O longa animado “Justice League: crisis on two earths",
escrito por Dwayne McDuffie, foi produzido e lançado já há alguns anos, mas
somente agora tive a oportunidade (e interesse) em assisti-lo. Agora,
arrependo-me amargamente de não tê-lo feito na época em que fora lançado. Devo
admitir: é um excelente trabalho, e, diferente de muitos longas animados
descartáveis lançados nos últimos anos (sejam eles produzidos pela
Marvel/Disney ou DC/Warner), “Justice League: crisis on two earths" cumpre seu
dever e honra aquela que, a meu ver, é a verdadeira finalidade de todo conto de
super-heróis: fazer-nos vivenciar eventos fantásticos que, em última instância,
conduzem-nos a questões morais. Pois muito mais do que do que apresentar
histórias imaginárias sobre homens que voam e possuem superforça, as histórias
em quadrinhos, desde a década de 30, propõem a resposta para a seguinte
questão: considerando que um homem consegue voar e é superforte, o que ele deveria fazer com semelhantes poderes?
Jerry Siegel e Joe Shuster respondiam, de maneira intuitiva através de suas
histórias imaginárias, que tal homem deveria lutar pela verdade e justiça.
Algumas décadas depois Stan Lee e Steve Ditko responderiam a mesma questão de
maneira mais consciente através da famosa sentença: “com grande poder, vem
grande responsabilidade”.
Dwayne McDuffie, por meio de “Justice League: crisis on two earths", convida-nos a aprofundar um pouco mais nossas intuições morais por
meio do seguinte problema: considerando que exista uma lei física segundo a
qual para cada uma de nossas ações e escolhas realizadas surge um outro mundo
ou realidade no qual uma outra versão nossa realiza justamente a conduta
oposta, qual seria então o real significado de nossas ações? Ou, dito de
maneira mais simples: se para cada ação boa que realizo em meu mundo cria-se
uma correspondente ação má em um mundo paralelo, que sentido haveria em ser
bom? Não é meu interesse aqui discutir até que ponto o problema levantado em “Justice League: crisis on two earths" corresponde à teoria “dos muitos
mundos”, seriamente proposta pelo físico Hugh Everett III, ou outras teorias
científicas do gênero. Meu objetivo é simplesmente o de avaliar nossos juízos
morais a partir daquela hipótese imaginária.
Dentro do conto escrito por McDuffie, o personagem que
levanta esta questão é o Coruja, justamente a versão maligna do Batman que
conhecemos. Ora, se o Batman escolheu ser um herói em nossa “realidade”, disso
se segue que, assumindo aquela hipótese, as escolhas heroicas que Batman fez em
nossa realidade produziram escolhas ruins em outra realidade (e vice-versa...
McDuffie não nos explica quem é a causa de quem aqui: se as escolhas boas do
Batman produzem as escolhas ruins do Coruja, ou se as escolhas ruins do Coruja
produzem as escolhas boas do Batman). Portanto, se para cada escolha boa que os
heróis fazem existe uma escolha má correspondente em outra realidade, disso se
segue que à nossa Liga da Justiça, defensora da verdade e da justiça,
corresponde em outra realidade uma Liga da Injustiça (ou, como é chamada no
longa, “Sindicato do Crime”) que causa injustiças e mentiras. Não importa o
quanto o Superman se esforce em nosso mundo. Em outro mundo, ele possui um
correspondente exato, tão poderoso quanto, mas moralmente oposto, chamado de
Ultraman. Tanto quanto o Superman protege nossa vida e liberdade, Ultraman
massacra estes mesmos valores em outra realidade. Então resta-nos questionar:
se para cada bem produzido em um mundo real há um mal produzido em outro mundo
igualmente real, então que sentido há em fazer o bem (ou mesmo o mal)?
Refletindo sobre isso, o personagem Coruja percebe quantas
“implicações filosóficas” intrigantes há aí. E sua conclusão filosófica não
poderia ser mais niilista. Para o Coruja, a totalidade da realidade é um erro,
um empreendimento sem qualquer sentido, e, por isso, a “única ação realmente
significativa” (uma vez que todas as outras não possuem verdadeiro significado
moral na medida em que coexistem com ações paralelas e moralmente opostas) é
aquela que destrói todo este processo de criação cósmica. E assim inicia-se a
busca do Coruja pela destruição da “Terra Primordial”, da qual derivaram todas
as outras, e cuja extinção ocasionaria a destruição de todas as outras Terras
paralelas. Apenas esta ação (de destruir a Terra primordial) não encontraria
uma ação correspondente e oposta em outra realidade. Logo, a única ação
realmente relevante.
Em um combate corpo-a-corpo com o Batman, o Coruja explica
suas conclusões filosóficas. Infelizmente, este talvez seja o único ponto em
que o filme me decepcionou. Diante das conclusões do Coruja, eu gostaria que
McDuffie colocasse na boca do Batman boas argumentações que demonstrassem ao
Coruja o erro de suas conclusões niilistas. Gostaria que o Batman dissesse
“Coruja, você está errado por tais e tais razões”. Mas o Batman não argumenta,
não demonstra ao Coruja seus erros. O homem-morcego se limita a enfrentar o Coruja,
e expressar seu desejo de continuar sobrevivendo e, consequentemente, de
impedir que o Coruja triunfe em seu plano de destruição universal. A frase mais
filosófica que Batman pronuncia é um tanto fora de contexto, e sem grandes
implicações para o poderoso dilema proposto por sua contraparte maligna: “nós
dois olhamos para o abismo... mas quando ele olhou de volta, você piscou”.
Frase muito expressiva, mas que não nos conduz a qualquer argumento. Isso me
leva a questionar: será que McDuffie, secretamente, concordava com o Coruja? Ou
será que o autor, mesmo não concordando com as argumentações do vilão, no
entanto não conseguiu encontrar argumentos que o contradissessem? Ou ainda, se
encontrou estes argumentos, talvez não quis expô-los na animação, por julgá-los
prolixos demais e, assim, resolveu contra-atacar o niilismo com a força
estética e expressiva da ação heroica dos personagens da Liga da Justiça?
Com relação a McDuffie, creio que jamais saberei a resposta.
Mas acredito que a segunda hipótese explique muito bem os sentimentos da
maioria dos telespectadores que assistiram ao filme. Nossa razão diz que o
Coruja está certo. Seus argumentos, aparentemente, não podem ser contraditados.
Mas, apesar disso, queremos que
Batman o detenha (ainda que o mesmo não apresente argumentos à altura); queremos que a Liga da Justiça continue
a lutar pelo bem, apesar de isso acarretar a existência do Sindicato do Crime. Queremos que nossos heróis perseverem em
sua tentativa de triunfo, apesar de que, assumindo a teoria do Coruja,
esse triunfo nunca possa ser inteiramente alcançado. Pois se levarmos sua
teoria às últimas consequências (o que não foi feito por McDuffie), então para
a derrota do Sindicato do Crime em sua Terra, surgiu um Sindicato do Crime
triunfante em outra Terra, e uma Liga da Justiça que foi desmantelada. E podemos
pensar até mesmo que, para a derrota do Coruja, corresponde a vitória de um
outro Coruja, e assim, esse outro Coruja teria destruído uma Terra Primordial
e, com isso, toda uma outra totalidade de Terras paralelas, o que nos levaria à
conclusão de que não poderia existir uma única Terra Primordial... Se a grande
lei do universo é na verdade a violação daquela que acreditávamos ser a maior
de todas as leis – o princípio da não-contradição – então toda e qualquer coisa
está condenada a coexistir sempre com seu contrário (ainda que este contrário
se manifeste em outra realidade). E assim, o bem sempre irá vencer e perder ao
mesmo tempo, ainda que vença em um mundo, mas perca em outro. Então a palavra
final teria que ser a do Coruja: “que importa?”.
Mas eu creio que exista um modo de contradizer o Coruja, e
provar filosoficamente que, apesar do bem jamais triunfar verdadeiramente, no
entanto, a busca pelo bem continua a se justificar. E meu argumento principal
consiste basicamente no seguinte: nossas
intuições morais não estão baseadas em resultados. Se a moralidade tivesse
uma base meramente pragmática ou utilitarista, isto é, se o bem se definisse
pelo seu resultado externo ou sua propriedade de produzir vantagens, então o
Coruja teria toda razão. Mas o fato é que nossa consciência moral emite juízos
e convicções que independem do sucesso de nossas ações. Antes, ela apenas emite
sentenças que valem em si mesmas. Dito de modo mais filosófico, nossa
consciência moral enuncia o que devemos fazer independentemente daquilo que
efetivamente fazemos e que efetivamente podemos concretizar. Em suma: ela
separa o mundo do Ser (isto é, o conjunto de relações causais e efetivas que
ocorrem no mundo externo) do mundo do Dever-ser (que se reporta apenas a nossas
regras morais e, portanto, enuncia aquilo que devemos fazer com uma certa
independência das relações causais e efetivas que se pronunciam e atualizam na
ordem do Ser). Mas tudo isso apreendemos de maneira não refletida, mas
intuitiva. Isto é, sabemos que a Liga da Justiça deve sempre fazer bem; apenas
não conseguimos justificar por quê. Por isso, torcemos pela Liga da Justiça,
ainda que saibamos que, assumindo a teoria do Coruja, esta mesma Liga da
Justiça nunca poderá triunfar absolutamente, senão muito relativamente.
Portanto, esta seria a grande lição deixada por “Justice League: crisis on two earths". A lição de que não importam as evidências científicas em
contrário, nossa consciência moral jamais abandonará suas convicções, porque
ela não está subordinada às leis que dirigem o mundo externo. Neste mundo
externo, vigora o fatalismo da causalidade física e a incerteza quanto ao
destino moral da humanidade. Em nosso mundo interno, diferentemente, percebemos nós mesmos como agentes livres e eternamente responsáveis pelas nossas ações,
independentemente de seus resultados e antecedentes.