sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O Homem do Amanhã deve abandonar seu passado?

Desde que começou a ser publicado pela Panini aqui no Brasil, em abril deste ano, o “renascimento” da DC devolveu-me o entusiasmo pelas histórias em quadrinhos, principalmente porque o verdadeiro Superman retornou. Além disso, os escritores Dan Jurgens (o velho e bom Jurgens...) e Peter J. Tomasi têm feito um grande trabalho até aqui, apresentando-nos histórias simples e agradáveis sobre um Superman seguro, confiante, determinado e perfeitamente cônscio acerca dos princípios morais que devem orientar sua conduta (a 5ª parte e conclusão da história “homens de aço”, publicada aqui neste último mês de novembro, na edição 8 de Action Comics, é um grande exemplo disso). Se o Superman retomasse totalmente seu uniforme tradicional (o atual é relativamente fiel ao clássico, mas ainda tem diferenças significativas), tudo estaria perfeito. Portanto, em geral devo parabenizar a DC Comics por atualmente realizar nos quadrinhos o oposto da Marvel: enquanto esta insiste em projetos de descaracterização de suas principais lendas para se acomodar a estranhos fetiches da atual moda, aquela – aparentemente, em grande parte pela liderança do tradicionalista Geoff Johns – reinveste nos aspectos icônicos de seus personagens mais importantes.

Mas este texto não é sobre a DC como um todo. É mais um texto sobre meu herói favorito, o Superman. Mais especificamente, desejo discutir uma ideia imposta por Peter J. Tomasi, que acredito ter potencial para projetar forte impacto sobre o mito do Homem de Aço.


Em Superman Annual n.1 (publicada em janeiro nos EUA, mas em novembro aqui no Brasil, em Superman n. 8), o Homem de Aço é confrontado pelo Monstro do Pântano. Motivo: segundo o Monstro (que é ligado à natureza), o Superman estaria criando uma “perturbação no verde”, uma “aberração vibracional”. Fundindo-se ao Superman, o Monstro do Pântano descobre que a razão desta anomalia é o fato de que ele “não aceitou este mundo como o seu” (afinal, ele é um Superman de outra realidade, a realidade anterior ao “ponto de ignição” do Flash e aos “novos 52”... acho cansativo explicar isso, então pressuponho que o leitor conheça estes fatos); ele “ainda está se prendendo a uma Terra da qual não faz mais parte”. Solução: o Superman precisa “libertar-se do passado”, precisa ser “o homem do amanhã” e deixar “o passado para trás”. O Superman aceita o conselho do Monstro do Pântano.



Está aí um exemplo de uma bela história de quadrinhos: um ensinamento moral a partir de metáforas. Quadrinhos de super-heróis jamais deveriam ser outra coisa além de fábulas morais. O que Tomasi parece querer expor é a importância que há em evitar que a fixação pelo passado nos impeça de nos integrar ao presente e, consequentemente, de realizarmos o futuro. Tomasi deixa claro que o passado jamais é perdido, pois ele faz parte de nós, e por isso constitui a “base para o futuro”. Mas apesar de jamais perdê-lo, temos de abandoná-lo.

Reconheço a qualidade desta história. Acho que a simples razão de ela ter conduzido um leitor (neste caso, eu) a refletir sobre sua mensagem já é prova suficiente desta qualidade. Mas algo nela me incomodou, porque aqui Tomasi parece fazer o Superman dar as costas a um dos aspectos mais atraentes (pelo menos para mim) de sua mitologia: seus sentimentos nostálgicos em relação a um mundo passado, ao qual ele já pertenceu. E é justamente este aspecto que está inscrito na melancólica expressão “O Último Filho de Krypton”, e que fora maravilhosamente exposto em histórias imortais que jamais deixarão de compor a mitologia do personagem, como a comovente “retorno a Krypton”, escrita na década de 60 pelo criador Jerry Siegel e desenhada por Wayne Boring.


Capa de Superman n. 141, de novembro de 1960, que contém a clássica história "retorno a Krypton", de Jerry Siegel. A arte da capa é de Curt Swan.

Além disso, contrariando a tese de Tomasi, parece-me que é justamente este aspecto nostálgico, essa saudade derivada de um sentimento de pertencimento a um mundo passado, que faz do Superman o “homem do amanhã”. Pois ele só pode representar um modelo a ser seguido na medida em que se identifica com um outro mundo e com uma outra época, uma Era de Ouro que não encontra mais exemplo em lugar algum. Portanto, poderíamos dizer que a inscrição “O Último Filho de Krypton” conduz-nos ao belíssimo ensinamento bíblico segundo o qual não devemos nos conformar a este mundo (Romanos 12, 2). O Superman só pode ser o “homem do amanhã” porque ele é, acima de tudo, o homem de um passado melhor, o passado representado em Krypton. Ele jamais irá se conformar a este mundo porque na verdade ele é de outro mundo.


"The Last Son of Krypton", incrível arte do grande José Garcia-López. Vi esta imagem pela primeira vez ainda criança (provavelmente no final dos anos 80, quando era comercializada aqui no Brasil como figurinha autocolante), e sempre interpretei-a como uma alusão ao senso de nostalgia e tragédia intrínsecas ao mito do Superman. 

  
Aparentemente, Tomasi não teve a intenção de desvincular o Superman e Krypton, mas apenas o Superman e a Terra anterior ao “ponto de ignição” e aos “novos 52”. Porém, aquilo que vale para Terra anterior, valeria também para Krypton. Afinal, segundo o Monstro do Pântano escrito por Tomasi, as anomalias sofridas pelo ecossistema estavam sendo provocadas pelos sentimentos, vivenciados pelo Homem de Aço, de não pertencimento à Terra atual (e com isso Tomasi pressupõe uma forte vinculação entre o mundo subjetivo, onde se manifestam sentimentos, e o mundo objetivo, no qual se expõem os fenômenos naturais... mas creio que isso seja irrelevante, uma vez que o importante é a mensagem moral da história). Além disso, Tomasi dissocia a ideia de “Homem do Amanhã” da ideia de sentimentos de não pertencimento a este mundo, quando eu acredito que deveria ser o contrário: o Superman é o Homem do Amanhã justamente por causa de uma herança passada. Abandonar esta herança passada equivaleria a um “conformar-se a este mundo”, e assim, nenhuma renovação sadia – seja ela social ou espiritual – seria possível.


Apesar destes apontamentos, acredito que há grande beleza na mensagem de Tomasi. Para muitas pessoas, o passado é um fardo traumático que deve ser abandonado, sob pena de estas mesmas pessoas jamais se integrarem ao presente e construírem um futuro. Mas esta regra não deveria se aplicar ao Superman e nem a quaisquer pessoas cujas origens, mesmo quando trágicas, nem por isso deixaram de ser gloriosas.