segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Superman, Capitão Marvel, Übermensch e o ressentimento dos fracos


Superman e Capitão Marvel desenhados por Alex Ross

Já houve quem discutisse se o Super-homem de Siegel e Shuster representa a versão “quadrinística” do Übermensch, o mais famoso conceito do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ou se ao menos guardam alguma semelhança. A opinião corrente é de que eles nada têm em comum. Afinal, o Super-homem dos quadrinhos é bastante cristão (há quem até o compare com Jesus Cristo...) e o Übermensch é o demolidor do cristianismo. Quanto a isso, parece que os dois realmente se diferenciam, e, aparentemente, até se opõem. Mas, analisando a mesma questão, só que sob nova perspectiva, cheguei a outras conclusões. Para tanto, precisei vivenciar um fato no qual tanto o Super-homem quanto o Übermensch tinham a mesma aplicabilidade. Ao invés de perguntar sobre o puro conceito dos dois entes, deparei-me com as consequências, ou a impressão, que ambos deixam sobre as pessoas. Simplificando, a questão pode ser colocada da seguinte forma: que fatores levam as pessoas a negar ou afirmar, aprovar ou desaprovar, amar ou odiar o Superman/Übermensch? Ao responder isso pra mim mesmo, constatei que os fatores eram idênticos; e nesse aspecto, há a identificação entre os personagens. Mas foi um fato aparentemente ridículo que me trouxe tais respostas.

Há alguns dias tive uma conversa com um amigo, sobre quadrinhos. Como sou um fã inveterado dos grandes heróis clássicos, coloquei o Superman na conversa. “Eu odeio o Superman”, ele disse. Então falei do Capitão Marvel. “Eu odeio o Capitão Marvel!”, exclamou meu interlocutor. Sem pretensões tolas de convencer o rapaz a adotar a opinião contrária, limitei-me apenas a inquirir sobre a razão de tanto ódio. E ele não poderia dar-me uma resposta mais esclarecedora: “O Superman é muito... é muito... muito super! E o Capitão Marvel... bem, ele é maravilhoso demais!”. Aquela resposta me deixou surpreso. Afinal de contas, o que há de errado em ser bom? Em ser forte? Em ser corajoso, heróico? Em suma: por que diabos os qualificativos de “maravilhoso” e “super” deveriam incomodar alguém em sã consciência?? Como um ser humano normal poderia dizer que o bom é, na verdade, algo ruim??? Foi aí que o velho Nietzsche colocou a resposta bem diante do meu nariz. Eu havia formulado as questões de maneira errada: Meu amigo não estava são, e nem era uma pessoa saudável; mas estava tomado por uma doença chamada “ressentimento”. E o homem doente distorce a realidade e inverte os valores. Assim, o bom torna-se mau; e o super, o maravilhoso, não são mais dignos de adoração, mas de ódio.

Mas o que leva ao “ressentimento”? É justamente a covardia típica do fraco. A fraqueza, em si mesma, não chega a ser uma doença. É apenas um obstáculo. De certa forma, é o ponto de partida do forte. A fraqueza está apenas na vontade: aquele que é verdadeiramente fraco, não deseja ser forte. Ele é tão fraco e preguiçoso, que prefere amaldiçoar o mundo e a vida com palavras de ódio, a admitir que está do lado errado. Não lhe ocorre dizer “a vida exige força, e para ser digno da companhia e amor desta belíssima jovem, tornar-me-ei forte!”. Pelo contrário, prefere pensar: “A vida exige força de mim, e eu a odeio por isso!”. O Super-homem de Nietzsche é simplesmente aquele que finalmente percebeu tudo isso e, nesta dicotomia, resolveu tomar o partido da vida. Ele sabe que além da vida há o nada, e para que seja algo, é preciso amar e aceitar a vida. AMOR FATI. E assim o faz. Superman e Capitão Marvel fazem a mesma coisa. São personagens extremamente vivos. São ricos em disposição, força e saúde. Escolheram a vida heróica, e sofrem por isso. Mas aceitam o fardo! É certo que Superman e Marvel seguem um senso moral tipicamente cristão. Mas escolheram isso! E não escolheram a compaixão, ou seja, defender os fracos, porque eles próprios também são fracos, e, portanto, desejam que os fracos sejam defendidos e enaltecidos simplesmente para que eles próprios sejam defendidos e enaltecidos. Muito pelo contrário. Eles são os mais saudáveis e fortes. Escolheram o caminho do heroísmo compassivo simplesmente porque é assim que querem viver. Escolheram-no pela força, não pela fraqueza.

Portanto, colocando as coisas dessa forma, as diferenças entre o Übermensch e o Superman são muito poucas, ou nenhuma. Digo “nenhuma” porque mesmo quanto à escolha da moral cristã, os dois não chegam a se contradizer. O que Nietzsche repudiava no cristianismo não era sua condição de guia do comportamento (como mostrado em “O Anticristo”), mas sim a adoração desmedida, introduzida por Paulo de Tarso, ao além, e o completo esquecimento e negação da vida terrena. E isso, nem Superman e nem Capitão Marvel fazem. Ao contrário – como já explicado – eles afirmam a vida em todos os momentos. Afinal, será que há, em nossa cultura, uma antítese da moral do sacerdote – aquele sujeito sombrio, raquítico, cansado e ressentido – mais emblemática que o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster?

Assim, agora parece perfeitamente compreensível toda a irritação que o “super” e o “maravilhoso” podem causar. Afinal, quando se está doente, a saúde alheia não parece incomodar? O repúdio ao Superman – este verdadeiro mito que carrega em si o poder e a vitalidade suprema – é especialmente sintomático nos degenerados, nos ressentidos - os maiores inimigos do Übermensch. Dessa forma, transportando agora tudo isso para a vida dos indivíduos, o Übermensch transforma-se naquele indivíduo que escolhe um valor, enquanto que o Superman, torna-se este valor mesmo, o qual define o Übermensch. Se, portanto, enquanto considerados como entes fictícios, eles se identificam em muitos aspectos (ou até em todos...), se então vivenciados na vida real das pessoas, poderá até mesmo haver uma relação de complementaridade; mas nunca de oposição.


Um adendo...

Recentemente assisti um documentário sobre o Superman, produzido pela BBC no início da década 80. Além de pessoas diretamente envolvidas com o personagem - como os criadores Jerry Siegel e Joe Shuster - outros também são entrevistados. Vale citar os então escritores de quadrinhos alternativos Trina Robbins e Art Spiegelman, além do famoso psicólogo (e hoje bastante desacreditado) Frederic Wertham. Estas três figuras incorporam muito bem aquilo sobre o qual foi falado acima: o ser humano completamente carente de saúde, e suas eventuais ações. Robbins e Spiegelman poderiam ser classificados como aquilo que chamo de "artistas que não produzem arte". Sim, pois o objetivo da mais nobre arte é provocar no sujeito a contemplação estética, por meio do belo e do sublime - e essa é a conclusão a que chegaram sérios pensadores como Plotino, Kant e Schopenhauer, apenas ignorada pelo advento do doentio século XX - logo, um artista que não produz a beleza, mas que por alguma conveniência cultural mesmo assim é chamado de "artista", só pode ser um "artista que não produz arte". Robbins e Spiegelman desprezam a beleza. Mas adoram retratar a si próprios (e suas eventuais imperfeições e neuroses) em seus próprios quadrinhos "alternativos". Para Trina Robbins, os quadrinhos de super-heróis são algo para "garotinhos"... e ela "espera que eles cresçam". No entanto, em uma cena do documentário, ela mostra uma gravura, na qual a personagem (ela própria) procura uma identidade. Entre as opções estão Mulher-Maravilha, "The Jungle Queen"... e "B and D" - "Bandage and Domination", como ela própria explica ao entrevistador - uma clara referência ao sadomasoquismo. Após isso, ela explica que, embora goste do visual de "B and D", isso não quer dizer que ela queira agir como uma verdadeira "B and D".  Em síntese, o trabalho de Robbins parece uma mistura de esquizofrenia, egocentrismo exacerbado e gigantesca puerilidade. Spiegelman é mais agressivo. Não é pueril, mas sim o autêntico retrato de um adulto perturbado mentalmente; ou seja, é algo muito pior. Em outros momentos, representa a outra face do homem decadente: o cansaço. Neste sentido, é bastante revelador um de seus esboços mostrados no documentário: a figura de um rato de aparência frágil, cabisbaixo, vestindo os trajes do superman, apenas dizendo "it's a bird... it's a plane... it's boring".

Mas o mais sintomático e exemplar é o dr. Wertham. Primeiramente, Wertham ensina sobre o parentesco entre o Superman e o Übermensch. Depois, diz que o Superman (ou Übermensch, pois ele parece associar os dois de maneira tão estreita a ponto de praticamente se confundirem) "em si mesmo representa força, poder, e violência". Diz que o que aconteceu na Alemanha (segunda guerra, política antisemita, campos de concentração etc.) só pode ser entendido a partir disso. Que ele (o Superman/Übermensch) "representa a abolição da lei, pois o Superman está acima da lei, de todas as leis; as leis democráticas (...) e até mesmo acima das leis físicas e químicas (...) e, de conseguinte, o que isso ensina aos jovens (...) é que não há responsabilidades". Toda essa falácia monstruosa é proferida por uma voz titubeante (e muito pouco clara) acompanhada de gestos de mãos trêmulas e movimentos corpóreos desastrados. Um homem fisicamente e mentalmente doente, sem dúvida. O protótipo do antípoda do Übermensch: um homem que fora abandonado pela vida antes mesmo de morrer e, ciente e ressentido deste abandono, direcionou toda a sua vontade para a vingança. Por isso atacou os grandes Heróis que então surgiam, pois simbolizavam o melhor da vida: a beleza, a força, a saúde, a disposição. E então empreendeu sua vingança, publicando "Seduction of the Innocent", cujo conteúdo não passava de uma falsa calúnia sobre o heroísmo - e como poderia o heroísmo ser caluniado, senão falsamente? Ora, o velho Zaratustra tem a resposta: "para os porcos, tudo é porco".



Para os interessados que queiram assistir ao documentário, eis aqui o link da primeira parte: http://www.youtube.com/watch?v=eTUrFYU2e_I&feature=related

As outras partes podem ser facilmente encontradas a partir deste link.

3 comentários:

  1. Acho que uma das questões do Nietzsche com o cristianismo era também a dualidade de mundos, que dissimulava a negação da vida e o ressentimento. E novamente, o Superman dos quadrinhos não postula sua redenção num mundo metafísico, ele se admite ficcional e portanto, inspirador de um modo que nos remete de volta ao mundo real, para sermos melhores neste mundo real mesmo. Eu creio que o Superman e o super-herói em geral é uma configuração do que Nietzsche chamava "Übermensch" porém específica do século XX, na medida em que não se faz concretizar na ideia de Homem Superior (Hoherer Mensch), ou seja, não encarna num homem concreto, mas se mantém uma inspiração simbólica comunitária. Isso parece já estar sugerido no livro IV do Zarathustra, em que se desconfia da compaixão pelo homem superior e se reconhece que este é o tempo da plebe.

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  2. esta configurção de Übermensch, em sendo multitudinária, se distribuiria em identidades plurais, como identidades nacionais, minorias, profissões, contornando a exigência de singularidade pessoal com algum recurso metafórico (identidade secreta, por exemplo). Mas creio que primoridalmente a partir das identidades nacionais. a gente pode colecionar vários Übermensches simbólicos mais próximos de uma identidade étnica, de um povo, e que coincidem serem personagens especialmente populares no respectivo país. Superman nos EUA, Doctor Who na Inglaterra. Nem todos os países conseguem consolidar um personagem nacional de superação e transubstanciação pessoal. Mas é curioso a nossa literatura modernista, contemporânea à Era de Ouro dos Super-heróis, ter chegado a um Macunaíma, "o heroi sem nenhum caráter".

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    1. Muito obrigado pelos comentários, Fábio! Só agora o vi, por isso não respondi antes.

      Hoje eu teria algumas reservas em relação ao meu próprio artigo (escrito há uns bons anos). Talvez hoje eu não arriscasse uma aproximação tão decidida entre o Superman e o Übermensch, embora ainda me pareça acertado dizer que o principal motivo de resistência e desprezo ao Superman é o ressentimento daqueles que odeiam tudo aquilo que representa força e disposição. E o ressentimento é o maior inimigo do Übermensch. Neste ponto ainda há um ponto de coincidência entre ambos, pois partilham de um inimigo comum. Ao menos é o que me parece. Eu teria que pensar novamente sobre o assunto.

      A relação entre heróis fictícios e identidades nacionais é algo que me chama a atenção há algum tempo. Talvez futuramente eu registre algumas das minhas opiniões sobre o assunto aqui neste blog. Abraço!

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