ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM
SPOILERS
Como muitos devem saber, o novo filme do Superman, Man of Steel, tem provocado muitos
debates de natureza ética. E não é para menos. Ao longo dos anos, Superman se
constituiu na representação fictícia definitiva de nossa consciência moral.
Superman sempre faz o que é certo. Por isso escrevi recentemente em um artigo
que
In my own
opinion, I believe that there is not any imaginary hero who has become more
mythological than Superman, in our day. In fact, he can be easily considered
the archetype of modern superhero, and all the others superheroes are, in
essence, a variation of him, according to Christopher Knowles (2008: 140); but
much more than that, I even affirm that never has there existed a hero in
history – and here I refer even to the great heroes in Homeric poems – who
represented or represents our moral convictions, in such a perfect way. For
Superman, above all, appears in popular imagination as a man truly good, in
moral sense. In general human conscience, the “super” in his name does not
represent only physical power; above all, it refers to his incredible moral superiority.
Therefore, the myth of Superman reveals through the expressive language of his
adventures, our more universal moral convictions*
Por estas razões, não é de se admirar a capacidade que Superman possui de provocar, no público, debates que problematizem questões de ordem moral. O escritor Mark Waid, um profundo admirador do Superman, se abalou
profundamente com o desfecho do filme, onde Superman, para salvar pessoas
inocentes, tira a vida de Zod. As impressões de Mark Waid foram documentadas
pelo próprio:
Superman wins by killing
Zod. By snapping his neck. And as this moment was building, as Zod was out of
control and Superman was (for the first time since the fishing boat 90 minutes
ago) struggling to actually save innocent victims instead of casually catching
them in mid-plummet, some crazy guy in front of us was muttering “Don’t do
it…don’t do it…DON’T DO IT…” and then Superman snapped Zod’s neck and that guy
stood up and said in a very loud voice, “THAT’S IT, YOU LOST ME, I’M OUT,” and
his girlfriend had to literally pull him back into his seat and keep him from
walking out and that crazy guy was me. That crazy guy was me, and I barely even
remember doing that, I had to be told afterward that I’d done that, that’s how
caught up in betrayal I felt. And after the neck-snapping, even though I stuck
it out, I didn’t give a damn about the rest of the movie.**
Antes de tudo, gostaria de dizer que Mark Waid é um dos meus
escritores favoritos, e acredito que Kingdom
Come não seja apenas uma das melhores histórias do Superman, mas uma das
melhores HQ’s de todos os tempos. Mas acho que as negativas reações histéricas de Waid diante de Man of Steel não têm uma razão de ser,
ao menos naquilo que diz respeito ao desfecho do filme. Em Man of Steel, Superman é posto diante de uma situação que não
poderia exigir dele outro comportamento: ou ele matava Zod, ou ele permitia que
Zod matasse pessoas inocentes. Este estranho fetiche – que Waid parece adotar –
pelo imperativo absoluto do “não matarás” parece ter confundido a cabeça de
alguns leitores do Superman. Sim, Superman não mata. Mas jamais devemos perder
de vista que o objetivo do Superman é sempre fazer o bem, fazer o que é justo,
e repudiar o mal e as injustiças. E há circunstâncias nas quais a justiça pode
exigir uma morte. Portanto, o dever absoluto do “não matarás” precisa de
complemento: “não matarás injustamente”.
O final de Man of Steel é um
excelente exemplo disso. Se numa determinada circunstância a justiça não pode
ser honrada senão através da morte de um injusto, então é justo que o injusto
morra. Em Man of Steel, Superman fora
colocado em uma situação onde sua omissão em tirar a vida de Zod resultaria na
morte de outras pessoas, e, assim, ele seria indiretamente responsável pela
morte daquelas pessoas também. Isto é: ele próprio cometeria injustiça. Portanto, ele tinha que escolher entre o assassino
Zod e entre aquelas pessoas inocentes. E ele escolheu, acertadamente, as
pessoas inocentes. Isso não é utilitarismo. Superman não matou um homem para
propiciar a felicidade a uma maioria, mas matou um homem porque este era o
único meio de repelir, naquelas circunstâncias, a injustiça que este mesmo homem
queria deliberadamente cometer. Zod
poderia estar ameaçando a vida de um único homem; a decisão do Superman teria
que ser exatamente a mesma. Logo, não se trata de utilidade ou de números, mas apenas
de repelir o ato injusto pela única via possível naquelas circunstâncias. Por
todas estas razões, eu gostaria de perguntar ao Mark Waid, usando um exemplo análogo:
"Sr. Waid, vamos supor que o Superman esteja diante de um dilema
moral. De um lado ele tem um tremendo genocida, e de outro um homem inocente.
Em razão de circunstâncias que fogem ao seu controle, ele NÃO PODE SALVAR OS
DOIS. Tem que escolher. Quem o Superman, de acordo com seus padrões éticos,
salvaria?".
Mark Waid deveria responder: "Superman salvaria o homem inocente, pois o
injusto não possui o mesmo mérito que o justo; e se o Superman se abstivesse, o
justo morreria, e então o Superman é que estaria cometendo injustiça".
Esta é a resposta que qualquer homem, interpretando as motivações do Superman,
e que fosse possuidor de uma consciência moral, poderia dar, pois o Superman é
justamente isso: uma representação de nossa consciência moral. O problema é que o Waid respondeu este meu
dilema, ainda que indiretamente, e a resposta dele foi extremamente
ofensiva - não comigo, é claro; mas com o próprio Superman. Em recente
entrevista dada ao site Voices from
Krypton, Waid disse:
My answer is I wouldn’t have put him in that position. As a
writer, and I could be wrong, I don’t think Superman is built for that kind of
story.***
Vale dizer, Waid declarou – talvez sem ao
menos perceber as sérias implicações de sua afirmação – que o Superman
não é um personagem apto a responder dilemas éticos realmente difíceis.
Pois eu – que levo esse personagem a sério – penso justamente o contrário:
Superman talvez seja a melhor representação fictícia da consciência moral
humana. O Superman é aquele que guia a humanidade através de seu exemplo, e se
estamos diante de uma dúvida, de um pesado dilema moral, quem melhor do que ele
para nos dar a resposta? Por outro lado, se Waid prefere ver o Superman
lidando somente com situações irreais, e que não provoquem o menor esforço
reflexivo por parte do público, então ele tira do personagem toda sua
profundidade e valor, e o converte numa simples figura de entretenimento, na
linha do Patolino, Pernalonga ou Supermouse. É claro que o mito do Superman
comporta uma dimensão mais simples e alegre. Particularmente, eu gosto do
Superman de Superfriends, e das
aventuras mais inocentes da Era de Prata. Mas prefiro o Superman da graphic
novel Peace on Earth. Certamente Waid
também prefere. Afinal, Kingdom Come
é basicamente um conto sobre moralidade e decisões difíceis no campo da ética.
Mas então por que Waid se surpreende e protesta quando vê seu herói favorito
tendo que tomar decisões difíceis e dolorosas, em prol da justiça?
* “Charity and Justice: a defense of altruistic ethics and
political liberalism based on Schopenhauer’s philosophy and Superman’s myth”,
in:
http://thefreehold.us/?p=2164
*** http://voicesfromkrypton.net/man-of-steel-exclusive-talking-superman-with-mark-waid/