Recentemente, a Panini lançou por aqui o arco “Rua a rua, quadra a quadra”, do Justiceiro, escrito por Mathew Rosenberg e com arte de Szymon Kudranski. Quando fora publicado lá fora há mais ou menos 1 ano atrás, esta história provocou alguma polêmica, pois é nela em que Frank Castle aparece repreendendo policiais que utilizavam adesivos da caveira do Justiceiro em suas viaturas. Na verdade, a mensagem era do próprio Rosenberg, e fora dirigida não a policiais fictícios, mas reais: na época, de fato estava ocorrendo, nos EUA, de policiais fixarem a imagem da caveira em seus carros. Algumas pessoas manifestaram seu repúdio a esta atitude, e Rosenberg também resolveu expressar sua desaprovação, colocando o próprio Frank Castle na posição de porta-voz de sua opinião pessoal.
Particularmente, eu nunca entendi qual o motivo de escândalo. Do fato de que alguém veste uma camiseta com a imagem da caveira, não se segue que sairá por aí praticando vigilantismo ao estilo justiceiro. Logo, por que deduzir que o uso de adesivos por policiais terá efeito diferente? Eu penso que o motivo dos policiais se utilizarem da imagem da caveira se deve ao princípio que está associado àquele símbolo, graças à popularidade de Frank Castle na cultura norte-americana. Como eu já argumentei em textos anteriores, o Justiceiro simboliza a Justiça Retributiva, e isso significa: todos devem pagar por seus crimes, na proporção de seus crimes. E este princípio comporta certa latitude. Na prática, ele pode simplesmente funcionar como uma maneira de dar sentido à árdua profissão de policial (e, como muito bem nos ensinou Viktor Frankl, é a busca por um sentido que nos afasta do desânimo, do desespero e da alienação – esta última, um transtorno extremamente comum em nossas relações com as próprias atividades profissionais). É como se através da caveira o policial dissesse: “minha vida faz sentido; eu coopero para que os caras maus sejam pegos e respondam por seus crimes; sou um herói!”. Não significa necessariamente que os policiais praticarão vigilantismo. Do mesmo modo, se os policiais colocassem adesivos do escudo embandeirado do Capitão América (tal como Rosenberg, disfarçando-se de Frank Castle, sugere) isso não significaria que os mesmos estariam dispostos a vestir máscaras coloridas e substituir seus revólveres pelo lançamento de discos. Significaria apenas que eles aderiram ao princípio ínsito àquela imagem, algo lato como “eu sirvo a meu país”. (E, convenhamos... talvez eu esteja indo longe demais aqui. É bem mais provável que as motivações dos policiais sejam mais simplórias. Talvez eles usem a caveira simplesmente porque consideram "badass" a imagem e simbologia que ela representa).
Aliás, isto é o que nos fascina nos símbolos. Eles se referem a princípios que abrangem uma enorme latitude de significados, e por isso não estão restritos à estreiteza de um único padrão de comportamento. Através do símbolo do Capitão América, um policial poderia dizer a si mesmo: “tal como o Capitão, eu também sirvo ao meu país, ainda que à minha maneira”. Do mesmo modo, através da caveira, o mesmo policial poderia dizer: “tal como Frank Castle, eu também honro a Justiça, ainda que à minha maneira”. A razão de os policiais reais terem de fato escolhido a imagem da caveira em vez do escudo do Capitão parece-me óbvia: o Justiceiro é um personagem muito mais contextualizado no mundo real do que o Capitão América. Policiais não enfrentam ameaças alienígenas e vilões fantásticos, e sim a escória que inunda as ruas com assassinato, roubo, estupro, e venda de drogas. Na prática, também não se trata tanto de defender o país, mas de combater indivíduos concretos para proteger indivíduos concretos. E este é o cenário dentro do qual se articula o mito do Justiceiro. Por outro lado, se os profissionais da Marvel Comics são contrários ao elemento cativante que indubitavelmente há no vigilantismo heroico e romantizado, então eles deveriam considerar parar de publicar as aventuras do Justiceiro. Mas algo me diz que esta possibilidade nunca passou por suas cabeças. Isso só pode significar que eles próprios não acreditam realmente em tais polêmicas, ou, se acreditam, então eles não estão dispostos a desistir de uma fonte de lucro em função de seus princípios morais. Ou seja: ou são dissimulados, ou são hipócritas.
Mas vamos ao meu ponto principal: o modo como Rosenberg escreve o Justiceiro, e que eu reprovo totalmente. Na verdade, grande parte daquilo que julgo ser um problema já se encontra nesta cena que comentei até aqui. Quando o Justiceiro rasga o adesivo da caveira e diz ao policial que o exemplo a ser seguido é o Capitão América, o policial responde: “quem você pensa que é? Gostando ou não, você começou uma coisa. Mostrou como se faz. Agora não gosta que outros sigam seu exemplo?”. Claro, aqui Rosenberg promove uma caricaturização das motivações humanas. Como já expliquei, do uso de adesivos da caveira não se segue necessariamente o engajamento em práticas de vigilantismo. (No excelente e divertido arco "Bem-vindo de volta, Frank", de Garth Ennis, os policiais eram mostrados como totalmente simpáticos ao Justiceiro, inclusive recusando-se a investigá-lo, e não se via nenhum problema moral nisso). Mas vamos assumir, por hipótese, que os policiais tenham de fato este tipo de intenção. O policial tem um ponto aqui. É uma afirmação que aguarda um contra-argumento. Mas o que diz Castle em seguida? “Se eu descobrir que estão tentando fazer o que faço, venho pegar vocês dois”. Em outras palavras, Castle não contra-argumenta. Ao contrário: ele rebate o policial com uma ameaça. Qualquer pessoa que tenha estudado algo como a teoria dos códigos de linguagem de Basil Bernstein, sabe que responder uma provocação ao diálogo com um imperativo e um apelo à própria autoridade é um sintoma claro de debilidade intelectual.
E é este o problema do Frank Castle escrito por Rosenberg: ele parece um robô (ou talvez um zumbi), destituído de qualquer inteligência ou introspecção. Porém, em minha opinião, não existe modo mais grosseiro de descaracterizar o Justiceiro, pois é exatamente o elemento da introspecção que faz dele um personagem tão fascinante. Desde sua estreia, em Amazing Spider-Man #129, o Justiceiro era mostrado como alguém que tinha consciência de suas razões, e que argumentava em favor das mesmas. Este elemento da introspecção chegou à sua maturidade em Marvel Presents #2, que contém história escrita por Gerry Conway, através da qual o leitor tinha a oportunidade de saber cada pensamento de Frank Castle (que eram registrados em seu “diário de guerra”), e atingindo sua perfeição através do trabalho de escritores como Steven Grant (pra mim, o melhor de todos que já passaram pelo Justiceiro), Mike Baron, Carl Potts, David Lapham (Means and ends é uma das melhores coisas que já li), e Garth Ennis. Através dos trabalhos dos nomes citados, temos a oportunidade de conhecer todos os argumentos, valores e máximas morais que Castle articula em sua consciência. Percebemos que se trata de um homem cônscio de suas razões que, quando confrontado por pontos de vista opostos – sobretudo em seus encontros com o Demolidor – mostra-se plenamente capaz de argumentar em favor de seus próprios princípios e valores (como exemplo, vide Punisher #10, de Mike Baron; Means and ends, de David Lapham; Punisher #3, vol. 3., de Garth Ennis).
Em Justiceiro Ano 1, magistralmente escrita por Dan Abnett e Andy Lenning, é mostrado que na base de suas ações estão princípios morais conscientemente assumidos: “por vezes a lei é incapaz de agir [...] por essa razão, de vez em quando é preciso agir à margem da lei, para compensar sua inadequação em obter a punição natural. Eu não falo de vingança. Revanchismo não é um motivo válido [...] Estou falando de justiça”. Este personagem tão rico em introspecção, cuja consciência sempre se mostra preenchida por julgamentos e argumentos morais, em nada me lembra a máquina desalmada (que aparentemente fora literalmente programada para matar por matar) escrita por Rosenberg. E isso é lamentável, pois, para mim, o elemento da introspecção é tão característico do Justiceiro quanto a imagem da caveira que ele ostenta no peito. E, pelos motivos alegados, causa-me estranheza que o Justiceiro não se julgue um exemplo, conforme exposto em seu diálogo com os policiais. Ele não tem convicção de seus princípios morais? Talvez o que ele queria dizer era que os policiais não deveriam jogar fora suas próprias vidas, embarcando em seu ofício suicida e ascético, o que é bastaste correto. Há muitas histórias do Justiceiro que expressam este sentido. Mas nunca saberemos ao certo, pois Rosenberg não nos dá pistas sobre o que Frank Castle estava pensando. Na verdade, a impressão que se tem é a de que o personagem não pensa.
Creio que por trás desta desumanização de Frank Castle esconde-se a suposição de que o impulso de punição é intrinsecamente psicopático. Até onde pude notar, esta interpretação é inaugurada por Garth Ennis, a partir de seu trabalho sobre o Justiceiro no selo Max. Interessante notar o quão longe esta interpretação está das histórias clássicas escritas por Grant, Potts e Baron. Nesta que considero a fase de ouro do Justiceiro, suas aventuras tinham um tom mais heroico, e sua personalidade era muito mais natural. Castle sustentava relações de amizade e, eventualmente, até sorria. Neste período, os escritores aparentemente não viam conflito entre o fato de ser um homem e impor a punição àqueles que a merecem. Não havia contradição no fato de que Castle tinha tanto ódio da criminalidade quanto amor pelos inocentes, a começar pela sua família que fora assassinada. Mas Ennis pareceu pensar diferente. Em Born, ele deixa claro que Frank Castle gostava de matar muito antes de sua família ser assassinada. E este processo de desumanização do Justiceiro, que já ocorre parcialmente em Ennis (1), adquire seu apogeu em Rosenberg. O resultado: se substituíssemos o título da revista por “Jason: sexta-feira 13”, talvez fizesse mais sentido.
Particularmente, eu prefiro o Justiceiro clássico, definido por Grant, Potts e Baron. A meu ver, é perfeitamente possível pensar que o ódio pelo criminoso cresce na mesma proporção que a compaixão pela vítima (ou pelas vítimas). É por isso que concordo inteiramente com Schopenhauer quando este, em suas teses filosóficas, derivava a Justiça a partir da compaixão. Por outro lado, a amenidade para com criminosos tem de ter por pressuposto alguma ausência de sensibilidade para com suas vítimas.
Mas há um ponto positivo naquilo que Rosenberg escreveu, e que, a meu ver, deveria ser definitivamente incorporado à personalidade do personagem e futuramente explorado. Refiro-me ao momento em que, durante o confronto com o Barão Zemo, Castle puxa a máscara do vilão enquanto diz: “máscaras são para covardes”. Esta aversão às máscaras parece-me uma boa premissa. Aliás, sempre achei estranho o fato de heróis como Demolidor e Homem-Aranha darem lições de moral no Justiceiro, considerando que o uso de máscaras é tão contrário à convivência civilizada quanto o fato de Castle fazer de si mesmo acusador, júri e executor. A máscara esconde nossa identidade e, escondendo nossa identidade, liberta-nos do ônus de sermos responsabilizados por nossos atos. E sem responsabilização, não há réu sobre o qual possa incidir o juízo de imputação, essencial ao exercício da jurisdição penal. Em suma: com máscara, sem identificação; sem identificação, não há exercício da jurisdição; sem jurisdição, como poderia haver civilização?
Por isso, quando o Demolidor argumenta contra o Justiceiro (na já citada Punisher #10, aqui publicada em Superaventuras Marvel # 92) que, se todos seguissem seu senso de justiça, a sociedade seria um caos, Frank poderia contra-argumentar: “e se todos usassem disfarces como você, a sociedade também seria um caos”. Arrisco até mesmo dizer que o rosto ocultado sob uma máscara é, em seu princípio, muito mais danoso à vida social civilizada do que o comportamento violento, porém franco, do Justiceiro. O potencial destrutivo do anonimato institucionalizado é incalculável. É realmente desconcertante o fato de que o advogado Mathew Murdock também não perceba isso. (2)