Há muito tempo penso que os super-heróis em geral não são
simples figuras de entretenimento ou escapismo barato. Não; eu vejo nos
super-heróis uma força pedagógica, na medida em que eles expressam e reforçam
ideais morais a partir de seu exemplo. Os antigos gregos enxergavam seus heróis
da mesma forma, e por isso Homero era considerado não apenas um poeta de grande
imaginação, mas sobretudo um educador. Neste texto, procuro demonstrar alguns
aspectos do mito do primeiro e mais arquetípico super-herói, o Superman,
aspectos estes que podem nos ensinar algo sobre nós mesmos enquanto espécie
humana, bem como guiar nossas vidas.
1. O Superman é símbolo de uma rejeição. Mas rejeição a quê?
Rejeição a tudo que há de mais prosaico, insosso, baixo, débil, e patético na
humanidade. Se somos predominantemente egoístas, Superman é inteiramente altruísta; se,
fisicamente, somos naturalmente frágeis e débeis, ele, em contrapartida, é a
imagem do poder encarnado. Em suma, ele é aquilo que deveríamos ser, mas que
não somos. E ao ser tudo o que deveríamos ser, mas não somos, Superman
representa-nos uma imagem de repúdio ao “humano, demasiado humano”1. Portanto, ao contrário do que muitos
pensam, há muita agressividade na mera imagem do velho escoteiro. Algumas
pessoas o odeiam, e com razão: pois se sentem ofendidas por ele, tal como o indivíduo vaidoso se sente ofendido pela simples presença daquele que ele sabe ser um rival superior. Para o
narcisista, é extremamente difícil olhar para qualquer outra coisa que não o
próprio retrato. Mais difícil ainda para ele é deparar-se com uma imagem que
representa sua própria superação, e assim, que funciona como uma denúncia de
suas próprias carências e defeitos. Por esta razão o Superman não se encontra
em seus melhores dias de popularidade. Em tempos de selfie, isto é, em um período no qual presenciamos esta epidemia de
narcisismo universal, um Super-homem não pode ser muito popular. Como escreveu
brilhantemente Mark C. Henrie, “a psique da modernidade anseia por
identificar-se com um protagonista e, acanhada, evita o julgamento implícito
contra o prosaico que é expresso por meio da vida exemplar do herói”2. Mas justamente aí consiste uma das
grandes virtudes de seu mito: ele nos convida à superação de nós mesmos e ao
abandono do estado de mediocridade. Mas para aceitar este convite, primeiro devemos neutralizar nosso próprio egoísmo e vaidade, e parar de admirar apenas aquilo com o qual nos "identificamos".
2. Superman nos ensina o imensurável valor da compaixão, mas
sem deixar de conciliá-la com a justiça. Poucos heróis demonstram tanta
compaixão pelos mais fracos como o Superman. Diferentemente da maioria dos
heróis, ele não luta motivado por emoções cuja base é egoísta, tal como o
ressentimento pessoal ou a vingança. Seus pais não foram assassinados, e nem
seu tio. Ele simplesmente não suporta ver outro homem sofrer, e por isso
decidiu agir como herói. Mas apesar de seu grande coração, ele não hesita em
dar ao vilão aquilo que este merece. Inocentes são dignos de compaixão. Mas o
culpado deve ser detido, mesmo que por meio de super-pancadas. Muitos filósofos, sociólogos e psicólogos buscam "causas" para a maldade e comportamento antissocial, como se a espécie humana fosse fundamentalmente angelical e repleta de boas intenções e, portanto, como se devesse existir causas externas de nossa eventual corrupção. Assim pensam muitos homens. Mas um super-homem prefere pensar que todo indivíduo é dono de seu destino, e, por isso, na mesma proporção em que deve ser parabenizado por seus acertos, deve ser julgado e punido por seus erros.
3. Superman é o “escoteiro”, um personagem “old fashioned”.
E com isso demonstra que a defesa dos velhos valores e costumes define um
verdadeiro super-homem. Apenas os pequenos escravos das circunstâncias seguem
os modismos passageiros. E é melhor deixarmos os desejos de inovações radicais
para vilões progressistas que sempre perseguem sonhos utópicos de dominação,
tais como Lex Luthor. Sim, Superman é definitivamente aquilo que alguns chamam
de “conservador cultural”, ou “tradicionalista”. E não há vergonha alguma em
sê-lo, uma vez que esta é a marca deste homem superior.
4. Seu mito nos ensina o valor da família e o quão sagrada
ela é, além de prestar uma singela homenagem à salutar simplicidade da vida rural.
O que mais me agrada na versão produzida por John Byrne é que os pais adotivos
do Superman estão vivos, e assim podemos acompanhar a relação familiar na qual
um super-caráter pode ser forjado. O que seria do bom Clark Kent, não fosse a
forte união matrimonial de um homem e uma mulher e o amor que ambos conferiram
ao seu filho adotivo? Uma família unida e organizada é capaz de feitos
maravilhosos! Além disso, jamais podemos esquecer que embora Clark viva na
grandiosa e atribulada Metrópolis, o que faz dele verdadeiramente nobre é a sua
origem simples adquirida na pequena Smallville.
5. Nada que é realmente bom pode vir deste mundo. O Super-homem não é um homem nascido na Terra, que se
tornou superior após ler “Assim falou Zaratustra”, ou algum texto evolucionista
de Herbert Spencer. Ele veio de um mundo “muito, muito distante”. Portanto, em
meu modo de interpretar o mito do Superman, penso que ele nos ensina que
devemos ser humildes enquanto espécie, e portanto ele afasta aquele humanismo
patético que consiste na crença muitas vezes difundida de que somos capazes de
realizar toda e qualquer coisa com base em nossa – supostamente profética e onipotente –
racionalidade. “Não há limites para o homem!”. Há, sim. E justamente porque
somos homens.
6. Super-heróis possuem super-poderes. É absurdo pensar que
com inteligência, engenho, capital e algo como um cinto de utilidades podemos
ser super-heróis. O mito do Superman afasta essa fantasia humanista. Se ele não
tivesse super-poderes, então provavelmente seria apenas um homem comum, com uma
família, uma casa, e um emprego, porque é isso que homens comuns e mentalmente
sadios fazem. Portanto, paradoxalmente, penso que os personagens mais irreais
são justamente aqueles que seriam supostamente mais realistas, tais como o Batman,
Rorschach ou o Homem-de-ferro, pois, apesar de serem simples homens, eles
realizam aquilo que não está ao alcance de nenhum homem realizar. Mas então o
mito do Superman nos convida à vida prosaica, à mediocridade? Claro que não.
Ele nos convida à realização do bem, mas dentro de nossas possibilidades. O
Superman é um super-herói, porque dentro de suas possibilidades ele pode lutar
contra super-vilões. Mas apesar de não contarmos com incríveis poderes, no
entanto ainda podemos seguir seu exemplo de moralidade. Podemos tentar ser boas pessoas. Não podemos enfrentar fisicamente
assaltantes armados ou impedir terremotos, mas podemos ser bons cidadãos, bons amigos, bons
filhos, bons pais, bons maridos, etc. Este é o melhor meio de incorporarmos, em
nossa vida concreta, aquele que é para mim o melhor aspecto deste mito: sua
bondade e moralidade tipicamente cristãs. Como o próprio Superman diz em uma
velha história da Era de Prata: “sejam bons uns para os outros, e todo homem
pode ser um super-homem”3.
1 Em minha
opinião, o Übermensch de Nietzsche
também era “humano, demasiado humano”. Nossas cadeias – e algumas de nossas
universidades – estão repletas de “humanos, demasiado humanos” deste tipo, isto
é, pessoas que veem as tradições morais da humanidade como meros limites ao seu
arbítrio e que anseiam liberar seus mais insólitos apetites “dionisíacos”.
2 HENRIE,
Mak. C. “Russell Kirk e o coração conservador”, 2013, p. 59.
3 A história
em questão foi chamada no Brasil de “Os últimos dias do Superman”. Foi escrita
por Edmund Hamilton e desenhada por Curt Swan, sendo publicada originalmente em
Superman 156, de outubro de 1962. No
Brasil, foi publicada pela Panini na coletânea “A maiores histórias do Superman”,
em 2008.
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