O tenente Worf sofre um sério acidente durante um serviço de inspeção na Enterprise, que o deixa paraplégico. Em razão dos costumes de uma raça guerreira como a Klingon, que julga nada ser mais digno do que uma vida dedicada às batalhas, Worf prefere morrer a viver sem poder movimentar suas pernas. Por isso, ele pede ao oficial Riker que o mate em uma cerimônia klingon de execução.
Em linhas bastante gerais, este é o enredo de um dos melhores episódios de Jornada nas Estrelas – a Nova Geração, muito apropriadamente intitulado de “Ética”. Pois toda a história gira em torno de um debate de ordem ética, e cada personagem incorpora um posicionamento ético distinto.
A doutora Crusher assume a posição principiológica. Poderíamos dizer que ela é kantiana. Na visão da doutora, Worf não deve tirar sua própria vida, ainda que esteja bastante descontente com as condições sob as quais terá de viver. Como médica, ela parte do princípio de que deve conservar a vida de Worf a todo custo: não importam as circunstâncias e as consequências... a vida tem de ser preservada. Preservá-la é o dever do médico, é o princípio que dignifica e informa toda a medicina. Preservar a própria vida também é dever do paciente.
Em contraste, temos a doutora Russell, que vem a Enterprise para ajudar Crusher no tratamento de Worf. Russell é uma consequencialista. Ela aceita correr riscos e colocar seus pacientes em risco, desde que o risco tenha por consequência um avanço na pesquisa científica. Russell elabora um brilhante (e ousado) processo cirúrgico que poderá devolver a Worf a capacidade de andar. Entretanto, a chance de sucesso é de apenas 37%, e há um enorme risco de Worf morrer durante a cirurgia. Worf pode morrer, mas, de qualquer forma, a ciência sairá ganhando. Um novo experimento é sempre causa de aperfeiçoamento técnico.
Riker está bastante próximo da doutora Crusher, embora sua reação pareça ser mais emocional do que racional. Riker simplesmente não aceita que Worf desista de sua vida. Riker gosta de Worf, e por isso não quer que Worf morra. Para Riker, a vida e presença de seu amigo klingon são muito mais válidas do que o código de honra que Worf deseja seguir. E, no entanto, Worf implora para que Riker o submeta à cerimônia klingon de eutanásia.
A situação de Riker é difícil, sobretudo porque seu comportamento é guiado por respostas emocionais, e emoções são confusas. Riker não quer ser indulgente ao pedido de Worf porque ele gosta de Worf; mas é igualmente difícil dizer “não” ao amigo de quem você tanto gosta, sobretudo quando este mesmo amigo deixa de pedir, e passa a implorar.
Torturado pelo dilema, Riker pede conselho ao capitão Picard, que assume uma postura relativista, bastante guiada pelo princípio antropológico do relativismo cultural. Picard explica que, na concepção de Riker, o pedido de Worf é descabido; mas na concepção de Worf, o pedido faz todo o sentido. Se Worf quer morrer, então ele tem o direito; se Worf acha que sua vida acabou porque não consegue mais andar, então, naquilo que lhe diz respeito, ele já está morto. Em nenhum momento passa pela cabeça de Picard que o juízo de Worf possa estar corrompido, e que seu próprio ponto de vista possa mudar mais tarde. E de fato, o juízo de Worf está corrompido: é loucura colocar o orgulho – uma resposta emocional – acima da vida – que é a milagrosa e enigmática condição de toda resposta emocional, incluindo aí o orgulho. Nesse ponto, a ética klingon assemelha-se a um projeto de construção que começa pelo telhado.
E que o próprio Worf sabe disso, confirma-se pelo fato de que ele recusa a deixar seu pequeno filho Alexander realizar o ritual klingon de eutanasia. Após investigar os costumes klingons, Riker descobre que o ritual de eutanásia só poderia ser realizado pelo parente mais próximo de Worf. Worf já sabia disso. Então descobrimos que Worf não estava interessado em honrar códigos e tradições, mas apenas em ser indulgente consigo mesmo. Seu suicídio era inteiramente egoísta. Entretanto, a perspectiva de que o pequeno e inocente Alexander deveria realizar este ritual tão brutal horrorizou Worf, e o amor por seu filho forçou-o a transcender seu ego e ampliar seu horizonte moral. O amor por Alexander forçou Worf a “sair” de si mesmo, por assim dizer, e ver o “outro”. Em outras palavras, o dispôs ao altruísmo. No fundo, Worf sabia que o suicídio era pura vaidade e orgulho. Vaidade, porque Worf estava preocupado com sua imagem; ele não queria viver como um “aleijado”. Orgulho, porque pra ele nada era mais importante do que sua cumplicidade consigo mesmo, sua fidelidade a suas paixões e idiossincrasias. Pensar em seu filho forçou-o a transcender sua idiossincrasia, e a reencontrar seu próprio senso moral mais profundo.
Mas a conversão de Worf não é total. Ele permanece parcialmente concessivo a sua vaidade klingon. A conclusão é um compromisso, sugerido por Picard, entre a tendência orgulhosa e suicida inicial de Worf e seu senso moral mais profundo: Worf submete-se à arriscada cirurgia idealizada pela doutora Russell, que tem mais chances de matá-lo do que de curá-lo, mas ao menos ele o faz como uma última tentativa de conservar sua vida.
E então segue o momento mais fictício do episódio: como forma de esconder do espectador o quão imprudente e errôneo é esse meio termo sugerido por Picard, Worf sobrevive e começa a andar. Mas e se ele tivesse realmente morrido? E se o jovem Alexander tivesse perdido seu pai, apenas porque Worf ainda estava cedendo, embora mais parcialmente, a sua vaidade klingon? Uma vida se perderia por vaidade; um filho teria perdido seu pai por vaidade... que desperdício. Em pouco tempo, Worf percebeu que o suicídio direto não era o caminho correto. Com mais tempo, ele certamente teria corrigido inteiramente seu juízo moral superficial em prol de seu senso moral mais profundo, e assim teria optado pela vida em lugar da vaidade, e aquele absurdo compromisso entre vida e vaidade não teria de ocorrer.
Neste episódio, agradam-me Riker, Crusher e o jovem klingon Alexander.
Riker, porque ensinou a Worf – embora este se recusasse a aprender – que o altruísmo é louvável, que o egoísmo é censurável, e que permanecer em vida em condições não-ideais é o mais honrado, porque altruísta, enquanto que o suicídio é o egoísmo: é recusar a vida e a companhia daqueles que nos amam simplesmente porque não se deseja e nem se esforça em desfrutar daquilo que a vida e as pessoas nos oferecem. O suicida é aquele que se coloca acima do amor que as pessoas o oferecem. É como se ele dissesse: “o que vocês me oferecem ainda não é o bastante; eu mereço mais”.
Crusher, porque é uma mulher de princípios, e que por isso não corrompe suas máximas em prol de vagas esperanças de sucesso científico. Para Crusher, o sucesso científico não supera o sucesso moral. É verdade que Crusher participou da arriscada cirurgia, mas o fez bastante contrariada, e seu diálogo final com a doutora Russell comprova isso: apesar do sucesso da cirurgia, Crusher continuou a condenar os métodos de Russell.
E, por fim, Alexander, porque seu senso moral infantil ainda não tinha sido inteiramente corrompido por costumes e pela vaidade do homem adulto, não havia sido iludido e falseado por convenções, e por isso ele conseguia ver o óbvio: nada era mais importante do que o amor e companhia de seu pai, pouco importando as condições nas quais filho e pai se encontravam. A ingenuidade de Alexander permitia-o ver aquilo que seu pai não conseguia: sobrepor o orgulho e a vaidade à vida implica em um contrassenso, tal como um projeto de engenharia que começa a construir a casa pelo telhado, conforme já dito acima. E isso ilustra uma convicção que cresce cada vez mais em mim: em se tratando de senso moral, a experiência tende mais a corrompê-lo do que aperfeiçoá-lo.