O que é conservadorismo?
Creio que, quando se fala vulgarmente em “conservadorismo”,
a principal ideia que vem à mente das pessoas é a de um tradicionalismo teimoso
e fanático, resistente a toda e qualquer sugestão de progressos e mudanças
sociais. Na verdade, esta é uma concepção caricata. Pois, como bem ensina
Russell Kirk – provavelmente o maior conhecedor e estudioso do conservadorismo
– em sua obra The conservative mind,
ainda que seja bastante característico das ideias conservadoras a oposição às
abruptas inovações políticas, morais e sociais, isso não ocorre por um estranho
fetichismo no sentido de se opor a tudo que é novo, mas porque crê-se que o
melhor desenvolvimento de uma sociedade se realiza através da equilibrada
continuidade e no respeito pelas tradições, as quais, em sua maior parte, não
resultam de caprichos e do arbítrio de acadêmicos idealistas, idiotas e
solitários, mas surgem como reflexo da natureza concreta do ser humano. Disso
se segue a crença dos conservadores em uma ordem moral transcendente, traduzida
em princípios morais fixos, continuamente descobertos e reafirmados pelas
tradições, e cuja alteração ou corrupção abala as estruturas mais seguras da
sociedade, precipitando-a, assim, em um estado de confusão e desordem. Dito de
modo mais simples, o verdadeiro conservador é aquele que preza as tradições em
detrimento dos sonhos utópicos, não por uma resistência caprichosa ou
patológica contra tudo aquilo que é novo, mas porque sabe que a voz da
experiência passada é mais sábia do que a consciência da massa entusiasmada
quando diante da expectativa de milagrosas mudanças.
As motivações conservadoras e a história de Reino do Amanhã
Mas que
tipo relação isso tudo teria com a graphic
novel O Reino do Amanhã? Creio que uma relação bastante forte. Pois se
fôssemos tentar apreender o argumento essencial que permeia o Reino do Amanhã,
então, creio que eu, que seria este: que é extremamente nocivo abandonar nossas
tradições morais, representadas por nossos heróis tradicionais, para então
adotarmos, incentivados por algum entusiasmo sentimentalista e momentâneo, um
novo código moral representado por novos heróis supostamente progressistas.
Devo deixar claro que desconheço inteiramente as posições políticas adotadas
por Mark Waid e Alex Ross, os criadores de Reino do Amanhã. E isso pouco me
importa, uma vez que a obra verdadeiramente boa deve sempre se desligar das
preferências subjetivas de seus autores para adquirir vida própria. Mas certamente
Mark Waid e Alex Ross conceberam o Reino do Amanhã dentro de um espírito
tipicamente conservador, no sentido de que sabiam que precisavam proteger e
restaurar as antigas tradições das histórias em quadrinhos, pelas quais os
heróis seguiam um código moral bastante rígido, em oposição aos novos “heróis”,
moralmente ambíguos e psicologicamente doentes. O Reino do Amanhã fora
concebido em meados dos anos 90, quando o Superman perdia cada vez mais sua
popularidade, a versão de Frank Miller para o Batman era considerada a versão
definitiva do mesmo (e, lamentavelmente,
ainda é...), o Wolverine tinha muito mais destaque do que o Capitão América, e
a editora Image – uma verdadeira fábrica do anti-heroísmo vazio e descartável –
adquiria cada vez mais sucesso. Neste panorama, as histórias em quadrinhos já
não eram mais alegorias morais, mas simples expressões artísticas e da
imaginação destituídas de qualquer compromisso ético. Através de Reino do
Amanhã, Mark Waid e Alex Ross buscavam reverter este quadro.
Como já é
bem sabido por qualquer fã de quadrinhos, toda a trama de Reino do Amanhã se
passa em um futuro possível, onde há precisamente 10 anos, o maior de todos os
heróis, o Super-homem, decidiu aposentar-se. A consequência de sua
aposentadoria foi o afastamento de todos os heróis do passado e o surgimento de
uma nova geração de vigilantes que, no melhor estilo Image, adotam uma postura
neurótica e indiferente a princípios morais e à vida humana. Parecem lutar por
lutar, em vez de lutar pelo que é certo. Assim, a população humana se vê cada
vez mais ameaçada por esta geração de metahumanos desequilibrados.
Mas o que
realmente nos interessa até aqui é o motivo da aposentadoria do Super-homem.
Por que teria ele desistido da humanidade? Na verdade, foi a humanidade que
desistiu dele. No passado, Metrópolis viu surgir um novo protetor: Magog. A
postura de Magog era aquela reverenciada pela massa de leitores dos anos 90:
homicida implacável, com algumas cicatrizes e elementos cibernéticos em seu
traje (qualquer semelhança com o Cable de Rob Liefeld não poderia ser mera
coincidência). Magog era a suma do anti-heroísmo comercialmente vitorioso dos
anos 90, tanto no aspecto estético quanto no aspecto psicológico. E, com a
utilização de mais um recurso metalinguístico, a população de Metrópolis igualmente
passa a adorar este novo protetor, bem como a aceitar seus métodos inovadores (e bastante violentos). Com
isso, verifica-se a ruptura com a antiga
tradição ética representada na figura do Super-homem: aos olhos dos
cidadãos de Metrópolis, o velho “escoteiro” estava ultrapassado.
Tomado pela
decepção e amargura, o Super-homem se recolhe em sua Fortaleza da Solidão. Para
enfatizar seu desligamento em relação à humanidade, ele até mesmo abandona a
identidade de Clark Kent.
O conservadorismo se introduz na história...
É
precisamente neste momento que a tese conservadora se afirma em Reino do
Amanhã. Pois de acordo com a história, ao dar as costas ao antigo (representado
no personagem Super-homem) para abraçar de maneira entusiasmada o novo
(representado no personagem Magog), o povo da Terra se coloca em uma rota que
os conduzirá à desordem e destruição. Não nos enganemos: a população de
Metrópolis não trocou simplesmente um herói pelo outro, mas revogou toda uma tradição,
todo um conjunto de princípios, para substituí-los por uma concepção
inteiramente nova sobre o que deveria ser o heroísmo. Mas de acordo com os
conservadores, o elemento que dá sustentação, harmonia e coerência a uma
sociedade, é precisamente o conjunto de seus princípios éticos tradicionais. Ao
romper com estes princípios, a população de Metrópolis perdeu seu chão, seu
ponto de sustentação, e a consequência disso foi o desmoronamento de seu
edifício ético, político e social. Dez anos depois, tudo é medo, caos e
desordem. A expressão “herói” adquire um sentido pejorativo, uma vez que os
heróis atuais estão entre os principais agentes do caos. O reverendo Norman
McCay começa a ter visões sobre o apocalipse. E Magog, com seu grupo de
“heróis”, em um ato violento e imprudente, provoca uma onda de destruição que
varre todo o estado do Kansas, e partes de Iwoa, Missouri e Nebraska. Milhões
morrem.
Com isso, o
Super-homem se vê forçado a retornar. Seu retorno é épico, e certamente um dos
pontos altos de toda a série: em super-velocidade, ele salva dezenas de pessoas
em um teleférico ao mesmo tempo que detém sete metahumanos da nova geração que
ali se digladiavam. Todos aplaudem e choram emocionados. Mas o reverendo Norman
McCay continua a ter visões sobre o apocalipse, e por isso ele pressente que o
retorno do Superman não irá resolver todos os problemas.
A sabedoria de Orion
E McCay
está certo. Diante de todo o caos, o Super-homem parece se ver forçado a adotar
uma postura um tanto autoritária. Ele e sua Liga da Justiça realizam uma
verdadeira cruzada pelo mundo, onde convertem metahumanos rebeldes e aprisionam
aqueles que se recusam a seguir seu auxílio e liderança. O Super-homem é bem
intencionado, mas suas ações são uma perfeita expressão do tradicionalista
confuso que sabe que precisa reagir, mas não sabe ao certo como. As constantes sugestões da belicosa Mulher-Maravilha também
não ajudam.
Embora o
Super-homem sempre prime pela razoabilidade e diálogo, sua amiga amazona
encarna o lado mais doentio da mente reacionária: para a Mulher-Maravilha,
parece que a resposta para todos os problemas é sempre a guerra. Do outro lado
temos Batman, que adota uma postura de aristocrata arrogante e que se acha no
direito de fazer a si mesmo a exceção de todas as regras. Assim, quando o
Superman ressurge com a Liga da Justiça, Bruce Wayne rechaça os pedidos de
auxílio e ajuda do Homem de Aço, sob o pretexto de que a Liga da Justiça é
totalitária. Mas, enquanto acusa o Super-homem, ele controla através dos
computadores de sua batcaverna centenas de vigilantes e androides que patrulham
e vigiam Gotham City 24h por dia, convertendo, assim, uma cidade inteira em um
estado policial onde todos sentem medo. E Batman ainda deseja estender seus
domínios sobre outras cidades...
Com a
persistência das dificuldades em sua cruzada, o Super-homem vai até Apokolips
procurar conselhos do deus Órion, que agora governa aquele mundo no lugar de
seu pai, Darkseid. Superman se desaponta ao ver que, apesar do governo de
Orion, Apokolips continua a ser o mesmo inferno. Neste momento ocorre este
intrigante diálogo:
Superman:
“Francamente, Orion. De todos os velhos aliados que eu tenho encontrado, você é
o que me desapontou mais. Você é um deus. Você tem o poder de mudar seu mundo”.
Orion: “Ou de destruí-lo. Temo que você ficaria
surpreso com o quanto uma coisa pode facilmente levar à outra.
Este momento não havia sido retratado na primeira publicação
de Reino do Amanhã, por extrapolar o limite de páginas. Portanto, só passamos a
conhecer este diálogo nos encadernados e edições especiais posteriores. É
lamentável, pois julgo que este é um momento chave para se entender a mensagem
principal de Reino do Amanhã. O que Orion faz é expor ao Super-homem um pouco
de sapiência política, que mentes privilegiadas como as de Edmund Burke e John
Adams já possuíam, mas que o personagem Super-homem aparentemente desconhecia.
Aquele que tem o poder para mudar,
também tem o poder para destruir. E,
por isso, os atos de mudança podem ser facilmente convertidos em atos de
destruição. Portanto, o que Mark Waid faz, de maneira brilhante, através do
personagem Orion, é denunciar a íntima associação que há entre mudança e destruição. Quando a primeira se apresenta, é bem provável que a
segunda também se apresente. Por isso, precisamos tomar muito cuidado com
nossos ímpetos de inovação. Esta é a mensagem de Orion para o Superman. Mas
este último, naquele momento, não conseguiu perceber o valor das palavras de
Orion. “Você não tem nada a me ensinar”, diz o Superman a Orion. O Superman
estava tão comprometido com sua cruzada, com seu desejo de regenerar a
humanidade, de mudar as coisas, que
ele se mostrava incapaz de perceber que foi este mesmo desejo de mudança e
inovação que provocou toda aquela situação caótica que agora ele, Superman,
buscava reverter. Pois foi por causa do desejo de mudança que a humanidade
havia adotado Magog como novo protetor e padrão moral.
O desfecho
de Reino do Amanhã provou que o mais sábio personagem da série – ao menos do
ponto de vista político – era Orion. As decisões inovadoras do Superman –
consistentes em construir um Gulag para metahumanos desajustos, sem qualquer
consentimento dos líderes políticos da humanidade – conduzem a uma batalha
final e arrasadora entre centenas de seres super poderosos. A humanidade,
amedrontada, lança explosivos nucleares sobre o local da batalha na esperança
de exterminar todos os metahumanos. Superman sobrevive, e, em um momento de
fúria, dirige-se ao prédio das Nações Unidas para se vingar. O reverendo Norman
McCay, conduzido pelo Espectro, consegue chegar a tempo e expor ao Super-homem
seus erros. O Super-homem havia passado muito tempo solitário. Havia esquecido
seu lado humano, e, por isso, quando retornou da aposentadoria, colocou-se numa
posição sobre-humana, como novo messias que deveria decidir sozinho o destino
da humanidade. Com isso – e estas não são palavras de Waid, mas minhas – ele se
comprometeu com a concretização de uma utopia que a própria humanidade não
teria condições de suportar.
Conclusão
Todos haviam errado. No passado, a humanidade comprometeu-se
com um ideal de mudança que excluía o Superman. No presente, o Superman se
comprometeu com um ideal de mudança que excluía a vontade da humanidade de suas
decisões políticas. Em ambos os casos, todos traíram suas antigas tradições,
seu antigo ideal de heroísmo, e, por isso, pode-se dizer que a humanidade traiu
o Superman no passado, e agora o Superman traía a si mesmo no presente. Mas no
fim, todos reconhecem seus erros e retomam sua antiga tradição, abandonada há
dez anos: a humanidade volta a valorizar o antigo herói, e o antigo herói
recupera sua relação de cooperação com a humanidade. Ele não mais se colocará acima da humanidade,
mas se posicionará ao lado dela, como seu nobre protetor e servidor. E para enfatizar a restauração da antiga aliança, ele retoma a identidade de Clark Kent.
Por essa
exposição, reitero minha posição segundo a qual entre as grandes mensagens de
Reino do Amanhã está aquela segundo a qual sempre devemos respeitar nossos
princípios tradicionais, e que sempre devemos ser cautelosos diante de nossos
ímpetos de inovação, uma vez que a mudança e a destruição são realidades
extremamente próximas e afins. Precisamente o que sempre ensinou aquele
conservadorismo esclarecido, inaugurado por Edmund Burke e brilhantemente
professado por Russell Kirk.
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