querer mostrar ao espectador que uma máquina é sempre uma máquina. Há um abismo intransponível entre o homem e a máquina, pois no final das contas mesmo a máquina que supostamente pensa como um ser humano não consegue fugir de erros de programação e de interpretação de fatos.

Podemos dizer que as máquinas jamais possuirão a phronesis aristotélica, isto é, aquela capacidade de julgamento prático, extraído da experiência, consistente na compreensão concreta de fatos com suas particularidades circunstanciais, e que portanto ultrapassa o simples equacionamento lógico entre dados contidos nas premissas para se chegar a conclusões (cf. o Livro VI, parágrafos V e VII de Ética a Nicômaco). 

Exemplo deste contraste entre a phronesis humana e o mero raciocínio computadorizado é-nos fornecido aos 12 minutos do episódio, quando Kirk escolhe a si mesmo e ao Dr. McCoy para integrarem uma equipe de aterrissagem no planeta Alpha Carinae II. No entanto, a recomendação do M-5 é que Kirk e McCoy sejam excluídos da equipe, por serem "inessencais" para a missão. Por faltar ao M-5 o saber prático-concreto, a phronesis aristotélica, seu critério de escolha (uma seleção lógica, de acordo com Spock) é meramente formal. Ele seleciona a equipe com base em currículos. O capitão Kirk, por ser um homem, avalia sobretudo a natureza, a disposição e o caráter de seus tripulantes, qualidades que só podem ser compreendidas mediante experiência direta e acumulada, acompanhada de uma certa dose de intuição e instinto. No currículo do Dr. McCoy, nada pode ser dito além do fato de que é um médico-cirurgião. Suas qualidades como homem só podem ser registradas pela phronesis de Kirk. 

Talvez por faltar-lhe a phronesis, o M-5 (que se apossa totalmente dos controles da Enterprise) começa a destruir indiscriminadamente outras naves da Frota Estelar, ao erroneamente julgá-las como inimigas. Kirk consegue desativar o M-5 (por meio de uma solução extremamente inteligente), mas Scotty ainda não tem recursos técnicos para lhe devolver o controle total sobre todas as funções da Enterprise, que ainda permanece incomunicável em relação às outras naves da Frota Estelar. 

A esta altura, o comodoro Wesley da nave Lexington já pedia permissão à Federação para liquidar a Enterprise, quando Kirk, em um ato desesperado, pede a Scotty para desligar todos os recursos de defesa da Enterprise. Diante de uma Enterprise aparentemente indefesa, Wesley decide suspender o ataque fatal. 

Quando Spock pergunta a Kirk sobre o motivo de sua estratégia (que de um ponto de vista puramente lógico parecia ser equivocada), Kirk responde que incluiu em sua equação a humanidade de Wesley: por ser um homem, Wesley provavelmente se sentiria incapaz de destruir um adversário que já não oferecesse mais ameaça. Com isso, o dr. McCoy conclui que a compaixão é uma qualidade essencialmente humana, incapaz de ser reproduzida por máquinas.

Portanto, percebe-se que o M-5, apesar dos esforços de seu criador, era radicalmente diferente dos seres humanos em dois aspectos cruciais: no aspecto cognitivo (por faltar-lhe a referida phronesis) e no aspecto moral (por faltar-lhe compaixão). 

Esta recusa à tentativa de fornecer perfeitas utopias condicionadas por inteligências artificiais, bem como a irredutibilidade do homem à máquina, são temas recorrentes da fase original de Star Trek, e que atestam a sabedoria contida na Série Clássica. Porém, infelizmente essas mensagens parecem ter se perdido em versões posteriores de Jornada nas Estrelas. Assim, por exemplo, em Star Trek: a nova geração, no episódio "Datalore", o capitão Jean-Luc Picard diz que a única diferença entre Data (que é um androide) e os outros tripulantes humanos da nave, é que os humanos são "uma variedade de máquinas, de natureza eletroquímica". Lamentável.


“Semente do espaço” (“space seed”)

Episódio escrito por Gene L. Coon e Carey Willber

Geralmente apontado como um dos melhores momentos de Jornada nas Estrelas, o episódio “space seed” (“semente do espaço”) também destaca o aspecto antiutópico da série clássica relativamente aos devaneios de cientistas que sonham com o aperfeiçoamento da espécie humana. 

Nesta história, Kirk e a Enterprise encontram à deriva do espaço uma antiga espaçonave (chamada de SS Botany Bay) cujos tripulantes estão em estado de animação suspensa em câmaras criogênicas. Um deles é retirado da câmara de animação suspensa, e transportado para a Enterprise. O que até esse momento não se sabia, é que este homem recém despertado era um dos últimos remanescentes de um notável evento ocorrido durante os anos 90 do século XX: as Guerras Eugênicas. Nesse período, uma nova raça de “super-homens” havia sido criada por cientistas. Mais inteligentes e mais fortes do que os seres humanos comuns, esses super-homens julgaram que poderiam melhorar o mundo através da unificação do mesmo por meio da imposição de uma ditadura administrada por eles próprios. O maior e mais perigoso destes ditadores foi Khan Noonien Singh. Ao ser derrotado no final das Guerras Eugênicas, Khan empreendeu fuga junto de seus asseclas mais próximos em uma nave espacial, precisamente a nave agora encontrada pela tripulação da Enterprise, sendo o tripulante recém despertado o próprio Khan. Enquanto Kirk e Spock tentam descobrir sua identidade, Khan já empreende um plano para dominar a Enterprise, e por muito pouco não alcança êxito. 

Khan Noonien Singh, brilhantemente interpretado por Ricardo Montalbán


Apesar de sofrer mudanças em aspectos marginais e meramente instrumentais (inteligência e força), em sua essência, isto é, em sua constituição volitiva ou caráter, Khan permaneceu bastante comum: vaidoso, egoísta e orgulhoso, o icônico vilão não transcendeu em nada aquilo que o filósofo Nietzsche chamou de “vontade de poder”. Suas motivações permaneceram ordinárias. Ele apenas dispunha de melhores meios para alcançar seus fins: estes últimos, entretanto, ainda eram idênticos àqueles cultivados mesmo entre os mais medíocres dos homens. Khan quer dominar... mas quem não deseja exercer sua quota de domínio? Justamente por Khan permanecer demasiado humano em suas motivações e em seu caráter, Spock pôde aplicar ao seu comportamento aquela fórmula extraída a partir da observação sobre a natureza humana: “habilidade superior gera uma ambição superior“. Como naquela lenda do “anel de Giges” que nos é contada por Platão (República, II, p. 359c), Khan é apenas um camponês que encontrou um objeto que lhe confere poder, e que por isso decide tornar-se rei através do assassinato. A diferença reside apenas no fato de que, em lugar de usar um objeto extrínseco como o anel da invisibilidade, Khan utiliza de seus atributos intrínsecos, sua própria força e inteligência cientificamente aumentadas, para satisfazer sua vontade de poder. As mudanças operam apenas no nível dos acidentes; a substância permanece a mesma. Por isso, aquilo que interpreto como o aspecto antiutópico da Série Clássica – a tese da imutabilidade da essência humana – pode ser resumido nestas palavras proferidas por Khan em seu diálogo com Kirk:

 Estou surpreso com quão pouco aperfeiçoamento tem havido na evolução humana. Sim, houve algum avanço técnico... mas quão pouco mudou o homem em si”. 

Sábias palavras. O único erro de Khan foi não ter se dado conta de que sua sagaz observação aplicava-se a ele próprio: iludido por seus privilégios instrumentais – força e inteligência – Khan não percebeu que sua essência – sua vontade – restou intocada mesmo pelas mais ousadas intervenções da engenharia genética. 

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de castro Caeiro. São Paulo: atlas, 2009.

_______. Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

McALLISTER, Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. Tradução de Túlio Borges de Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2017.

PLATO. Republic. Tradução de G.M.A. Grube. Ed. de John M. Cooper. Cambridge/Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1997.

VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: helenismo, Roma e cristianismo primitivo. Volume I. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012.