- Impressão geral sobre o filme (texto escrito no período de seu lançamento)
Quando foi anunciado, há algum tempo atrás, que a sequência de Man of Steel se daria por meio de um enfrentamento direto entre Batman e Super-Homem, eu decidi me resignar diante do fato inevitável de que meu herói favorito (refiro-me ao Super-Homem) seria exposto ao ridículo nas salas de cinema. Pois em uma luta entre Batman e Super-Homem, apenas o primeiro pode sair ganhando: se o Super-Homem vence não há mérito nenhum, uma vez que o Batman é um homem comum; mas se o Super-Homem perde, uma enorme vergonha recai sobre o Homem de aço, uma vez que ele foi derrotado... por um homem comum. Por isso, quando se trata da temática de quadrinhos "fulano versus cicrano", o "Batman versus Super-Homem" aproveita apenas aos fãs do morcego. Se for para apreciar esse gênero de histórias, os fãs do Super-Homem querem vê-lo enfrentar o Lanterna Verde, o Caçador de Marte, o Capitão Marvel, o Thor, Hulk, etc. Querem batalhas épicas entre peso-pesados.
Para piorar a situação, divulgou-se ainda que a fonte de inspiração seria aquela famosa história escrita por Frank Miller (sobre a qual já me manifestei aqui neste blog). Mais adiante, o diretor Zack Snyder declarou que o filme teria mais espaço para o Batman, que precisaria ser reintroduzido no novo universo cinematográfico da DC. Foi quando constatei decididamente: "Batman v Superman" será um filme anti-superman, dedicado ao Batman.
Mas depois de assistir ao filme, tenho que admitir que, para minha surpresa, "Batman v Superman" é um dos melhores filmes de super-heróis dos últimos anos.
Por quê? O filme em questão simplesmente cumpre todos os requisitos que devem ser exigidos em um trabalho do gênero. Há moralidade, coragem, altruísmo e ação. Há também alguns insights psicológicos interessantes, relativos à situação hipotética criada em Man of Steel: afinal, o que sentiria o Homem se posto diante do Super-Homem?
E há uma boa história. Em nenhum momento senti tédio, mas permaneci compenetrado durante as 2:30h dentro das quais se estendeu o filme. Não posso dizer o mesmo de filmes do gênero que vi mais recentemente, como Capitão América 2 ou Vingadores 2. Lembro-me que Man of Steel também teve seus momentos cansativos. Batman V Superman, não. O roteiro teve seus furos? Sim. Mas eu nunca vi roteiros sem seus furos ou inconsistências em outras obras do gênero. Seria ingenuidade esperar que "Batman V Superman" pudesse revolucionar algo neste sentido.
As atuações também não deixaram nada a desejar. Ben Affleck, que fora tão contestado, realizou um bom trabalho como Bruce Wayne e Batman. Cabe aqui ressaltar que agora o personagem se utiliza da tecnologia para alterar sua voz quando vestido de Batman, em lugar daquela voz gutural alvo de tantas paródias, interpretada por Christhian Bale na trilogia dirigida por Nolan. O resultado ficou muito melhor.
A atuação de Henry Cavill também me agradou bastante, inclusive mais do que a de Affleck. O Superman de Cavill não é uma versão sorridente e otimista, mas tem tom trágico e sustenta uma postura de profunda austeridade e seriedade. Pessoalmente, gosto muito deste Superman, que me faz lembrar de sua versão de "kingdom come", embora muito mais jovem.
Ainda no que diz respeito às atuações, o único ponto fraco que consegui encontrar é o Lex Luthor de Jesse Eisenberg. Em minha opinião, sua interpretação ficou caricata demais. Este Lex comporta-se como um cientista louco com trejeitos extremamente histriônicos; um misto de doutor Silvana e Coringa, sem compartilhar do carisma destes últimos. Faltou-lhe a frieza emocional e sobriedade que marcam as grandes versões de Lex Luthor. Para não dizer que não foi feita alguma justiça ao lendário vilão, deve-se reconhecer que seu maquiavelismo e inteligência incomparáveis foram plenamente honrados e preservados.
Não perderei tempo comentando a Mulher-Maravilha de Gal Gadot. Basta dizer que, ao que parece, ela é a grande unanimidade em todos os reviews que li até agora. E todos a elogiaram bastante. Não tenho o que acrescentar.
A trilha sonora de Hans Zimmer está excelente, e fiquei bastante feliz com o fato de que preservou-se os principais temas de "Man of Steel".
Eis, portanto, um resultado final que eu qualificaria como excelente, uma vez que os três elementos principais que definem a qualidade de uma obra cinematográfica - história, atuação e trilha sonora - são, em geral, bastante satisfatórios.
Como fã do Superman, eu não poderia exigir muito mais. Ao contrário do que imaginei, não se tratou de um filme apenas do Batman (com participações do Super-Homem). Snyder conseguiu manter em excelente equilíbrio entre os dois protagonistas. Além disso, o embate direto entre os dois heróis é um momento um tanto insignificante, considerando todo o contexto do filme. Na verdade, eu ousaria dizer que o personagem do Superman possui um protagonismo maior, pois ele é o grande tema da história, o ponto gravitacional em torno do qual quase tudo gira. Ninguém se importa com o Batman (exceto Clark Kent), mas todos falam o tempo todo sobre o Superman. As duas questões principais de "Batman v Superman" são: afinal, o que os simples homens sentiriam diante do Super-Homem (um problema de ordem psicológica) e como um Super-Homem deve se comportar diante da humanidade (um problema de ordem ética). Em grande parte, o roteiro é dirigido pelo ódio e medo sentidos pela humanidade em relação a Kal-El, e a busca do mesmo por aceitação e redenção. Logo, não seria exagero dizer que o Super-Homem é o coração de toda a trama, e o motor que movimenta a história. Além disso, o número de elementos de seu universo pessoal são extremamente preponderantes em toda o filme: temos Lois Lane (com participação extremamente significativa), Perry White, Martha Kent, e as grandes ameaças são constituídas pelo já mencionado Lex Luthor e o poderosíssimo Apocalipse.
E, por fim, devo dizer que o MELHOR e mais belo momento de todo o filme (ao menos em minha opinião) é inteiramente protagonizado por Superman.
Veredito: Batman V Superman é um filme perfeito? Não. Está a altura dos dois primeiros filmes do Superman, com Christopher Reeve? De forma alguma. Mas ainda assim é um bom filme de super-heróis? Certamente. Antes de julgar este filme, temos que levar em consideração as limitações próprias ao gênero. Repito: Batman V Superman tem alguns problemas, mas são problemas compartilhados por todos os filmes do gênero produzidos ao menos nesta última década. Tendo em vista estas considerações, devo dizer que, em minha opinião, Batman V Superman é um filme bastante satisfatório.
- Meus comentários sobre o teor moral de Batman v Superman (texto escrito em 2.020)
Em sua parte mais significativa, a história narra o contraste entre a grandeza de um homem, e a pequenez de muitos outros homens. Nesta última categoria, podemos colocar Lex Luthor, a senadora Finch e, temporariamente, o Batman. Na primeira, o Superman. E por que faço esta qualificação? Uma característica dos mesquinhos é o fato de que os mesmos são consumidos pelo ódio dos impotentes, pelo ressentimento. Pessoas mesquinhas tendem a se esforçar não em superar, mas a destruir e degradar tudo aquilo que secretamente percebem como maior do que elas mesmas.
E por que o Batman é colocado por mim nesta categoria dos mesquinhos? Porque em boa parte da história, o seu motivo principal é o ódio impotente diante do poder que o Superman representa. Mas não nos enganemos. O Batman não pode aqui ser considerado uma espécie de republicano plenamente consciente da necessidade de freios e contrapesos, isto é, de um equilíbrio saudável que agora é ameaçado pela simples presença de um Superman. Se essa foi a intenção dos roteiristas Chris Terrio e David Goyer, então ambos erraram o alvo. Pois é intrinsecamente incoerente colocar o milionário (talvez bilionário) Bruce Wayne como um amante do equilíbrio de poderes. Não. O rico Bruce Wayne, patrão de boa parte de Gotham City, sempre exerceu uma fatia de poder muito maior do que a larga maioria dos seres humanos. Como Batman, seus recursos bélicos e tecnológicos, além de suas incríveis faculdades físicas e intelectuais (quase sobre-humanas), sempre o colocaram acima dos demais. Além disso, sua máscara sempre permitiu-o agir sem ser responsabilizado. Sim, o Batman/Bruce Wayne é alguém muito poderoso; certamente o mais poderoso em seu universo pessoal. Logo, não é coerente sequer imaginar que o Batman esteja interessado em equilíbrio de forças, pois ele nunca viu problemas com o fato de que, até então, ele próprio era o mais forte.
Mas agora surge o Superman, cujos atributos quase divinos (o Batman é alguém que se aproxima do sobre-humano; e o Superman, alguém que se aproxima de Deus) reduzem a quase nada as habilidades do Batman e o enorme patrimônio de Bruce Wayne. Resultado? O então mais poderoso sente-se patologicamente compelido a destruir o novo homem mais poderoso. Esta nossa interpretação é confirmada pelos roteiristas no momento em que os mesmos colocam aquelas palavras na boca de Alfred que, ao lado do Superman, é o outro grande homem da história, porque intelectualmente capaz de manter uma visão objetiva e clara sobre as coisas: "é assim que começa. A febre, a raiva, o sentimento de impotência... que convertem bons homens em cruéis". É como se Alfred, assumindo o lugar de Nietzsche, dissesse ao seu pupilo Bruce Wayne: "você está se tornando ressentido". E, tal como Nietzsche nos ensina, o ressentimento leva os homens impotentes ao ataque, à calúnia. Guiados pelo ódio dos impotentes, homens ressentidos logo se apressam a caluniar aquele que eles percebem como sendo o mais poderoso e mais forte. E, assim, ao invés de contemplarem maravilhados o Superman e suas boas ações, e dizerem "ele é grandioso", eles apontam o dedo e gritam: "ele nos ameaça!". E, assim, os atos heroicos e altruístas do Superman são degradados, no vocabulário do ressentido, em manifestações de poder (e convém notar aqui que o próprio Nietzsche foi refém deste tipo de ressentimento, ao ser incapaz de reconhecer na moralidade nada além de vontade poder), e sua grandiosidade, em ameaça.
É precisamente esta mesma mentalidade que guia o comportamento da senadora Finch. Quando o Superman obedece à sua convocação e se apresenta no capitólio, as palavras em tom hostil da senadora Finch (o ressentido sempre tem necessidade de ser hostil) são "é assim que a democracia funciona. Nós conversamos uns com os outros. Nós agimos sob o consentimento do governo". Tradução: "Superman, eu o odeio por não controlá-lo; eu o odeio por você não vir até mim, ouvir-me e submeter-se aos meus imperativos". Este é o preciso significado de suas palavras, que são prudentemente floreadas pela típica retórica político-democrática. "Conversar" significa "ouvir ao Congresso". Em outros momentos do filme, a senadora Finch acusa o Superman de "agir unilateralmente". Mais um vez, isso é apenas um eufemismo para "ele não faz aquilo que o mandaríamos fazer". Podemos reduzir todo o conteúdo das falas da senadora Finch a "eu o odeio por não se colocar sob o jugo do meu poder".
Lex Luthor é o terceiro ressentido. Quando este diz que é ilusório acreditar que o poder pode ser inocente, há alguma verdade nisso. Geralmente, o poder não é inocente (porém, que esta sentença não é universal, segue-se do fato de que para fazer o bem, é preciso ter poder para tal. Logo, o bem pressupõe poder, tanto quanto o mal pressupõe poder). Mas sua frase apenas mascara os seus verdadeiros sentimentos, que é o de ódio e impotência diante de um poder maior que o seu próprio. Pois se Luthor realmente se incomodasse com o fato de que o poder jamais pode ser inocente, então ele deveria começar por repreender a si mesmo, considerando o enorme poder de que ele próprio desfruta. Como bom vilão de quadrinhos, o propósito de Luthor na história é o de amplificar, por meio de seu próprio comportamento caricato, as intenções mais sórdidas do ser humano que, em realidade, manifestam-se muito mais sutilmente, mediante toda sorte de floreios, auto-enganos, auto-indulgências mascaradas sob enormes camadas de eufemismos e retórica canalha. Luthor é a versão desnudada do lado mais sórdido de Wayne e Finch.
E o que o Superman faz diante de tantos ataques e calúnias? Ele simplesmente tenta ao máximo fazer a coisa certa, enquanto é alvo de cusparadas e de comentários mesquinhos em programas de TV. Como grande herói da história, esforça-se ao máximo para manter-se fiel ao ideal concebido por seu pai Jonathan Kent, apesar de todas as dificuldades impostas não tanto pela realidade, mas pelos caprichos de indivíduos cobiçosos. Por isso, é realmente triste quando o Superman, já muito próximo de ceder à pressão de um ambiente tão contaminado pela maldade, diz angustiado para Lois: "ninguém permanece bom neste mundo".
Entretanto, apesar de sua decepção -- que jamais converte-se em ressentimento -- seu último ato é o de sacrifício supremo para salvar um mundo que o ataca. A proximidade entre Superman e Jesus Cristo é bastante manifesta neste ponto. E, dando continuidade à semelhança, seu exemplo de altruísmo e amor tem por consequência resgatar o Batman do abismo de sua própria mesquinhez. "Falhei com ele em vida, não vou falhar com ele em morte", são algumas das últimas palavras de Bruce Wayne, agora convertido em apóstolo do Superman. No final das contas, o heroísmo puro do Superman triunfa, na medida em que, pelo seu exemplo, consegue salvar das próprias trevas a alma de um homem. E é graças a isso que o Batman, que começa a história como um ressentido, conclui-a trazendo novamente dentro de si a boa vontade de um herói.