segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Reino do Amanhã: uma interpretação conservadora





O que é conservadorismo?

Creio que, quando se fala vulgarmente em “conservadorismo”, a principal ideia que vem à mente das pessoas é a de um tradicionalismo teimoso e fanático, resistente a toda e qualquer sugestão de progressos e mudanças sociais. Na verdade, esta é uma concepção caricata. Pois, como bem ensina Russell Kirk – provavelmente o maior conhecedor e estudioso do conservadorismo – em sua obra The conservative mind, ainda que seja bastante característico das ideias conservadoras a oposição às abruptas inovações políticas, morais e sociais, isso não ocorre por um estranho fetichismo no sentido de se opor a tudo que é novo, mas porque crê-se que o melhor desenvolvimento de uma sociedade se realiza através da equilibrada continuidade e no respeito pelas tradições, as quais, em sua maior parte, não resultam de caprichos e do arbítrio de acadêmicos idealistas, idiotas e solitários, mas surgem como reflexo da natureza concreta do ser humano. Disso se segue a crença dos conservadores em uma ordem moral transcendente, traduzida em princípios morais fixos, continuamente descobertos e reafirmados pelas tradições, e cuja alteração ou corrupção abala as estruturas mais seguras da sociedade, precipitando-a, assim, em um estado de confusão e desordem. Dito de modo mais simples, o verdadeiro conservador é aquele que preza as tradições em detrimento dos sonhos utópicos, não por uma resistência caprichosa ou patológica contra tudo aquilo que é novo, mas porque sabe que a voz da experiência passada é mais sábia do que a consciência da massa entusiasmada quando diante da expectativa de milagrosas mudanças.

As motivações conservadoras e a história de Reino do Amanhã

            Mas que tipo relação isso tudo teria com a graphic novel O Reino do Amanhã? Creio que uma relação bastante forte. Pois se fôssemos tentar apreender o argumento essencial que permeia o Reino do Amanhã, então, creio que eu, que seria este: que é extremamente nocivo abandonar nossas tradições morais, representadas por nossos heróis tradicionais, para então adotarmos, incentivados por algum entusiasmo sentimentalista e momentâneo, um novo código moral representado por novos heróis supostamente progressistas. Devo deixar claro que desconheço inteiramente as posições políticas adotadas por Mark Waid e Alex Ross, os criadores de Reino do Amanhã. E isso pouco me importa, uma vez que a obra verdadeiramente boa deve sempre se desligar das preferências subjetivas de seus autores para adquirir vida própria. Mas certamente Mark Waid e Alex Ross conceberam o Reino do Amanhã dentro de um espírito tipicamente conservador, no sentido de que sabiam que precisavam proteger e restaurar as antigas tradições das histórias em quadrinhos, pelas quais os heróis seguiam um código moral bastante rígido, em oposição aos novos “heróis”, moralmente ambíguos e psicologicamente doentes. O Reino do Amanhã fora concebido em meados dos anos 90, quando o Superman perdia cada vez mais sua popularidade, a versão de Frank Miller para o Batman era considerada a versão definitiva do mesmo (e, lamentavelmente, ainda é...), o Wolverine tinha muito mais destaque do que o Capitão América, e a editora Image – uma verdadeira fábrica do anti-heroísmo vazio e descartável – adquiria cada vez mais sucesso. Neste panorama, as histórias em quadrinhos já não eram mais alegorias morais, mas simples expressões artísticas e da imaginação destituídas de qualquer compromisso ético. Através de Reino do Amanhã, Mark Waid e Alex Ross buscavam reverter este quadro.
            Como já é bem sabido por qualquer fã de quadrinhos, toda a trama de Reino do Amanhã se passa em um futuro possível, onde há precisamente 10 anos, o maior de todos os heróis, o Super-homem, decidiu aposentar-se. A consequência de sua aposentadoria foi o afastamento de todos os heróis do passado e o surgimento de uma nova geração de vigilantes que, no melhor estilo Image, adotam uma postura neurótica e indiferente a princípios morais e à vida humana. Parecem lutar por lutar, em vez de lutar pelo que é certo. Assim, a população humana se vê cada vez mais ameaçada por esta geração de metahumanos desequilibrados.
            Mas o que realmente nos interessa até aqui é o motivo da aposentadoria do Super-homem. Por que teria ele desistido da humanidade? Na verdade, foi a humanidade que desistiu dele. No passado, Metrópolis viu surgir um novo protetor: Magog. A postura de Magog era aquela reverenciada pela massa de leitores dos anos 90: homicida implacável, com algumas cicatrizes e elementos cibernéticos em seu traje (qualquer semelhança com o Cable de Rob Liefeld não poderia ser mera coincidência). Magog era a suma do anti-heroísmo comercialmente vitorioso dos anos 90, tanto no aspecto estético quanto no aspecto psicológico. E, com a utilização de mais um recurso metalinguístico, a população de Metrópolis igualmente passa a adorar este novo protetor, bem como a aceitar seus métodos inovadores (e bastante violentos). Com isso, verifica-se a ruptura com a antiga tradição ética representada na figura do Super-homem: aos olhos dos cidadãos de Metrópolis, o velho “escoteiro” estava ultrapassado.
            Tomado pela decepção e amargura, o Super-homem se recolhe em sua Fortaleza da Solidão. Para enfatizar seu desligamento em relação à humanidade, ele até mesmo abandona a identidade de Clark Kent.

O conservadorismo se introduz na história...

            É precisamente neste momento que a tese conservadora se afirma em Reino do Amanhã. Pois de acordo com a história, ao dar as costas ao antigo (representado no personagem Super-homem) para abraçar de maneira entusiasmada o novo (representado no personagem Magog), o povo da Terra se coloca em uma rota que os conduzirá à desordem e destruição. Não nos enganemos: a população de Metrópolis não trocou simplesmente um herói pelo outro, mas revogou toda uma tradição, todo um conjunto de princípios, para substituí-los por uma concepção inteiramente nova sobre o que deveria ser o heroísmo. Mas de acordo com os conservadores, o elemento que dá sustentação, harmonia e coerência a uma sociedade, é precisamente o conjunto de seus princípios éticos tradicionais. Ao romper com estes princípios, a população de Metrópolis perdeu seu chão, seu ponto de sustentação, e a consequência disso foi o desmoronamento de seu edifício ético, político e social. Dez anos depois, tudo é medo, caos e desordem. A expressão “herói” adquire um sentido pejorativo, uma vez que os heróis atuais estão entre os principais agentes do caos. O reverendo Norman McCay começa a ter visões sobre o apocalipse. E Magog, com seu grupo de “heróis”, em um ato violento e imprudente, provoca uma onda de destruição que varre todo o estado do Kansas, e partes de Iwoa, Missouri e Nebraska. Milhões morrem.
            Com isso, o Super-homem se vê forçado a retornar. Seu retorno é épico, e certamente um dos pontos altos de toda a série: em super-velocidade, ele salva dezenas de pessoas em um teleférico ao mesmo tempo que detém sete metahumanos da nova geração que ali se digladiavam. Todos aplaudem e choram emocionados. Mas o reverendo Norman McCay continua a ter visões sobre o apocalipse, e por isso ele pressente que o retorno do Superman não irá resolver todos os problemas.

A sabedoria de Orion

            E McCay está certo. Diante de todo o caos, o Super-homem parece se ver forçado a adotar uma postura um tanto autoritária. Ele e sua Liga da Justiça realizam uma verdadeira cruzada pelo mundo, onde convertem metahumanos rebeldes e aprisionam aqueles que se recusam a seguir seu auxílio e liderança. O Super-homem é bem intencionado, mas suas ações são uma perfeita expressão do tradicionalista confuso que sabe que precisa reagir, mas não sabe ao certo como. As constantes sugestões da belicosa Mulher-Maravilha também não ajudam.
            Embora o Super-homem sempre prime pela razoabilidade e diálogo, sua amiga amazona encarna o lado mais doentio da mente reacionária: para a Mulher-Maravilha, parece que a resposta para todos os problemas é sempre a guerra. Do outro lado temos Batman, que adota uma postura de aristocrata arrogante e que se acha no direito de fazer a si mesmo a exceção de todas as regras. Assim, quando o Superman ressurge com a Liga da Justiça, Bruce Wayne rechaça os pedidos de auxílio e ajuda do Homem de Aço, sob o pretexto de que a Liga da Justiça é totalitária. Mas, enquanto acusa o Super-homem, ele controla através dos computadores de sua batcaverna centenas de vigilantes e androides que patrulham e vigiam Gotham City 24h por dia, convertendo, assim, uma cidade inteira em um estado policial onde todos sentem medo. E Batman ainda deseja estender seus domínios sobre outras cidades...
            Com a persistência das dificuldades em sua cruzada, o Super-homem vai até Apokolips procurar conselhos do deus Órion, que agora governa aquele mundo no lugar de seu pai, Darkseid. Superman se desaponta ao ver que, apesar do governo de Orion, Apokolips continua a ser o mesmo inferno. Neste momento ocorre este intrigante diálogo:

Superman: “Francamente, Orion. De todos os velhos aliados que eu tenho encontrado, você é o que me desapontou mais. Você é um deus. Você tem o poder de mudar seu mundo”.

Orion: “Ou de destruí-lo. Temo que você ficaria surpreso com o quanto uma coisa pode facilmente levar à outra.



Este momento não havia sido retratado na primeira publicação de Reino do Amanhã, por extrapolar o limite de páginas. Portanto, só passamos a conhecer este diálogo nos encadernados e edições especiais posteriores. É lamentável, pois julgo que este é um momento chave para se entender a mensagem principal de Reino do Amanhã. O que Orion faz é expor ao Super-homem um pouco de sapiência política, que mentes privilegiadas como as de Edmund Burke e John Adams já possuíam, mas que o personagem Super-homem aparentemente desconhecia. Aquele que tem o poder para mudar, também tem o poder para destruir. E, por isso, os atos de mudança podem ser facilmente convertidos em atos de destruição. Portanto, o que Mark Waid faz, de maneira brilhante, através do personagem Orion, é denunciar a íntima associação que há entre mudança e destruição. Quando a primeira se apresenta, é bem provável que a segunda também se apresente. Por isso, precisamos tomar muito cuidado com nossos ímpetos de inovação. Esta é a mensagem de Orion para o Superman. Mas este último, naquele momento, não conseguiu perceber o valor das palavras de Orion. “Você não tem nada a me ensinar”, diz o Superman a Orion. O Superman estava tão comprometido com sua cruzada, com seu desejo de regenerar a humanidade, de mudar as coisas, que ele se mostrava incapaz de perceber que foi este mesmo desejo de mudança e inovação que provocou toda aquela situação caótica que agora ele, Superman, buscava reverter. Pois foi por causa do desejo de mudança que a humanidade havia adotado Magog como novo protetor e padrão moral.
            O desfecho de Reino do Amanhã provou que o mais sábio personagem da série – ao menos do ponto de vista político – era Orion. As decisões inovadoras do Superman – consistentes em construir um Gulag para metahumanos desajustos, sem qualquer consentimento dos líderes políticos da humanidade – conduzem a uma batalha final e arrasadora entre centenas de seres super poderosos. A humanidade, amedrontada, lança explosivos nucleares sobre o local da batalha na esperança de exterminar todos os metahumanos. Superman sobrevive, e, em um momento de fúria, dirige-se ao prédio das Nações Unidas para se vingar. O reverendo Norman McCay, conduzido pelo Espectro, consegue chegar a tempo e expor ao Super-homem seus erros. O Super-homem havia passado muito tempo solitário. Havia esquecido seu lado humano, e, por isso, quando retornou da aposentadoria, colocou-se numa posição sobre-humana, como novo messias que deveria decidir sozinho o destino da humanidade. Com isso – e estas não são palavras de Waid, mas minhas – ele se comprometeu com a concretização de uma utopia que a própria humanidade não teria condições de suportar.

Conclusão

Todos haviam errado. No passado, a humanidade comprometeu-se com um ideal de mudança que excluía o Superman. No presente, o Superman se comprometeu com um ideal de mudança que excluía a vontade da humanidade de suas decisões políticas. Em ambos os casos, todos traíram suas antigas tradições, seu antigo ideal de heroísmo, e, por isso, pode-se dizer que a humanidade traiu o Superman no passado, e agora o Superman traía a si mesmo no presente. Mas no fim, todos reconhecem seus erros e retomam sua antiga tradição, abandonada há dez anos: a humanidade volta a valorizar o antigo herói, e o antigo herói recupera sua relação de cooperação com a humanidade. Ele não mais se colocará acima da humanidade, mas se posicionará ao lado dela, como seu nobre protetor e servidor. E para enfatizar a restauração da antiga aliança, ele retoma a identidade de Clark Kent.

            Por essa exposição, reitero minha posição segundo a qual entre as grandes mensagens de Reino do Amanhã está aquela segundo a qual sempre devemos respeitar nossos princípios tradicionais, e que sempre devemos ser cautelosos diante de nossos ímpetos de inovação, uma vez que a mudança e a destruição são realidades extremamente próximas e afins. Precisamente o que sempre ensinou aquele conservadorismo esclarecido, inaugurado por Edmund Burke e brilhantemente professado por Russell Kirk. 

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