Há poucos dias, começou a ser comercializada a continuação do excelente jogo de luta da Netherrealm, "Injustice: Gods Among Us". Trata-se de "Injustice 2".
Particularmente, eu gostei muito de Injustice: Gods Among Us, tanto naquilo que diz respeito ao jogo em si
quanto à história. Por este motivo, assim que saiu no Youtube as primeiras publicações do
"modo história" de Injustice 2, apressei-me para
assistir. E fiquei decepcionado. Que fique claro: fiquei
decepcionado com a história, e não com o jogo em si, que ainda nem tive oportunidade
de experimentar.
"Mas como assim? Toda a crítica especializada e público adoraram a
história!". Ok, vou explicar.
Quando se trata de fazer um jogo de luta entre personagens de
HQ's, os responsáveis precisam fazer uma escolha:
o jogo se passará numa atmosfera descontraída, "só pra diversão", ou será
algo mais sério, com uma história bem construída? Como exemplo de jogos de luta
que assumem a primeira direção, temos a clássica série "Marvel vs
Capcom". Aqui, a história não é importante. Tudo o que se deseja é entreter o
público, oferecendo a este as situações mais inusitadas e pitorescas. Assim, ninguém fica
incomodado com a possibilidade da Chun-li vencer o
Galactus, mediante a aplicação de golpes de Wu Shu. É só uma brincadeira. E quanto mais
ridículo, até melhor.
Como exemplo de jogos que assumem a segunda direção, temos as
próprias produções da Netherrealm com os heróis
da DC. Desde "Mortal Kombat VS DC Universe", a citada empresa (na época, Midway) tem se
esforçado no sentido de oferecer ao público não somente bons jogos de luta, mas também uma
história que torne coerente a possibilidade da haver
uma briga equilibrada entre, por exemplo, Liu Kang (um simples longe lutador de Kung Fu
que domina algumas habilidades mágicas) e o Capitão
Marvel (um indivíduo indestrutível que contém em si os poderes de várias
divindades). Para alcançar este objetivo, a Netherralm até mesmo contratou os
serviços de experientes escritores de quadrinhos,
como Jimmy Palmiotti. O resultado foi satisfatório. Com explicações que usavam
conceitos como o de magia e distorções da realidade
provocadas pela fusão de multiversos, era possível aceitar que, eventualmente, o
Coringa pudesse derrotar alguém como o
Exterminador (Deathstroke), em combate corpo-a-corpo. Em seguida lançaram Injustice: Gods Among Us. Mais
uma vez, construiu-se uma história para
sustentar com coerência a possibilidade de personagens "fracos" (como
arqueiro verde) enfrentarem
e derrotarem personagens "fortes" (como o Adão Negro).
Pois bem. Em Injustice
2, aquelas duas tendências foram mescladas em sua história, e assim temos uma mistura
da seriedade e do cinismo, de comprometimento com o conceito de cada personagem ao mesmo
tempo que os coloca em situações pitorescas
que violam aqueles mesmos conceitos. De um lado, tem-se uma história tensa a dramática,
representada com a mais absoluta seriedade. De outro lado, tem-se o confronto
entre personagens com níveis muito diferentes
de poderes, onde OS MAIS FRACOS VENCEM OS MAIS FORTES, e isso sem qualquer explicação!
Assim, por exemplo, no capítulo 2, dedicado a
Harley Quinn (uma personagem doente cuja recente popularidade só pode ser explicada pelo temperamento igualmente doentio destes
tempos em que vivemos), pode-se testemunhar a ajudante do Coringa, cujo maior super-poder
parece ser sua débil psicopatia, derrotar o Monstro do
Pântano, uma criatura praticamente indestrutível. Mais adiante, a mesma Harley
Quinn derrota vários gorilas super-fortes subordinados
a Grodd... utilizando-se de um simples pedaço de pau.
Talvez os absurdos mais flagrantes envolvam Batman. Logo no
primeiro capítulo, o famoso homem-morcego - que
em suas histórias solo esforça-se imensamente para derrotar simples capangas de
indivíduos desprovidos de qualquer habilidade
especial, como o Pinguim, Duas-caras e Coringa - derrota, em luta corpo-a-corpo, a
poderosíssima Mulher Maravilha. Mais adiante, derrota
até mesmo o Adão Negro, nas mesmas condições. E estes são apenas alguns exemplos
(não vou sequer mencionar o fato de que o primeiro capítulo da
história de Injustice 2 contradiz parte significativa do conteúdo apresentado no volume 1, principalmente os números 15 e 16, da série de quadrinhos de Injustice
Gods among Us). A esta altura, o leitor poderia questionar: "talvez ele estivesse usando
as pílulas kriptonianas que aumentam em várias
vezes a força e resistência de seu usuário, e que foram utilizadas em Injustice 1 para justificar os combates entre heróis de diferentes
níveis de poder". Ok, eu me lembro das pílulas. O problema é que elas não
foram mostradas e sequer mencionadas em nenhum ponto da história. Talvez fosse um
elemento subentendido, pressuposto. Mas então a
falha na história persiste: afinal, que escritor competente manteria como simples
pressuposição um elemento explicativo tão essencial e importante? E justo em
relação a personagens de histórias em quadrinhos,
onde geralmente tudo é minuciosamente explicado por seus roteiristas?
E o mais surpreendente é a reação do público consumidor. Nos
debates que li (e foram vários) quase ninguém questionou essas incoerências. As únicas explicações para essa
indiferença a um aspecto tão importante no universo dos heróis em quadrinhos - isto é, a
extensão de seus poderes físicos - só podem ser
três : ou ignorância completa em relação a esses personagens, ou algum tipo de epidemia
social de retardamento das habilidades cognitivas
– e que geralmente se manifesta na indiferença diante de absurdos – ou as
duas coisas ao mesmo tempo.
E por falar em descaracterização, um outro aspecto - talvez
muito mais sério - merece atenção. Trata-se da
forma como heróis clássicos como o Superman, Aquaman e Mulher-Maravilha são retratados.
Como muitos sabem, em Injustice 1 é-nos apresentada uma "outra
Terra" ou realidade, onde o Superman tornou-se um
tirano, imediatamente seguido pela Mulher-Maravilha. Portanto, não se trata, por assim
dizer, do "verdadeiro" Superman e da
"verdadeira" Mulher-Maravilha. E isso fica explícito na medida em que os "verdadeiros" chegam a essa
realidade alternativa, e confrontam-se com suas
versões malignas. Inclusive, quem derrota o Superman tirânico - e consequentemente, o
último desafio do jogo - é o próprio Superman
tradicional. Mas em Injustice
2 tudo se passa nessa realidade
alternativa, onde o Superman e a Mulher-Maravilha são assassinos aspirantes a políticos
autoritários. E não
há qualquer alusão ao fato de que esta é apenas uma realidade alternativa. Portanto, ao jogador
desabituado a esses conceitos típicos entre leitores de quadrinhos, e que não teve o
cuidado de se familiarizar com a história do jogo anterior, o Superman canalha aparece como o único e verdadeiro
Superman.
Consequentemente, a história
de Injustice 2 pode perfeitamente funcionar como uma terrível calúnia ao mito criado por
Jerry Siegel e Joe Shuster, e
outros heróis clássicos de caráter e moralidade inquebrantáveis, como Aquaman, Mulher-Maravilha e
Ciborgue. Por outro lado, temos
Arlequina e Mulher-Gato representadas como magistrais heroínas. Resta-me repetir, com tristeza, aquelas
palavras nas quais o romano Cícero imortalizou seu desabafo, ao testemunhar a
perda gradual de bom senso geral
nos últimos anos daquela grande República: "o tempora! o mores!".
Nenhum comentário:
Postar um comentário