quinta-feira, 26 de maio de 2016

Esquerdista converte o Capitão América em personagem nazista (ou: Por que o Capitão América é conservador, parte 2)


Há um forte debate entre alguns leitores de quadrinhos sobre que espectro da política norte-americana o Capitão América representa: se liberal (esquerda) ou conservador (direita). Já emiti minha opinião a respeito, neste mesmo blog, no texto "why Captain America is conservative". Defendo a ideia de que Steve Rogers é um conservador, por representar os valores tradicionais dos EUA, sobretudo a liberdade individual (em oposição à igualdade, o valor orientador dos esquerdistas); enfim, por ser o mais "old fashioned" de todos os heróis, dedicado à defesa das "coisas permanentes", conforme célebre expressão de Russell Kirk. Poderia ainda acrescentar que ele representa com orgulho o patriotismo, em oposição à atual onda multiculturalista que na verdade esconde a "cultura do repúdio" (termo utilizado pelo pensador Roger Scruton) isto é: o ódio e má consciência sobre a própria cultura*. (Que o patriotismo não vale nada para os liberais de esquerda, comprova-o o fato de que quando o Superman renunciou a própria cidadania naquela polêmica historinha publicada na revista Action Comics, apenas os leitores e escritores conservadores se incomodaram com isso). 

Mas até então, essas eram minhas interpretações e meus argumentos, que certamente não excluíam a possibilidade de sustentação de interpretações opostas. Afinal, super-heróis, assim como quaisquer mitos, são figuras alegóricas, que oferecem elementos para as mais  diversas interpretações. Mas acho que finalmente temos uma prova de que o sentinela da liberdade não é nem um pouco esquerdista. Digo isso pois o maior sintoma de seu conservadorismo sustenta-se pelo fato de que os esquerdistas o odeiam. Refiro-me, em especial, ao atual escritor do personagem,  Nick Spencer.

Spencer é um esquerdista fanático, que tem utilizado o nobre Sam Wilson, que é o atual substituto de Steve Rogers, como porta voz de suas próprias opiniões políticas. Spencer converteu um dos heróis mais tradicionais da Marvel -- e aqui me refiro ao Falcão, e não ao Capitão -- em algo que se aproxima muito mais de um ativista político do que um justiceiro. Em lugar de enfrentar o mal e combater vilões, que certamente são atitudes ingênuas e "maniqueístas" demais para o progressista hiper-intelectualizado Spencer, Wilson prefere dar declarações públicas sobre sua agenda política ou participar de paradas gays (é sério!). De vez em quando, Wilson enfrenta vilões... que são apresentados como caricaturas grotescas das propostas políticas do partido republicano**, como se o partido em questão não tivesse ampla representatividade eleitoral (no mínimo, quase a metade dos EUA) e que as pretensões de seus eleitores não fossem ao menos razoáveis. O Sam Wilson escrito por Nick Spencer tornou-se um feroz "partisan" que se compromete apenas com a defesa dos interesses da outra metade da população norte-americana, a metade liberal-democrata - embora o nome que ele ostente atualmente, "Capitão América", sugira a representação de todo os EUA***.

Apesar disso, Spencer preservou em Wilson  alguma dignidade. O mesmo não pode ser dito sobre Steve Rogers, o Capitão América original. Com o anúncio do retorno de Rogers à identidade de Capitão América, vem uma bomba: será revelado, em história escrita por Nick Spencer, que Steve Rogers sempre fora um agente pertencente à Hidra (organização criminosa fictícia associada ao nazismo e que fora criada nos anos 60 como uma metáfora da infiltração comunista nos EUA), e que portanto esteve fingindo ser um herói todos esses anos. Pergunto-me se algum escritor de orientação conservadora teria coragem de fazer o mesmo. Mas progressistas adoram inovar. O problema é que só inovamos aquilo que já não nos agrada. O velho Capitão já não significa nada aos olhos de esquerdistas como Spencer. Daí o desejo de mudá-lo radicalmente, ou de brincar com a mitologia do personagem. Aliás, "mudança" e "radicalismo": eis aí duas palavras que definem todo esquerdismo, desde seu nascimento em meio a revolução francesa. 

Aí alguém poderia me dizer: "sou de esquerda, e não concordo com as mudanças propostas por Spencer". A essa pessoa eu responderia que talvez ela não conheça muito bem suas próprias orientações políticas, pois acredito que Spencer está apenas sendo consequente com suas próprias convicções. Rogers é moralista, tradicionalista, patriótico, amante da liberdade individual, antipático a governos interventores (vide "Guerra Civil") e não hesita em derramar algum sangue inimigo quando estritamente necessário. Afinal, ele é um soldado. O que isso tem a ver com as agendas políticas dos eleitores de Bernie Sanders? E, nesta altura, outro poderia dizer: "não seja tolo. É obvio que esta mudança é passageira. Logo tudo se explica e o Capitão volta a ser o velho herói de sempre". Eu sei disso. É óbvio que tudo isso não passa de uma tentativa de vender revistas através de polêmicas grosseiras -- subterfúgio extremamente comum nos anos 90 -- que na verdade funciona como uma confissão tácita do próprio autor sobre sua própria incapacidade para escrever boas histórias nos limites das características do personagem. Mas é ingenuidade acreditar que esse tipo de registro pode ser simplesmente apagado por meio de alguma revelação estúpida que aparecerá na conclusão deste arco absurdo. O estrago já está feito. Muitos já leram o anúncio de que Rogers sempre fora nazista, e pouquíssimos lerão o final da história, que certamente redimirá o velho Capitão. Spencer sabe disso. E certamente não se importa.



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Notas

*Com isso, não desejo condenar, em termos absolutos, o multiculturalismo (e nem Roger Scruton o faz). Em certo sentido, o multiculturalismo não está em contradição com as tradições do ocidente, mas pode até mesmo ser considerado parte da cultura ocidental. Desde nossas origens civilizacionais, tanto na filosofia grega quanto no direito romano, vê-se como marca distintiva do ocidente a abertura para intercâmbios culturais que resultam em processos de aculturação. Este processo adquiriu força com o advento do cristianismo, com sua pregação da lei do amor ao próximo e a doutrina segundo a qual todos são igualmente filhos do mesmo Deus. Depois tivemos as filosofias universalistas do iluminismo e o amadurecimento da Antropologia, cujo pilar principiológico é o relativismo cultural (que significa nada mais, nada menos, que não pode haver critérios comprovadamente científicos para se definir se há culturas superiores ou inferiores, restando ao antropólogo a constatação de que há apenas culturas diferentes entre si). O próprio EUA foi historicamente formado pela imigração, razão pela qual a antropologia norte-americana é tão dedicada à investigação dos fenômenos de aculturação. Portanto, faz parte da tradição ocidental o respeito à cultura estrangeira, e até mesmo a adoção gradual de costumes outrora estranhos. Porém, jamais devemos nos esquecer que a identidade cultural do ocidente é a conditio sine qua non de todo multiculturalismo sadio. Os EUA, para citá-los novamente como exemplo, jamais teria se constituído a partir de tantas imigrações, não fosse pela sua herança cultural do liberalismo clássico-inglês (que não deve ser confundido com o sentido que a palavra "liberalismo" tem adquirido nos EUA, que em muitos aspectos significa até mesmo seu oposto). É justamente isso que parece ser esquecido pela atual onda esquerdista do multiculturalismo, que converte os fenômenos de aculturação, outrora espontâneos, em uma ideologia forçada, causando, muitas vezes, uma violência aos hábitos e costumes locais - vale dizer, à própria cultura. Por isso, hoje assistimos à projeção destes "discursos feitos" - sempre belos na sua superfície, mas horrendos em seus fundamentos - que pregam a inclusão forçada de refugiados do oriente médio, ainda que muitas comunidades ocidentais não estejam prontas para isso. Exemplo disso é o pequeno vilarejo de Sumte, na Alemanha, que comporta cerca de 100 habitantes, mas que fora forçado a receber mais de 700 refugiados da Síria e de outros países (cf. http://www.independent.co.uk/news/world/europe/refugee-crisis-german-village-sumte-shows-the-reality-behind-angela-merkel-s-open-door-policy-with-a6724741.html e http://www.gq-magazine.co.uk/article/germans-response-to-the-migrant-crisis-is-fanning-the-flames-of-european-fascism). Atualmente, os EUA também enfrentam uma crise da política de imigração, principalmente como resultado do alto índice de imigração ilegal oriunda do México e o descontrole do tráfico de drogas que ocorre a partir das fronteiras destes dois países. É óbvio que os EUA estão enfrentando problemas sociais e econômicos decorrentes disso, mas os defensores do multiculturalismo politicamente ideologizado insistem em simplesmente ignorá-los, e taxar de "fascistas" ou "racistas" as crescentes camadas da comunidade que na verdade expressam pretensões que são, no mínimo, razoáveis. O resultado é uma divisão cultural extremamente acentuada, a promoção de discursos de ódio e a potencialização de políticos histriônicos como Donald Trump. Em suma, quando o multiculturalismo deixa de ser tratado como um processo espontâneo de intercâmbio cultural, para ser imposto como agenda política, o resultado é a agressão daquela cultura (a ocidental) que tem sido, em todos estes anos de civilização humana, a própria condição do multiculturalismo. Por tudo isso, arrisco dizer que no fundamento do multiculturalismo ideológico se encontra aquela "boa consciência sobre o estrangeiro", como resultado psicológico da "má consciência sobre si mesmo", conforme as expressões do antropólogo francês François Laplantine. Isto é, o esquerdista abraça a cultura estrangeira menos por amor a ela, do que por ódio de sua própria cultura, que ele secretamente deseja desintegrar e destruir. 

**cf. http://www.breitbart.com/big-hollywood/2015/10/16/captain-americas-new-villains-conservatives/

*** Spencer diz que os republicanos são o "mal". cf. https://douglasernstblog.com/2016/05/23/nick-spencer-calls-republicans-evil-marvel-industry-journalists-yawn-as-customers-walk/. Isso significa que, para Spencer, uma parte significativa do povo norte-americano e, consequentemente, muitos leitores do Capitão América, são terríveis vilões, simplesmente porque nos atuais debates políticos que têm em vista questões bastante problemáticas -- onde ambos os lados podem propor soluções igualmente razoáveis -- tais pessoas não têm concordado com suas opiniões. Fácil perceber o quanto Spencer considera a si mesmo um ente superior que detém o monopólio sobre a Justiça, de modo que a contrariedade às suas opiniões constitui um sólido argumento para a qualificação de alguém como "vilão". Conforme apontei no corpo do texto, essa unilateralidade ideológica de Spencer tem tido reflexos negativos no personagem Sam Wilson, que aparentemente representa apenas o público liberal, enquanto vilaniza os conservadores. Note-se o quanto esta representação é inteiramente arbitrária, porque viola a essência do Capitão América. Quando criado nos anos 40 por Simon e Kirby, o Capitão refletia um país unido em torno de um consenso: o de que qualquer governo autoritário como o Nacional Socialista era intrinsecamente mau. Os debates políticos ainda se davam sobre se os EUA deveriam ou não entrar na guerra. Mas, em geral, ninguém discordava de que a ideologia nazista era cruel. Tais debates terminaram com o ataque a Pearl Harbor, e assim os EUA ingressavam oficialmente na Segunda Grande Guerra. Portanto, o personagem fora criado dentro de uma atmosfera de consenso e identidade cultural, e isso se refletiu em sua simbologia de representatividade do povo americano em geral. Por outro lado, devo reconhecer que vejo o Capitão como um personagem predominantemente conservador. Mas ao dizer isso, não estou afirmando que o mesmo existe para defender agendas republicanas e caricaturizar agendas democratas.  Ser conservador não significa necessariamente ser apoiador de um dos dois grandes partidos dos EUA, mas comprometer-se com a ideia de que as tradições e o passado são a grande bússola da decisão prudente; com a ideia de que os valores da ordem e liberdade devem ser compatibilizados na vida social, e que certamente a liberdade é amplamente superior à igualdade material; e, por fim, com a ideia de que o fomento das virtudes privadas de cada cidadão deve ser muito mais exaltado do que o apelo à ingerência governamental nos assuntos públicos. Na minha maneira de entendê-lo, parece-me que o Capitão América representa exatamente estas ideias. E como qualquer leitor inteligente pode perceber, tais ideias são latas o bastante para possuir um apelo quase universal, de modo que mesmo liberais mais moderados possam com elas se identificar. O problema começa quando abandonamos o sólido terreno dos princípios gerais para adentrarmos a polêmicas circunstanciais e específicas sobre as quais conservadores e liberais tem entrado em guerra. Eu certamente seria contrário a uma história do Capitão América em que feministas pro choice fossem mostradas como vilãs inescrupulosas (por mais que elas me causem náuseas), ou que eleitores de Bernie Sanders fossem apresentados como reprodutores de discursos stalinistas. Um herói de quadrinhos certamente não oferece o melhor mecanismo para tratar questões como essas. Além disso, uma história do Capitão América deveria concentrar-se nos pontos que unem os americanos, em lugar de fomentar a divisão entre eles (precisamente o que Spencer parece desejar). Afinal, o personagem representa um consenso forjado em torno de um ideal -- "the american dream". 

domingo, 10 de abril de 2016

A Guerra Civil da Marvel e suas tendências políticas


Como o filme "Capitão América: Guerra Civil" está a poucos dias de estrear, vou postar aqui algumas das minhas inúteis considerações (mas altamente instigantes para umas 10 pessoas no mundo inteiro, das quais ao menos 9 eu ainda não conheço) onde misturo política e quadrinhos referentes à HQ que inspira o filme citado.

No ótimo documentário "superheroes: a never ending battle", Grant Morrison diz que o Capitão América da HQ "Guerra Civil" é um "liberal", no sentido norte-americano do termo, por se opor ao governo. Errado, Morrison. "Liberais", neste sentido, não são opositores do governo. Ao contrário: desde o New Deal de Roosevelt, liberais americanos se caracterizam por impor ao governo responsabilidade cada vez maior pela promoção - através das chamadas "ações afirmativas" ou interventoras - do welfare state (que é a ideologia utilitarista da maior felicidade ou prosperidade possível para o maior número possível). Portanto, esses liberais desejam AUMENTAR o governo, e não diminuí-lo. O valor que norteia suas ações é, em primeiro lugar, a igualdade material, a qual só pode ser obtida através de intervenções estatais, que pressupõem um estado bem crescidinho.

Mas o Capitão desta HQ é um paladino da liberdade individual (que, diga-se de passagem, é e sempre será causa de desigualdades materiais), e por isso ele protesta de modo extremamente brutal contra a intromissão do governo (apoiado pelo Tony Stark) na liberdade do indivíduo de escolher vestir-se de forma exótica e quebrar a cara de criminosos, sem precisar prestar contas a ninguém por isso. Parece-me que esta atitude aproxima o Steve Rogers dos LIBERTÁRIOS norte-americanos, que, em grande medida, compõem as fileiras do Tea Party (e que são os maiores inimigos dos liberais e de certos roteiristas da Marvel Comics que escrevem apaixonadamente... o Capitão América).

Portanto, estou retificando parcialmente o que anteriormente havia dito neste mesmo blog. No meu post "Why Captain America is Conservative", eu usei a "Guerra Civil" para ilustrar meu ponto de vista de acordo com o qual Steve Rogers é conservador. Embora eu ainda veja o Capitão América como sendo predominantemente conservador (afinal, não podemos esquecer que Rogers é, em essência, um soldado que luta por seu país, com uma viva consciência sobre o dever patriótico, e bastante motivado por costumes usuais em gerações passadas), no entanto sua atuação em Guerra Civil é bastante libertária. Não vejo tanto Burke ou John Adams ali; vejo muito mais Thomas Paine. É certo que muitos têm dificuldade de distinguir, atualmente, libertários e conservadores nos EUA. Mas isso não anula a distinção que de fato há entre estas duas tendências. Penso que o melhor critério de distinção está na identificação dos valores perseguidos por cada tendência. Libertários - que na verdade são representantes contemporâneos dos liberais clássicos europeus - colocam a liberdade individual acima de qualquer outro valor, enquanto que conservadores colocam a ordem ao lado da liberdade (e conservadores como o inglês Roger Scruton até mesmo colocam a ordem acima de qualquer valor).

Por outro lado, sempre pensei no Stark como o verdadeiro liberal da trama, por apoiar intromissões governamentais onde outrora não existiam, o que é uma forma de progressismo (e o liberalismo norte-americano é o mesmo que progressismo). Mas mudei de ideia. Ele é um conservador, uma vez que o valor que o impulsiona é a ordem, que conservadores têm em alta conta, colocando-a até mesmo ao lado da liberdade (e não muito abaixo, como geralmente fazem os libertários). O curioso é que eu me considero conservador, mas não consigo deixar de simpatizar muito mais com o Capitão América do que com o Homem-de-Ferro.

Mas enfim... nenhum dos dois grandes protagonistas em questão é liberal. Na verdade, acho que o único super-herói realmente liberal que conheço é o arqueiro-verde. A mulher-gato que aparece na HQ "Injustice: gods among us" também é liberal. Mas quem se importa com as tendências políticas da mulher-gato (ou com todas essas coisas que acabei de escrever)?

Mulher-gato reproduzindo, quase ipsis litteris, o discurso do partido democrata na HQ "Injustice: Gods Among Us". Liberais estão mal representados nos quadrinhos, não?

domingo, 27 de março de 2016

Minha opinião sobre "Batman v Superman" (sem spoilers)

- Impressão geral sobre o filme (texto escrito no período de seu lançamento)

Quando foi anunciado, há algum tempo atrás, que a sequência de Man of Steel se daria por meio de um enfrentamento direto entre Batman e Super-Homem, eu decidi me resignar diante do fato inevitável de que meu herói favorito (refiro-me ao Super-Homem) seria exposto ao ridículo nas salas de cinema. Pois em uma luta entre Batman e Super-Homem, apenas o primeiro pode sair ganhando: se o Super-Homem vence não há mérito nenhum, uma vez que o Batman é um homem comum; mas se o Super-Homem perde, uma enorme vergonha recai sobre o Homem de aço, uma vez que ele foi derrotado... por um homem comum. Por isso, quando se trata da temática de quadrinhos "fulano versus cicrano", o "Batman versus Super-Homem" aproveita apenas aos fãs do morcego. Se for para apreciar esse gênero de histórias, os fãs do Super-Homem querem vê-lo enfrentar o Lanterna Verde, o Caçador de Marte, o Capitão Marvel, o Thor, Hulk, etc. Querem batalhas épicas entre peso-pesados. 


Para piorar a situação, divulgou-se ainda que a fonte de inspiração seria aquela famosa história escrita por Frank Miller (sobre a qual já me manifestei aqui neste blog). Mais adiante, o diretor Zack Snyder declarou que o filme teria mais espaço para o Batman, que precisaria ser reintroduzido no novo universo cinematográfico da DC. Foi quando constatei decididamente: "Batman v Superman" será um filme anti-superman, dedicado ao Batman.
Mas depois de assistir ao filme, tenho que admitir que, para minha surpresa, "Batman v Superman" é um dos melhores filmes de super-heróis dos últimos anos. 
Por quê? O filme em questão simplesmente cumpre todos os requisitos que devem ser exigidos em um trabalho do gênero. Há moralidade, coragem, altruísmo e ação. Há também alguns insights psicológicos interessantes, relativos à situação hipotética criada em Man of Steel: afinal, o que sentiria o Homem se posto diante do Super-Homem?


E há uma boa história. Em nenhum momento senti tédio, mas permaneci compenetrado durante as 2:30h dentro das quais se estendeu o filme. Não posso dizer o mesmo de filmes do gênero que vi mais recentemente, como Capitão América 2 ou Vingadores 2. Lembro-me que Man of Steel também teve seus momentos cansativos. Batman V Superman, não. O roteiro teve seus furos? Sim. Mas eu nunca vi roteiros sem seus furos ou inconsistências em outras obras do gênero. Seria ingenuidade esperar que "Batman V Superman" pudesse revolucionar algo neste sentido.


As atuações também não deixaram nada a desejar. Ben Affleck, que fora tão contestado, realizou um bom trabalho como Bruce Wayne e Batman. Cabe aqui ressaltar que agora o personagem se utiliza da tecnologia para alterar sua voz quando vestido de Batman, em lugar daquela voz gutural alvo de tantas paródias, interpretada por Christhian Bale na trilogia dirigida por Nolan. O resultado ficou muito melhor.


A atuação de Henry Cavill também me agradou bastante, inclusive mais do que a de Affleck. O Superman de Cavill não é uma versão sorridente e otimista, mas tem tom trágico e sustenta uma postura de profunda austeridade e seriedade. Pessoalmente, gosto muito deste Superman, que me faz lembrar de sua versão de "kingdom come", embora muito mais jovem.


Ainda no que diz respeito às atuações, o único ponto fraco que consegui encontrar é o Lex Luthor de Jesse Eisenberg. Em minha opinião, sua interpretação ficou caricata demais. Este Lex comporta-se como um cientista louco com trejeitos extremamente histriônicos; um misto de doutor Silvana e Coringa, sem compartilhar do carisma destes últimos. Faltou-lhe a frieza emocional e sobriedade que marcam as grandes versões de Lex Luthor. Para não dizer que não foi feita alguma justiça ao lendário vilão, deve-se reconhecer que seu maquiavelismo e inteligência incomparáveis foram plenamente honrados e preservados.


Não perderei tempo comentando a Mulher-Maravilha de Gal Gadot. Basta dizer que, ao que parece, ela é a grande unanimidade em todos os reviews que li até agora. E todos a elogiaram bastante. Não tenho o que acrescentar.


A trilha sonora de Hans Zimmer está excelente, e fiquei bastante feliz com o fato de que preservou-se os principais temas de "Man of Steel".
Eis, portanto, um resultado final que eu qualificaria como excelente, uma vez que os três elementos principais que definem a qualidade de uma obra cinematográfica - história, atuação e trilha sonora - são, em geral, bastante satisfatórios. 


Como fã do Superman, eu não poderia exigir muito mais. Ao contrário do que imaginei, não se tratou de um filme apenas do Batman (com participações do Super-Homem). Snyder conseguiu manter em excelente equilíbrio entre os dois protagonistas. Além disso, o embate direto entre os dois heróis é um momento um tanto insignificante, considerando todo o contexto do filme. Na verdade, eu ousaria dizer que o personagem do Superman possui um protagonismo maior, pois ele é o grande tema da história, o ponto gravitacional em torno do qual quase tudo gira. Ninguém se importa com o Batman (exceto Clark Kent), mas todos falam o tempo todo sobre o Superman. As duas questões principais de "Batman v Superman" são: afinal, o que os simples homens sentiriam diante do Super-Homem (um problema de ordem psicológica) e como um Super-Homem deve se comportar diante da humanidade (um problema de ordem ética). Em grande parte, o roteiro é dirigido pelo ódio e medo sentidos pela humanidade em relação a Kal-El, e a busca do mesmo por aceitação e redenção. Logo, não seria exagero dizer que o Super-Homem é o coração de toda a trama, e o motor que movimenta a história. Além disso, o número de elementos de seu universo pessoal são extremamente preponderantes em toda o filme: temos Lois Lane (com participação extremamente significativa), Perry White, Martha Kent, e as grandes ameaças são constituídas pelo já mencionado Lex Luthor e o poderosíssimo Apocalipse.


E, por fim, devo dizer que o MELHOR e mais belo momento de todo o filme (ao menos em minha opinião) é inteiramente protagonizado por Superman.

Veredito: Batman V Superman é um filme perfeito? Não. Está a altura dos dois primeiros filmes do Superman, com Christopher Reeve? De forma alguma. Mas ainda assim é um bom filme de super-heróis? Certamente. Antes de julgar este filme, temos que levar em consideração as limitações próprias ao gênero. Repito: Batman V Superman tem alguns problemas, mas são problemas compartilhados por todos os filmes do gênero produzidos ao menos nesta última década. Tendo em vista estas considerações, devo dizer que, em minha opinião, Batman V Superman é um filme bastante satisfatório.

- Meus comentários sobre o teor moral de Batman v Superman (texto escrito em 2.020)

Em sua parte mais significativa, a história narra o contraste entre a grandeza de um homem, e a pequenez de muitos outros homens. Nesta última categoria, podemos colocar Lex Luthor, a senadora Finch e, temporariamente, o Batman. Na primeira, o Superman. E por que faço esta qualificação? Uma característica dos mesquinhos é o fato de que os mesmos são consumidos pelo ódio dos impotentes, pelo ressentimento. Pessoas mesquinhas tendem a se esforçar não em superar, mas a destruir e degradar tudo aquilo que secretamente percebem como maior do que elas mesmas. 

E por que o Batman é colocado por mim nesta categoria dos mesquinhos? Porque em boa parte da história, o seu motivo principal é o ódio impotente diante do poder que o Superman representa. Mas não nos enganemos. O Batman não pode aqui ser considerado uma espécie de republicano plenamente consciente da necessidade de freios e contrapesos, isto é, de um equilíbrio saudável que agora é ameaçado pela simples presença de um Superman. Se essa foi a intenção dos roteiristas Chris Terrio e David Goyer, então ambos erraram o alvo. Pois é intrinsecamente incoerente colocar o milionário (talvez bilionário) Bruce Wayne como um amante do equilíbrio de poderes. Não. O rico Bruce Wayne, patrão de boa parte de Gotham City, sempre exerceu uma fatia de poder muito maior do que a larga maioria dos seres humanos. Como Batman, seus recursos bélicos e tecnológicos, além de suas incríveis faculdades físicas e intelectuais (quase sobre-humanas), sempre o colocaram acima dos demais. Além disso, sua máscara sempre permitiu-o agir sem ser responsabilizado. Sim, o Batman/Bruce Wayne é alguém muito poderoso; certamente o mais poderoso em seu universo pessoal. Logo, não é coerente sequer imaginar que o Batman esteja interessado em equilíbrio de forças, pois ele nunca viu problemas com o fato de que, até então, ele próprio era o mais forte. 

Mas agora surge o Superman, cujos atributos quase divinos (o Batman é alguém que se aproxima do sobre-humano; e o Superman, alguém que se aproxima de Deus) reduzem a quase nada as habilidades do Batman e o enorme patrimônio de Bruce Wayne. Resultado? O então mais poderoso sente-se patologicamente compelido a destruir o novo homem mais poderoso. Esta nossa interpretação é confirmada pelos roteiristas no momento em que os mesmos colocam aquelas palavras na boca de Alfred que, ao lado do Superman, é o outro grande homem da história, porque intelectualmente capaz de manter uma visão objetiva e clara sobre as coisas: "é assim que começa. A febre, a raiva, o sentimento de impotência... que convertem bons homens em cruéis". É como se Alfred, assumindo o lugar de Nietzsche, dissesse ao seu pupilo Bruce Wayne: "você está se tornando ressentido". E, tal como Nietzsche nos ensina, o ressentimento leva os homens impotentes ao ataque, à calúnia. Guiados pelo ódio dos impotentes, homens ressentidos logo se apressam a caluniar aquele que eles percebem como sendo o mais poderoso e mais forte. E, assim, ao invés de contemplarem maravilhados o Superman e suas boas ações, e dizerem "ele é grandioso", eles apontam o dedo e gritam: "ele nos ameaça!". E, assim, os atos heroicos e altruístas do Superman são degradados, no vocabulário do ressentido, em manifestações de poder (e convém notar aqui que o próprio Nietzsche foi refém deste tipo de ressentimento, ao ser incapaz de reconhecer na moralidade nada além de vontade poder), e sua grandiosidade, em ameaça. 

É precisamente esta mesma mentalidade que guia o comportamento da senadora Finch. Quando o Superman obedece à sua convocação e se apresenta no capitólio, as palavras em tom hostil da senadora Finch (o ressentido sempre tem necessidade de ser hostil) são "é assim que a democracia funciona. Nós conversamos uns com os outros. Nós agimos sob o consentimento do governo". Tradução: "Superman, eu o odeio por não controlá-lo; eu o odeio por você não vir até mim, ouvir-me e submeter-se aos meus imperativos". Este é o preciso significado de suas palavras, que são prudentemente floreadas pela típica retórica político-democrática. "Conversar" significa "ouvir ao Congresso". Em outros momentos do filme, a senadora Finch acusa o Superman de "agir unilateralmente". Mais um vez, isso é apenas um eufemismo para "ele não faz aquilo que o mandaríamos fazer". Podemos reduzir todo o conteúdo das falas da senadora Finch a "eu o odeio por não se colocar sob o jugo do meu poder". 

Lex Luthor é o terceiro ressentido. Quando este diz que é ilusório acreditar que o poder pode ser inocente, há alguma verdade nisso. Geralmente, o poder não é inocente (porém, que esta sentença não é universal, segue-se do fato de que para fazer o bem, é preciso ter poder para tal. Logo, o bem pressupõe poder, tanto quanto o mal pressupõe poder). Mas sua frase apenas mascara os seus verdadeiros sentimentos, que é o de ódio e impotência diante de um poder maior que o seu próprio. Pois se Luthor realmente se incomodasse com o fato de que o poder jamais pode ser inocente, então ele deveria começar por repreender a si mesmo, considerando o enorme poder de que ele próprio desfruta. Como bom vilão de quadrinhos, o propósito de Luthor na história é o de amplificar, por meio de seu próprio comportamento caricato, as intenções mais sórdidas do ser humano que, em realidade, manifestam-se muito mais sutilmente, mediante toda sorte de floreios, auto-enganos, auto-indulgências mascaradas sob enormes camadas de eufemismos e retórica canalha. Luthor é a versão desnudada do lado mais sórdido de Wayne e Finch.

E o que o Superman faz diante de tantos ataques e calúnias? Ele simplesmente tenta ao máximo fazer a coisa certa, enquanto é alvo de cusparadas e de comentários mesquinhos em programas de TV. Como grande herói da história, esforça-se ao máximo para manter-se fiel ao ideal concebido por seu pai Jonathan Kent, apesar de todas as dificuldades impostas não tanto pela realidade, mas pelos caprichos de indivíduos cobiçosos. Por isso, é realmente triste quando o Superman, já muito próximo de ceder à pressão de um ambiente tão contaminado pela maldade, diz angustiado para Lois: "ninguém permanece bom neste mundo". 

Entretanto, apesar de sua decepção -- que jamais converte-se em ressentimento -- seu último ato é o de sacrifício supremo para salvar um mundo que o ataca. A proximidade entre Superman e Jesus Cristo é bastante manifesta neste ponto. E, dando continuidade à semelhança, seu exemplo de altruísmo e amor tem por consequência resgatar o Batman do abismo de sua própria mesquinhez. "Falhei com ele em vida, não vou falhar com ele em morte", são algumas das últimas palavras de Bruce Wayne, agora convertido em apóstolo do Superman. No final das contas, o heroísmo puro do Superman triunfa, na medida em que, pelo seu exemplo, consegue salvar das próprias trevas a alma de um homem. E é graças a isso que o Batman, que começa a história como um ressentido, conclui-a trazendo novamente dentro de si a boa vontade de um herói.