Há um forte debate entre alguns leitores de quadrinhos sobre que espectro da política norte-americana o Capitão América representa: se liberal (esquerda) ou conservador (direita). Já emiti minha opinião a respeito, neste mesmo blog, no texto "why Captain America is conservative". Defendo a ideia de que Steve Rogers é um conservador, por representar os valores tradicionais dos EUA, sobretudo a liberdade individual (em oposição à igualdade, o valor orientador dos esquerdistas); enfim, por ser o mais "old fashioned" de todos os heróis, dedicado à defesa das "coisas permanentes", conforme célebre expressão de Russell Kirk. Poderia ainda acrescentar que ele representa com orgulho o patriotismo, em oposição à atual onda multiculturalista que na verdade esconde a "cultura do repúdio" (termo utilizado pelo pensador Roger Scruton) isto é: o ódio e má consciência sobre a própria cultura*. (Que o patriotismo não vale nada para os liberais de esquerda, comprova-o o fato de que quando o Superman renunciou a própria cidadania naquela polêmica historinha publicada na revista Action Comics, apenas os leitores e escritores conservadores se incomodaram com isso).
Mas até então, essas eram minhas interpretações e meus argumentos, que certamente não excluíam a possibilidade de sustentação de interpretações opostas. Afinal, super-heróis, assim como quaisquer mitos, são figuras alegóricas, que oferecem elementos para as mais diversas interpretações. Mas acho que finalmente temos uma prova de que o sentinela da liberdade não é nem um pouco esquerdista. Digo isso pois o maior sintoma de seu conservadorismo sustenta-se pelo fato de que os esquerdistas o odeiam. Refiro-me, em especial, ao atual escritor do personagem, Nick Spencer.
Spencer é um esquerdista fanático, que tem utilizado o nobre Sam Wilson, que é o atual substituto de Steve Rogers, como porta voz de suas próprias opiniões políticas. Spencer converteu um dos heróis mais tradicionais da Marvel -- e aqui me refiro ao Falcão, e não ao Capitão -- em algo que se aproxima muito mais de um ativista político do que um justiceiro. Em lugar de enfrentar o mal e combater vilões, que certamente são atitudes ingênuas e "maniqueístas" demais para o progressista hiper-intelectualizado Spencer, Wilson prefere dar declarações públicas sobre sua agenda política ou participar de paradas gays (é sério!). De vez em quando, Wilson enfrenta vilões... que são apresentados como caricaturas grotescas das propostas políticas do partido republicano**, como se o partido em questão não tivesse ampla representatividade eleitoral (no mínimo, quase a metade dos EUA) e que as pretensões de seus eleitores não fossem ao menos razoáveis. O Sam Wilson escrito por Nick Spencer tornou-se um feroz "partisan" que se compromete apenas com a defesa dos interesses da outra metade da população norte-americana, a metade liberal-democrata - embora o nome que ele ostente atualmente, "Capitão América", sugira a representação de todo os EUA***.
Apesar disso, Spencer preservou em Wilson alguma dignidade. O mesmo não pode ser dito sobre Steve Rogers, o Capitão América original. Com o anúncio do retorno de Rogers à identidade de Capitão América, vem uma bomba: será revelado, em história escrita por Nick Spencer, que Steve Rogers sempre fora um agente pertencente à Hidra (organização criminosa fictícia associada ao nazismo e que fora criada nos anos 60 como uma metáfora da infiltração comunista nos EUA), e que portanto esteve fingindo ser um herói todos esses anos. Pergunto-me se algum escritor de orientação conservadora teria coragem de fazer o mesmo. Mas progressistas adoram inovar. O problema é que só inovamos aquilo que já não nos agrada. O velho Capitão já não significa nada aos olhos de esquerdistas como Spencer. Daí o desejo de mudá-lo radicalmente, ou de brincar com a mitologia do personagem. Aliás, "mudança" e "radicalismo": eis aí duas palavras que definem todo esquerdismo, desde seu nascimento em meio a revolução francesa.
Spencer é um esquerdista fanático, que tem utilizado o nobre Sam Wilson, que é o atual substituto de Steve Rogers, como porta voz de suas próprias opiniões políticas. Spencer converteu um dos heróis mais tradicionais da Marvel -- e aqui me refiro ao Falcão, e não ao Capitão -- em algo que se aproxima muito mais de um ativista político do que um justiceiro. Em lugar de enfrentar o mal e combater vilões, que certamente são atitudes ingênuas e "maniqueístas" demais para o progressista hiper-intelectualizado Spencer, Wilson prefere dar declarações públicas sobre sua agenda política ou participar de paradas gays (é sério!). De vez em quando, Wilson enfrenta vilões... que são apresentados como caricaturas grotescas das propostas políticas do partido republicano**, como se o partido em questão não tivesse ampla representatividade eleitoral (no mínimo, quase a metade dos EUA) e que as pretensões de seus eleitores não fossem ao menos razoáveis. O Sam Wilson escrito por Nick Spencer tornou-se um feroz "partisan" que se compromete apenas com a defesa dos interesses da outra metade da população norte-americana, a metade liberal-democrata - embora o nome que ele ostente atualmente, "Capitão América", sugira a representação de todo os EUA***.
Apesar disso, Spencer preservou em Wilson alguma dignidade. O mesmo não pode ser dito sobre Steve Rogers, o Capitão América original. Com o anúncio do retorno de Rogers à identidade de Capitão América, vem uma bomba: será revelado, em história escrita por Nick Spencer, que Steve Rogers sempre fora um agente pertencente à Hidra (organização criminosa fictícia associada ao nazismo e que fora criada nos anos 60 como uma metáfora da infiltração comunista nos EUA), e que portanto esteve fingindo ser um herói todos esses anos. Pergunto-me se algum escritor de orientação conservadora teria coragem de fazer o mesmo. Mas progressistas adoram inovar. O problema é que só inovamos aquilo que já não nos agrada. O velho Capitão já não significa nada aos olhos de esquerdistas como Spencer. Daí o desejo de mudá-lo radicalmente, ou de brincar com a mitologia do personagem. Aliás, "mudança" e "radicalismo": eis aí duas palavras que definem todo esquerdismo, desde seu nascimento em meio a revolução francesa.
Aí alguém poderia me dizer: "sou de esquerda, e não concordo com as mudanças propostas por Spencer". A essa pessoa eu responderia que talvez ela não conheça muito bem suas próprias orientações políticas, pois acredito que Spencer está apenas sendo consequente com suas próprias convicções. Rogers é moralista, tradicionalista, patriótico, amante da liberdade individual, antipático a governos interventores (vide "Guerra Civil") e não hesita em derramar algum sangue inimigo quando estritamente necessário. Afinal, ele é um soldado. O que isso tem a ver com as agendas políticas dos eleitores de Bernie Sanders? E, nesta altura, outro poderia dizer: "não seja tolo. É obvio que esta mudança é passageira. Logo tudo se explica e o Capitão volta a ser o velho herói de sempre". Eu sei disso. É óbvio que tudo isso não passa de uma tentativa de vender revistas através de polêmicas grosseiras -- subterfúgio extremamente comum nos anos 90 -- que na verdade funciona como uma confissão tácita do próprio autor sobre sua própria incapacidade para escrever boas histórias nos limites das características do personagem. Mas é ingenuidade acreditar que esse tipo de registro pode ser simplesmente apagado por meio de alguma revelação estúpida que aparecerá na conclusão deste arco absurdo. O estrago já está feito. Muitos já leram o anúncio de que Rogers sempre fora nazista, e pouquíssimos lerão o final da história, que certamente redimirá o velho Capitão. Spencer sabe disso. E certamente não se importa.
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Notas
*Com isso, não desejo condenar, em termos absolutos, o multiculturalismo (e nem Roger Scruton o faz). Em certo sentido, o multiculturalismo não está em contradição com as tradições do ocidente, mas pode até mesmo ser considerado parte da cultura ocidental. Desde nossas origens civilizacionais, tanto na filosofia grega quanto no direito romano, vê-se como marca distintiva do ocidente a abertura para intercâmbios culturais que resultam em processos de aculturação. Este processo adquiriu força com o advento do cristianismo, com sua pregação da lei do amor ao próximo e a doutrina segundo a qual todos são igualmente filhos do mesmo Deus. Depois tivemos as filosofias universalistas do iluminismo e o amadurecimento da Antropologia, cujo pilar principiológico é o relativismo cultural (que significa nada mais, nada menos, que não pode haver critérios comprovadamente científicos para se definir se há culturas superiores ou inferiores, restando ao antropólogo a constatação de que há apenas culturas diferentes entre si). O próprio EUA foi historicamente formado pela imigração, razão pela qual a antropologia norte-americana é tão dedicada à investigação dos fenômenos de aculturação. Portanto, faz parte da tradição ocidental o respeito à cultura estrangeira, e até mesmo a adoção gradual de costumes outrora estranhos. Porém, jamais devemos nos esquecer que a identidade cultural do ocidente é a conditio sine qua non de todo multiculturalismo sadio. Os EUA, para citá-los novamente como exemplo, jamais teria se constituído a partir de tantas imigrações, não fosse pela sua herança cultural do liberalismo clássico-inglês (que não deve ser confundido com o sentido que a palavra "liberalismo" tem adquirido nos EUA, que em muitos aspectos significa até mesmo seu oposto). É justamente isso que parece ser esquecido pela atual onda esquerdista do multiculturalismo, que converte os fenômenos de aculturação, outrora espontâneos, em uma ideologia forçada, causando, muitas vezes, uma violência aos hábitos e costumes locais - vale dizer, à própria cultura. Por isso, hoje assistimos à projeção destes "discursos feitos" - sempre belos na sua superfície, mas horrendos em seus fundamentos - que pregam a inclusão forçada de refugiados do oriente médio, ainda que muitas comunidades ocidentais não estejam prontas para isso. Exemplo disso é o pequeno vilarejo de Sumte, na Alemanha, que comporta cerca de 100 habitantes, mas que fora forçado a receber mais de 700 refugiados da Síria e de outros países (cf. http://www.independent.co.uk/news/world/europe/refugee-crisis-german-village-sumte-shows-the-reality-behind-angela-merkel-s-open-door-policy-with-a6724741.html e http://www.gq-magazine.co.uk/article/germans-response-to-the-migrant-crisis-is-fanning-the-flames-of-european-fascism). Atualmente, os EUA também enfrentam uma crise da política de imigração, principalmente como resultado do alto índice de imigração ilegal oriunda do México e o descontrole do tráfico de drogas que ocorre a partir das fronteiras destes dois países. É óbvio que os EUA estão enfrentando problemas sociais e econômicos decorrentes disso, mas os defensores do multiculturalismo politicamente ideologizado insistem em simplesmente ignorá-los, e taxar de "fascistas" ou "racistas" as crescentes camadas da comunidade que na verdade expressam pretensões que são, no mínimo, razoáveis. O resultado é uma divisão cultural extremamente acentuada, a promoção de discursos de ódio e a potencialização de políticos histriônicos como Donald Trump. Em suma, quando o multiculturalismo deixa de ser tratado como um processo espontâneo de intercâmbio cultural, para ser imposto como agenda política, o resultado é a agressão daquela cultura (a ocidental) que tem sido, em todos estes anos de civilização humana, a própria condição do multiculturalismo. Por tudo isso, arrisco dizer que no fundamento do multiculturalismo ideológico se encontra aquela "boa consciência sobre o estrangeiro", como resultado psicológico da "má consciência sobre si mesmo", conforme as expressões do antropólogo francês François Laplantine. Isto é, o esquerdista abraça a cultura estrangeira menos por amor a ela, do que por ódio de sua própria cultura, que ele secretamente deseja desintegrar e destruir.
**cf. http://www.breitbart.com/big-hollywood/2015/10/16/captain-americas-new-villains-conservatives/
*** Spencer diz que os republicanos são o "mal". cf. https://douglasernstblog.com/2016/05/23/nick-spencer-calls-republicans-evil-marvel-industry-journalists-yawn-as-customers-walk/. Isso significa que, para Spencer, uma parte significativa do povo norte-americano e, consequentemente, muitos leitores do Capitão América, são terríveis vilões, simplesmente porque nos atuais debates políticos que têm em vista questões bastante problemáticas -- onde ambos os lados podem propor soluções igualmente razoáveis -- tais pessoas não têm concordado com suas opiniões. Fácil perceber o quanto Spencer considera a si mesmo um ente superior que detém o monopólio sobre a Justiça, de modo que a contrariedade às suas opiniões constitui um sólido argumento para a qualificação de alguém como "vilão". Conforme apontei no corpo do texto, essa unilateralidade ideológica de Spencer tem tido reflexos negativos no personagem Sam Wilson, que aparentemente representa apenas o público liberal, enquanto vilaniza os conservadores. Note-se o quanto esta representação é inteiramente arbitrária, porque viola a essência do Capitão América. Quando criado nos anos 40 por Simon e Kirby, o Capitão refletia um país unido em torno de um consenso: o de que qualquer governo autoritário como o Nacional Socialista era intrinsecamente mau. Os debates políticos ainda se davam sobre se os EUA deveriam ou não entrar na guerra. Mas, em geral, ninguém discordava de que a ideologia nazista era cruel. Tais debates terminaram com o ataque a Pearl Harbor, e assim os EUA ingressavam oficialmente na Segunda Grande Guerra. Portanto, o personagem fora criado dentro de uma atmosfera de consenso e identidade cultural, e isso se refletiu em sua simbologia de representatividade do povo americano em geral. Por outro lado, devo reconhecer que vejo o Capitão como um personagem predominantemente conservador. Mas ao dizer isso, não estou afirmando que o mesmo existe para defender agendas republicanas e caricaturizar agendas democratas. Ser conservador não significa necessariamente ser apoiador de um dos dois grandes partidos dos EUA, mas comprometer-se com a ideia de que as tradições e o passado são a grande bússola da decisão prudente; com a ideia de que os valores da ordem e liberdade devem ser compatibilizados na vida social, e que certamente a liberdade é amplamente superior à igualdade material; e, por fim, com a ideia de que o fomento das virtudes privadas de cada cidadão deve ser muito mais exaltado do que o apelo à ingerência governamental nos assuntos públicos. Na minha maneira de entendê-lo, parece-me que o Capitão América representa exatamente estas ideias. E como qualquer leitor inteligente pode perceber, tais ideias são latas o bastante para possuir um apelo quase universal, de modo que mesmo liberais mais moderados possam com elas se identificar. O problema começa quando abandonamos o sólido terreno dos princípios gerais para adentrarmos a polêmicas circunstanciais e específicas sobre as quais conservadores e liberais tem entrado em guerra. Eu certamente seria contrário a uma história do Capitão América em que feministas pro choice fossem mostradas como vilãs inescrupulosas (por mais que elas me causem náuseas), ou que eleitores de Bernie Sanders fossem apresentados como reprodutores de discursos stalinistas. Um herói de quadrinhos certamente não oferece o melhor mecanismo para tratar questões como essas. Além disso, uma história do Capitão América deveria concentrar-se nos pontos que unem os americanos, em lugar de fomentar a divisão entre eles (precisamente o que Spencer parece desejar). Afinal, o personagem representa um consenso forjado em torno de um ideal -- "the american dream".