domingo, 30 de julho de 2017

Heróis e imaginação moral


Conselho importantíssimo para os meus alunos. Quando você estiver lendo um livro, ouvindo música clássica ou vendo um filme, se alguém vier interrompê-lo com alguma conversinha banal do cotidiano, lance-lhe um olhar de fúria assassina e ordene-lhe, aos berros, que nunca mais faça isso. A atividade onírica é essencial para a saúde da inteligência, e aquelas três atividades são sonhos acordados dirigidos. Aquele que não consegue se transportar a um mundo imaginário e vivenciá-lo como real durante o tempo em que o contempla não poderá jamais elevar sua inteligência acima do círculo da banalidade e da mesmice. E quem o destitui dessa experiência, sobretudo se o faz de modo usual e frequente, NÃO É AMIGO DO SEU ESPIRITO”(1).

Este belo texto escrito pelo conhecido filósofo brasileiro Olavo de Carvalho (2) merece comentários neste blog, e por uma razão muito simples: ele sublinha a importância da nossa imaginação no desenvolvimento de nossas faculdades intelectuais, e, consequentemente, a importância dos instrumentos que excitam nossa capacidade imaginativa, tais como a música, livros e filmes.

No mesmo sentido, o filósofo Russell Kirk desenvolveu uma teoria sobre aquilo que ele chamou de “imaginação moral”, que basicamente consiste na capacidade de alcançar uma visão ética não adstrita aos fatores circunstanciais e pessoais. Daí ser tão necessário, por exemplo, o contato com a literatura em suas mais diversas expressões: seus personagens imaginários que vivem em circunstâncias imaginárias produzem em nós uma ampliação de nossas perspectivas, e servem para pôr em teste nossos juízos e princípios morais. Por este motivo, Kirk sempre demonstrou publicamente admiração pelo trabalho de fantasia e ficção de J.R.R. Tolkien. A literatura é um bom instrumento para se evitar a idiotia (que restringe o indivíduo a ele mesmo, isto é, ao pequeno território de suas experiências pessoais), e aqui convém citar, novamente, Olavo de Carvalho:

Nunca esquecer que a palavra "idiota" vem de "idios" = "o mesmo". O idiota nada concebe fora do seu círculo de experiências repetidas ou daquilo que se diz no seu grupo de referência. Em 99 por cento dos casos, o que lhe falta NÃO É capacidade de raciocínio, mas imaginação. Só em imaginação podemos ver e sentir como vêem e sentem pessoas diferentes de nós, em épocas e lugares diferentes dos nossos. Sem esse exercício, estamos presos em nós mesmos (3).

Embora os dois autores citados nunca tenham demonstrado (até onde sei) qualquer admiração por histórias em quadrinhos e seus personagens fictícios, sinto que cabe-me aqui constatar que alguns de nossos heróis populares também podem oferecer ao leitor um bom exercício de ampliação de suas perspectivas éticas e, consequentemente, de desenvolvimento de sua imaginação moral. Exemplo disso foi o último artigo que escrevi neste blog, onde procuro debater filosoficamente uma difícil questão moral – a saber, se a pena de morte seria justa – a partir das circunstâncias fictícias vividas pelos personagens Justiceiro e Demolidor. Se nos fecharmos apenas no horizonte tão estreito de nossa própria experiência pessoal, semelhantes problemas morais poderiam sequer ser concebidos, muito menos debatidos ou levados a sério.

Obviamente, não se pode olvidar o fato de que as histórias em quadrinhos estão inseridas em uma lógica de mercado e, por isso, muitas destas histórias e seus personagens não passam de produto descartável que existe apenas para ser consumido, e depois deixado de lado. Porém, minha orientação é no sentido de que algumas histórias e personagens conseguem oferecer ao leitor circunstâncias e conceitos instigantes o bastante para alimentar o sadio exercício da citada imaginação moral. Portanto, o uso frutífero e sadio  das histórias em quadrinhos e seus personagens pressupõe uma capacidade seletiva do leitor inteligente. Mas esta regra se aplica igualmente em relação a qualquer outra manifestação artística, intelectual ou literária, como a música, os romances e os trabalhos científicos e filosóficos.






1 Escrito por Olavo de Carvalho em seu perfil de Facebook, no dia 30-07-2017.
2 Olavo de Carvalho é amplamente odiado (desprezado, jamais) por grande parte daqueles que compõem nossa classe acadêmica. Um dos motivos mais fortes deste ódio é o aspecto culturalmente conservador do pensamento de Olavo. Mas em minha opinião, há um outro motivo ainda mais forte. Olavo de Carvalho é justamente aquilo que a maioria destes acadêmicos – com seus artigos e livros que consistem em repetições estéreis do pensamento alheio – apenas pretendem ser: um filósofo de verdade.
3 Escrito por Olavo de Carvalho em seu perfil de Facebook, no dia 30-07-2017.

domingo, 23 de julho de 2017

A ética de "Demolidor versus Justiceiro"


Superaventuras Marvel n. 92, publicada no Brasil em 1990. Esta edição traz o segundo encontro entre Demolidor e Justiceiro, contado sob duas diferentes perspectivas, uma escrita por Mike Baron, e outra por Ann Nocenti. A icônica arte da capa é de Whilce Portacio.


1. O PROBLEMA 

De um ponto de vista filosófico, talvez o clássico embate entre Demolidor e Justiceiro seja a mais frutífera rivalidade dos quadrinhos. Longe de ser uma trivialidade, na verdade cada um dos personagens citados representa, metaforicamente, um ponto de vista sobre qual deve ser o melhor método de aplicação da justiça.

Percebam que não há discordância significativa quanto à justiça em si: ambos concordam que a justiça deve ser rigorosamente punitiva e que, portanto, o culpado deve sofrer por seus atos. Eles apenas discordam quanto ao poder competente para a aplicação da pena. Em termos kantianos, poderíamos dizer que a máxima (isto é, o princípio geral) que norteia ambos é a mesma: a justiça deve ser honrada. Isso significa que o lesado deve ser restituído ou compensado, e aquele que pratica a lesão, deve ser punido. A discordância se dá apenas no nível das regras, e regras são imperativos de conduta mais restritos ou específicos do que as máximas. Por exemplo: se eu assumo como máxima “devo aperfeiçoar meus dons intelectuais”, posso assumir como regras  “devo ler livros”, ou “devo reservar 2h do meu dia para reflexões”, ou “devo me especializar em assuntos de matemática”, etc. As regras são imperativos que selecionam meios pelos quais chego à finalidade adotada na máxima. Portanto, as regras possuem um caráter circunstancial, relativo. As máximas, por outro lado, são absolutas. Eu posso escolher este ou aquele livro, esta ou aquela ciência para me especializar, dependendo de fatores como inclinação pessoal, condições materiais, etc. Posso escolher estudar biologia em lugar de medicina, e, apesar da distinção entre os objetos de estudo, o resultado em termos morais será o mesmo: estarei empregando um meio para chegar ao aperfeiçoamento intelectual almejado em minha máxima. Mas a máxima não pode ser relativizada. Ou eu consagro minha vida ao aperfeiçoamento intelectual, ou simplesmente me entrego à minha presente ignorância. 


Portanto, Justiceiro e Demolidor seguem exatamente a mesma máxima: “devo honrar a justiça”, ou, o que é exatamente a mesma coisa, “devo ser justo”, ou ainda “o inocente deve ser protegido, e o culpado, punido”, etc. Mas quanto à regra, há divergência entre os dois personagens. Tais regras técnicas que definem os meios adequados para se colocar em prática aquela máxima se expressam por meio de imperativos hipotéticos: "se quero ser justo, então devo...". A máxima que exige a justiça, por sua vez, expressa-se por um imperativo categórico: "devo ser justo!". Um imperativo categórico é válido por si mesmo, de maneira absoluta e universal. Não importam as circunstâncias, sempre devemos buscar a justiça. Mas um imperativo hipotético vale apenas relativamente às circunstâncias, e portanto não é universal. Pois dependendo de inúmeros fatores externos, os instrumentos ou mecanismos para se chegar à justiça podem variar. De um ponto de vista ético, somos todos obrigados a honrar a justiça. Portanto, a máxima da justiça é universal e se estende a todo o gênero humano. Mas os meios de alcançar a justiça serão definidos hipoteticamente, e um meio válido em uma circunstância, pode mostrar-se ineficaz em outras circunstâncias.

Logo, é interessante notar que, naquilo que há de mais essencial, definitivo e absoluto, Justiceiro e Demolidor não se distinguem. A diferença entre ambos se dá em um nível inessencial, apenas relativo.

Demolidor condena os métodos do Justiceiro com base em um argumento universalista. É possível que o Demolidor esteja confundindo máximas (que devem valer universalmente) com regras (que valem apenas hipoteticamente). 



2. QUAIS OS MEIOS MAIS ADEQUADOS PARA SE CHEGAR À JUSTIÇA? 

Demolidor acredita que o judiciário, constitucionalmente definido, deve ser o meio pelo qual a justiça é aplicada. Pensar de outro modo significaria tirar do Estado o monopólio da violência e, consequentemente, precipitaria a sociedade na anarquia (no sentido de inexistência de um poder central legalmente constituído e mantenedor da ordem).


No fundo, o Demolidor parece associar o valor da justiça com seu aspecto procedimental: sem processos, sem instituições jurídicas e políticas, sem convenções sociais, enfim, sem Estado, não há verdadeiramente justiça. A justiça se identifica com os meios pelos quais ela é aplicável, ou pelo menos depende destes meios em um nível tão elevado, a ponto de quase com eles se identificar. Anulados estes meios, anula-se a justiça. Eu não iria tão longe a ponto de afirmar que o Demolidor é um positivista que acredita apenas em uma justiça socialmente convencionada, mas não me parece absurdo afirmar que, em grande parte, suas crenças o aproximam muito de um positivista ortodoxo por ao menos sugerir uma ligação intrínseca entre a justiça e as instituições estatais que existem, enquanto instrumentos, para sua correta aplicação.

Demolidor explica ao Justiceiro o motivo de ter acabado de lhe dar uma surra: as leis do país devem ser respeitadas, e por isso somente o  Poder Judiciário legalmente constituído tem legitimidade para aplicar a justiça.

A princípio, Frank Castle parecia acreditar na mesma coisa. Mas agora, como Justiceiro, ele considera o judiciário falho e ineficiente demais. Por isso, a justiça deve ser honrada através de ações individuais independentes da intervenção do Estado. Como na visão do Justiceiro o Estado praticamente inexiste (por mostrar-se falho e benigno demais para com os piores elementos da sociedade), então ele deve recorrer à justiça natural, cuja aplicabilidade só encontra expressão na lei de talião: aquele que mata inocentes, deve ser morto.


Creio que a posição do Justiceiro seja mais clara que a do Demolidor. Ele acredita que o Estado é um simples meio ou instrumento para a aplicação ou conservação da justiça, a qual ele interpreta como sendo um valor de ordem natural, válido por si próprio, independente de acordos ou convenções sociais. Se  o Estado, enquanto simples meio ou instrumento, torna-se frágil ou ineficiente, então ele próprio não precisa mais ser conservado a qualquer custo. Pode ser jogado fora, tal como um instrumento que já não cumpre mais os propósitos para os quais fora criado. Obviamente, o Justiceiro não é um opositor ao Estado, e seu respeito por policiais é prova suficiente disso. Ele apenas não vê sentido em entregar totalmente nas mãos do Estado o “monopólio da violência” quando se trata de punir criminosos. Quando o Estado deixa o culpado livre de qualquer punição, então o indivíduo deve agir e fazer pela justiça aquilo que o próprio Estado mostrou-se incompetente em fazer: punir o criminoso que saiu impune graças a brechas nas leis e fragilidade do sistema.

Na visão do Justiceiro, o direito positivo com seu aparato processual é muitas vezes utilizado como instrumento de absolvição de culpados, em lugar de condenação dos mesmos. Nestas circunstâncias, o indivíduo deve recorrer à justiça natural, da qual todos os seres racionais estão conscientes, independentemente das convenções sociais e construções culturais que os rodeiam.

Se o Demolidor parece abrir concessões aos “positivistas”, o Justiceiro mostra-se definitivamente como um “jusnaturalista”. 



3. AFINAL, QUEM ESTÁ COM A RAZÃO?


"Uma das primeiras razões de ser da sociedade civil, e que se torna uma de suas regras fundamentais, é que nenhum homem deve ser juiz em causa própria. Por isso cada pessoa renunciou de pronto ao primeiro direito fundamental do homem isolado, ou seja, de julgar por si mesmo e de defender sua própria causa (...). Os homens não podem apreciar os direitos de um Estado organizado e de um desorganizado simultaneamente" - Edmund Burke


Apesar de eu sempre preferir o Justiceiro como personagem, sempre admiti pra mim mesmo que o Demolidor tem razão. Apesar de imperfeito, um sistema judicial legalmente constituído ainda é o meio mais eficiente de garantir o mínimo de ordem indispensável à aplicação de alguma justiça (não nos iludamos: justiça perfeita e total não é deste mundo).

Mas e quando o Estado não consegue sustentar nem mesmo aquela mínima ordem? Pois é precisamente isso que parece ocorrer no bairro "Cozinha do Inferno" (Hell's Kitchen) apresentado em alguns quadrinhos e na atual série do Demolidor (exibida pelo Netflix). A "Cozinha" é uma terra sem leis, semelhante àquelas pequenas cidades do Velho Oeste norte-americano tal como retratado em algumas produções cinematográficas, divididas entre um xerife impotente, alguns bons cidadãos oprimidos e amedrontados, e inúmeros foras-da-lei inescrupulosos e cruéis. Desnecessário dizer que, nestas circunstâncias, apenas a última classe de indivíduos leva a melhor. E nestas mesmas circunstâncias, o conservadorismo do advogado Matt Murdock, consistente no repúdio a todo radicalismo e na defesa da ordem baseada em leis positivadas, converte-se em um patético idealismo liberal (no sentido norte-americano do termo), que adquire sentido e beleza apenas no plano discursivo, mas que se desfaz, tal como bolhas de sabão, ao se chocar com a sólida camada constituída por uma realidade absurda, insensata e violenta.

Nestas circunstâncias tão extremas, apenas a impetuosidade justiceira de Frank Castle parece realmente fazer algum sentido. No início de sua evolução histórica, os Estado norte-americano teve de se impor violentamente sobre criminosos para adquirir o seu monopólio da violência, e tal imposição incluía até mesmo medidas  como enforcamentos públicos, que eram habituais. Enquanto o mesmo não ocorrer na "Cozinha do Inferno", a justiça só poderá encontrar aplicação através de ações violentas de cidadãos como Frank Castle. Em um mundo completamente dominado pelo crime e desordem, a morte de qualquer criminoso deve ser considerada como um ato de legítima defesa diretamente fundado no direito natural (conceito para o qual sempre recorremos quando o direito positivo está em crise).

Portanto, em um mundo mais ou menos ordeiro, o Demolidor teria a razão, e o Justiceiro teria de ser encarado como uma mera manifestação patológica. O Justiceiro seria visto como um lunático criminoso na Metrópolis do Super-Homem, para citar um exemplo. Mas o Super-Homem é sábio o bastante para constatar que a sombria e corrupta Gotham precisa de um Batman. Pois bem: em certas representações, a "Cozinha do Inferno" parece ser ainda mais suja, corrupta e cruel do que qualquer bairro de Gotham. Um bairro assim precisa de um Justiceiro. Dito de outro modo: o imperativo hipotético “se deseja fazer justiça, então deve respeitar o devido processo legal” parece ser aplicável na civilizada Metrópolis do Superman; mas na Cozinha do Inferno, converte-se em piada.

Para deixar clara minha posição: este ponto de discórdia entre Demolidor e Justiceiro só pode ser resolvido a partir de uma análise das circunstâncias. Se a Cozinha do Inferno é tão selvagem quanto parece aos olhos de Frank Castle, então o Justiceiro está com a razão. Mas se esta visão é potológica ou deturpada, e um mínimo de ordem existir neste ambiente, então o Demolidor está com a razão. Dito de outro modo, não se pode julgar que aquilo que o Justiceiro faz é intrinsecamente errado, e aquilo que o Demolidor faz é intrinsecamente correto (embora muitos, inclusive escritores de histórias em quadrinhos, pareçam pensar o contrário). Somente elementos circunstanciais ou extrínsecos podem oferecer aqui uma boa instância de julgamento. Pois num mundo onde o sistema de justiça pública organizada inexiste, exceto como abstração, a atitude de um Justiceiro justifica-se, e o louco passa a ser o Demolidor ao guiar-se por aquilo que ele imagina ser a realidade. Afinal, uma boa definição de loucura seria esta: assumir como realidade aquilo que é irreal. 

O Justiceiro faz pouco da fé do Demolidor no devido processo legal. Aos olhos do desiludido Frank Castle, em uma sociedade onde as leis têm pouca efetividade e as instituições jurídicas e políticas estão falidas, a crença de Murdock no processo legal converte-se em um "liberalismo furado". Nos EUA, o "liberalismo" é um termo associado às posições políticas defendidas pela esquerda daquele país, que em muitos aspectos coincidem com aquilo que chamamos no Brasil de "social democracia".Ao qualificar o Demolidor como "liberal", Frank Castle parece estar associando este termo à ingenuidade política. Estas críticas dirigidas aos esquerdistas norte-americanos não eram totalmente incomuns no Justiceiro escrito por Mike Baron. 

Um outro ponto que merece debate, é a ideia de que talvez a Justiça seja inseparável de seu método procedimental. Um julgamento realmente justo exigiria um juiz independente. Kant (só para citar um autor) foi enfático sobre isso. Frank Castle é capaz de ser esse tipo de juiz? Sinto-me inclinado a dizer "não". Por outro lado, o personagem parece ter jamais cometido qualquer erro de julgamento. Todos os criminosos por ele punidos são cuidadosamente investigados. Mas eis aí o aspecto mais fictício do personagem: esta suposta infalibilidade em seu julgamento. Na realidade, seria impossível um vigilante emocionalmente comprometido não cometer algum tipo de erro grave. Afinal, até mesmo o devido processo legal (onde o juiz estuda tranquilo e atentamente provas cuidadosamente produzidas por defesa e acusação) pode gerar sentenças errôneas. Imagine quando este julgamento se opera pelo juízo de um único vigilante! O advogado Matt Murdock teria aqui um excelente argumento contra seu rival.



4. UMA OUTRA QUESTÃO: É JUSTO TIRAR A VIDA DE UM ASSASSINO? 


"Aboli primeiro o homicídio no mundo: depois podereis abolir a pena de morte também" - Arthur Schopenhauer

Um ponto que merece exame é de se a morte de outra pessoa, mesmo que imposta como meio de punição, é algo intrinsecamente injusto. Em alguns momentos, Murdock parece ser absolutamente contrário a qualquer morte, em razão de sua fé cristã (embora eu, particularmente, sempre tenha interpretado o "não matarás" do decálogo como significando "não cometerás assassinato"; e a pena de morte aplicada ao criminoso em decorrência do assassinato por este último cometido não é, por sua vez, assassinato, mas punição).


E aqui impõe-se a seguinte questão: o que é, afinal, a justiça? Pensadores como Kant e Aristóteles sempre definiram a justiça em termos de proporcionalidade, em termos de merecimento proporcional ou igualdade. A justiça há de ser retributiva*. O senso comum parece endossar essa posição, uma vez que nas tradicionais figuras que simbolizam a justiça sempre está presente a imagem da balança, com seus dois pratos perfeitamente equilibrados. Portanto, para cada ação, há de haver uma reação proporcional. O mérito há de ser reconhecido e premiado; o demérito, há de ser censurado. Premiar o demérito e condenar o mérito implica em uma desproporção, e portanto é injusto. Logo, para sermos justos, deveremos premiar o mérito e condenar o demérito. E esta condenação, por sua vez, também deverá ser proporcional. Assim, o demérito mais grave deverá ser censurado com maior rigor do que o demérito menos grave. Dito de outro modo, a punição há de ser proporcional à gravidade do crime. Se assim não for, a punição será injusta, e portanto não será punição em sentido estrito (entendo que o conceito de punição seja indissociável do conceito de justiça). Seria o caso de certos crimes graves, como o roubo ou mesmo o homicídio, que fossem punidos com medidas socioeducativas. Isso não é punição, mas beneficência. Ou no caso de um roubo que fosse punido com a morte. Isso não é punição, mas vingança.

A questão agora é: é justo (isto é, proporcional) punir o homicídio por meio de outro castigo que não a morte? Vale dizer: existe retribuição proporcional à morte além da própria morte? É possível dizer, por exemplo, que uma prisão perpétua é igual à morte? Em meu modo de ver, não. A prisão é uma privação da liberdade, o que certamente implica em substancial diminuição das escolhas que o indivíduo pode fazer em vida. Mas ninguém se torna menos vivo somente porque está preso. Exceto, é claro, em termos bastante metafóricos, quando por exemplo alguém diz coisas como "a vida sem liberdade não é vida". Esta maneira poética de se expressar, embora tenha sua beleza, permanece poesia, e enquanto tal traduz uma mera hipérbole com a simples finalidade de enaltecer o dom da liberdade - que jamais deve ser subestimado - mas não deve ser levada a sério como um autêntico juízo descritivo da realidade. O fato de que a imensa maioria de pessoas presas continua a optar pela vida (mesmo quando presas em caráter perpétuo e nas piores condições de infraestrutura, como acontece em muitos presídios do Brasil), parece corroborar nossa opinião. Logo, a perda da liberdade, embora certamente implique em uma punição bastante rigorosa, no entanto, se comparada com a perda da vida, parece corresponder a um déficit menos significativo.

O próprio Demolidor, ao considerar a vida um valor incondicional e sagrado, está com isso colocando-a acima da liberdade, e implicitamente reconhecendo que retribuir o homicida com a pena de privação da liberdade implica pagar o mais (a vida da vítima que lhe fora tirada) através do menos (o cerceamento da liberdade daquele que matou a vítima), o que é desproporcional. E se é desproporcional, então é injusto.

Consequentemente, é a própria ideia de sacralidade da vida humana e seu valor incondicional que fundamenta a necessidade de compensação da vida pela vida. Afinal, somente na hipótese de a vida humana possuir um valor menor ou condicionado, é que poderíamos, com justiça, retribuir o assassinato com penas alternativas. Mas obviamente, este não é o caso.

Um outro argumento utilizado pelo Demolidor é o de que, ao eliminar a vida do assassino, elimina-se também suas chances de redenção. Esse é certamente um dos aspectos mais belos da série do Demolidor exibida pela Netflix: a constante referência à crença cristã de que a vida é uma jornada que oportuniza a redenção humana pelos seus erros e pecados. Em meu modo de ver, esta visão não é apenas correta de um ponto de vista teórico (afinal, é inegável que durante o curso de nossas vidas é plenamente possível o arrependimento e redenção de nossos próprios atos), mas também concede-nos, de um ponto de vista prático, um sentido para nossas vidas e uma mensagem de conforto, pois oferece esperança às almas torturadas pela culpa.

O problema é que não tenho certeza se isto poderia ter por consequência inviabilizar o argumento favorável à justiça retributiva no presente caso. Pois se assumirmos que justiça é proporção, então uma outra punição que não a execução do assassino continuaria a ser injusta, pois a indulgência ao mesmo sob a justificativa de que este teria que continuar a viver para redimir-se não deixaria de configurar uma premiação paga àquele que mereceria punição. Na verdade, não consigo imaginar aqui outra forma de redenção pessoal senão o oferecimento voluntário da própria vida como compensação pela vida que fora injustamente tomada. Qualquer outro desfecho não caracterizaria redenção, mas covardia.


Apenas uma objeção permanece realmente válida contra a pena de morte do homicida: uma vez que, empiricamente, qualquer processo judicial de conhecimento é imperfeito, a lei que permitisse a pena de morte poderia resultar na execução de inocentes erroneamente condenados. Porém, este argumento é condicionado por circunstâncias empíricas. Meu objetivo neste texto é o de avaliar a situação de um ponto de vista puramente racional, isto é, a partir de simples conceitos. Este texto não tem a pretensão de influenciar qualquer política legislativa, mas apenas de avaliar, de um ponto de vista puramente filosófico e, quando muito, sob condições empíricas ideais, qual seria a punição justa para o crime de homicídio. E neste território, minha conclusão é a de que a ideia de justiça exige retribuição, mesmo na difícil situação onde o tributo somente pode ser pago mediante a extinção da vida do criminoso assassino.

Obviamente, tais conclusões sempre sofrerão resistência por parte de pessoas de temperamento mais delicado, e que por isso julgam tirar a vida de um outro homem um tipo de punição grosseira demais. Mas não devemos nos esquecer que a justiça sempre fora reconhecida como a mais excelsa das virtudes, e como a própria etimologia da palavra indica, a prática da virtude requer enorme força interior. E assim como exige-se força para opor-se ao mal, a prática do bem às vezes exige força ainda maior. Não nos enganemos: a justiça não é uma disposição amena ou suave, mas uma virtude rígida e espinhosa. Aqui convém, mais uma vez, trazer à lembrança a imagem sempre associada a este digníssimo valor: ao lado da igualdade entre as balanças, há ainda a venda nos olhos (que simboliza a imparcialidade e a exclusão total de qualquer mecanismo emocional que possa corromper esta imparcialidade) e uma espada – instrumento de luta, e não de indulgência.  






* Aqui tomo justiça retributiva no sentido kantiano, e não aristotélico. No livro V da ética a nicômaco, Aristóteles condena a justiça retributiva no sentido de ser retaliativa (jus talionis, talião) porque entende que nem sempre será justo pagar o mal através do mesmo mal. Eu concordo com Aristóteles, na medida em que considero apenas essa noção restrita de retribuição, isto é, considerando que a retaliação seja sempre literal (seria certamente injusto, porque degradante e obsceno, se, por exemplo, submetêssemos um estuprador a uma pena de abusos sexuais). Mas em sua doutrina do direito, Kant oferece-nos um conceito mais lato de retribuição e retaliação. Primeiro, Kant identifica retaliação e retribuição (em lugar de considerar aquela como gênero específico desta). Segundo, ele considera que aqui, também, deve haver igualdade; mas igualdade de sofrimento, e não de atuação. Assim, por exemplo, está de acordo com a retribuição privar um ladrão de sua liberdade, em lugar de simplesmente submetê-lo a um ato de roubo. A intenção da retribuição não é tanto fazer o criminoso passar pela mesma situação da vítima, mas fazê-lo sofrer como a vítima. Portanto, a retribuição admite aplicações de seu princípio através de analogias. A única exceção a essa possibilidade, segundo Kant, é o homicídio, justamente por não haver qualquer analogia possível entre a vida e a morte. Na verdade, o que Kant faz é apenas corrigir a noção aristotélica de que retaliação deve ser estendida sempre literalmente. Eu diria que a justiça retributiva de Kant corresponde em grande parte à justiça corretiva (ou comutativa) de Aristóteles, onde o que interessa é restabelecer o equilíbrio entre duas pessoas, equilíbrio este que fora destruído quando um indivíduo tornou-se agressor (e com isso "ganhou") e outro tornou-se vítima (tornando-se o "perdedor" da relação). Tudo o que Kant faz é acrescentar um elemento subjetivo e outro objetivo a esta justiça comutativa, para convertê-la em justiça retributiva. Pelo aspecto subjetivo (que diz respeito ao motivo da aplicação da pena), Kant diz que a pena deve ser sempre aplicada pelo simples fato de que o criminoso delinquiu. Não é correto puni-lo para prevenir novos crimes (porque isso seria convertê-lo em objeto ou meio para se alcançar outros fins), ou para ressocializá-lo (porque isso seria tratá-lo como incapaz, como se o crime fosse um sucedâneo de sua incapacidade intelectual, e não de uma decisão livre sua). No aspecto objetivo (o tipo de pena a ser aplicada), deve haver uma correspondência igual entre crime e castigo, onde aquele não pode exceder este, e vice-versa. A retaliação não precisa ser necessariamente literal, podendo ser análoga. Portanto, neste ponto, a justiça retributiva de Kant é idêntica à comutativa de Aristóteles, com o acréscimo de que no homicídio, a retaliação precisa ser literal sob pena de romper a exigida igualdade, isto é, a exata correspondência entre crime e castigo.