quinta-feira, 18 de maio de 2017

Injustice 2: uma dramática história escrita para um público aparentemente debiloide





Há poucos dias, começou a ser comercializada a continuação do excelente jogo de luta da Netherrealm, "Injustice: Gods Among Us". Trata-se de "Injustice 2".



Particularmente, eu gostei muito de Injustice: Gods Among Us, tanto naquilo que diz respeito ao jogo em si quanto à história. Por este motivo, assim que saiu no Youtube as primeiras publicações do "modo história" de Injustice 2, apressei-me para assistir. E fiquei decepcionado. Que fique claro: fiquei decepcionado com a história, e não com o jogo em si, que ainda nem tive oportunidade de experimentar. "Mas como assim? Toda a crítica especializada e público adoraram a história!". Ok, vou explicar.

Quando se trata de fazer um jogo de luta entre personagens de HQ's, os responsáveis precisam fazer uma escolha: o jogo se passará numa atmosfera descontraída, "só pra diversão", ou será algo mais sério, com uma história bem construída? Como exemplo de jogos de luta que assumem a primeira direção, temos a clássica  série "Marvel vs Capcom". Aqui, a história não é importante. Tudo o que se deseja é entreter o público, oferecendo a este as situações mais inusitadas e pitorescas. Assim, ninguém fica incomodado com a possibilidade da Chun-li vencer o Galactus, mediante a aplicação de golpes de Wu Shu. É só uma brincadeira. E quanto mais ridículo, até melhor.

Como exemplo de jogos que assumem a segunda direção, temos as próprias produções da Netherrealm com os heróis da DC. Desde "Mortal Kombat VS DC Universe", a citada empresa (na época, Midway) tem se esforçado no sentido de oferecer ao público não somente bons jogos de luta, mas também uma história que torne coerente a possibilidade da haver uma briga equilibrada entre, por exemplo, Liu Kang (um simples longe lutador de Kung Fu que domina algumas habilidades mágicas) e o Capitão Marvel (um indivíduo indestrutível que contém em si os poderes de várias divindades). Para alcançar este objetivo, a Netherralm até mesmo contratou os serviços de experientes escritores de quadrinhos, como Jimmy Palmiotti. O resultado foi satisfatório. Com explicações que usavam conceitos como o de magia e distorções da realidade provocadas pela fusão de multiversos, era possível aceitar que, eventualmente, o Coringa pudesse derrotar alguém como o Exterminador (Deathstroke), em combate corpo-a-corpo. Em seguida lançaram Injustice: Gods Among Us. Mais uma vez, construiu-se uma história para sustentar com coerência a possibilidade de personagens "fracos" (como arqueiro verde) enfrentarem e derrotarem personagens "fortes" (como o Adão Negro).

Pois bem. Em Injustice 2, aquelas duas tendências foram mescladas em sua história, e assim temos uma mistura da seriedade e do cinismo, de comprometimento com o conceito de cada personagem ao mesmo tempo que os coloca em situações pitorescas que violam aqueles mesmos conceitos. De um lado, tem-se uma história tensa a dramática, representada com a mais absoluta seriedade. De outro lado, tem-se o confronto entre personagens com níveis muito diferentes de poderes, onde OS MAIS FRACOS VENCEM OS MAIS FORTES, e isso sem qualquer explicação! Assim, por exemplo, no capítulo 2, dedicado a Harley Quinn (uma personagem doente cuja recente popularidade só pode ser explicada pelo temperamento igualmente doentio destes tempos em que vivemos), pode-se testemunhar a ajudante do Coringa, cujo maior super-poder parece ser sua débil psicopatia, derrotar o Monstro do Pântano, uma criatura praticamente indestrutível. Mais adiante, a mesma Harley Quinn derrota vários gorilas super-fortes subordinados a Grodd... utilizando-se de um simples pedaço de pau.

Talvez os absurdos mais flagrantes envolvam Batman. Logo no primeiro capítulo, o famoso homem-morcego - que em suas histórias solo esforça-se imensamente para derrotar simples capangas de indivíduos desprovidos de qualquer habilidade especial, como o Pinguim, Duas-caras e Coringa - derrota, em luta corpo-a-corpo, a poderosíssima Mulher Maravilha. Mais adiante, derrota até mesmo o Adão Negro, nas mesmas condições. E estes são apenas alguns exemplos (não vou sequer mencionar o fato de que o primeiro capítulo da história de Injustice 2 contradiz parte significativa do conteúdo apresentado no volume 1, principalmente os números 15 e 16, da série de quadrinhos de Injustice Gods among Us). A esta altura, o leitor poderia questionar: "talvez ele estivesse usando as pílulas kriptonianas que aumentam em várias vezes a força e resistência de seu usuário, e que foram utilizadas em Injustice 1 para justificar os combates entre heróis de diferentes níveis de poder". Ok, eu me lembro das pílulas. O problema é que elas não foram mostradas e sequer mencionadas em nenhum ponto da história. Talvez fosse um elemento subentendido, pressuposto. Mas então a falha na história persiste: afinal, que escritor competente manteria como simples pressuposição um elemento explicativo tão essencial e importante? E justo em relação a personagens de histórias em quadrinhos, onde geralmente tudo é minuciosamente explicado por seus roteiristas?

E o mais surpreendente é a reação do público consumidor. Nos debates que li (e foram vários) quase ninguém questionou essas incoerências. As únicas explicações para essa indiferença a um aspecto tão importante no universo dos heróis em quadrinhos - isto é, a extensão de seus poderes físicos - só podem ser três : ou ignorância completa em relação a esses personagens, ou algum tipo de epidemia social de retardamento das habilidades cognitivas – e que geralmente se manifesta na indiferença diante de absurdos –  ou as duas coisas ao mesmo tempo.

E por falar em descaracterização, um outro aspecto - talvez muito mais sério - merece atenção. Trata-se da forma como heróis clássicos como o Superman, Aquaman e Mulher-Maravilha são retratados.  Como muitos sabem, em Injustice 1 é-nos apresentada uma "outra Terra" ou realidade, onde o Superman tornou-se um tirano, imediatamente seguido pela Mulher-Maravilha. Portanto, não se trata, por assim dizer, do "verdadeiro" Superman e da "verdadeira" Mulher-Maravilha. E isso fica explícito na medida em que os "verdadeiros" chegam a essa realidade alternativa, e confrontam-se com suas versões malignas. Inclusive, quem derrota o Superman tirânico - e consequentemente, o último desafio do jogo - é o próprio Superman tradicional. Mas em Injustice 2 tudo se passa nessa realidade alternativa, onde o Superman e a Mulher-Maravilha são assassinos aspirantes a políticos autoritários. E não há qualquer alusão ao fato de que esta é apenas uma realidade alternativa. Portanto, ao jogador desabituado a esses conceitos típicos entre leitores de quadrinhos, e que não teve o cuidado de se familiarizar com a história do jogo anterior, o Superman canalha aparece como o único e verdadeiro Superman.


Consequentemente, a história de Injustice 2 pode perfeitamente funcionar como uma terrível calúnia ao mito criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, e outros heróis clássicos de caráter e moralidade inquebrantáveis, como Aquaman, Mulher-Maravilha e Ciborgue. Por outro lado, temos Arlequina e Mulher-Gato representadas como magistrais heroínas. Resta-me repetir, com tristeza, aquelas palavras nas quais o romano Cícero imortalizou seu desabafo, ao testemunhar a perda gradual de bom senso geral nos últimos anos daquela grande República: "o tempora! o mores!".

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