Há muito tempo não me sentia tão tocado por uma história em
quadrinhos como me senti ao ler “Parábola” - história protagonizada por Norrin Radd - o Surfista Prateado - e escrita por Stan Lee e desenhada por Moebius. (Na verdade, creio que a última vez
que uma história me tocou tanto foi há uns 18 anos atrás, quando “Reino do
Amanhã” fora lançada pela primeira vez). Mas o que faz esta história ser tão fantástica?
Primeiramente, devo dizer que a arte de Moebius é realmente bela.
Certamente a versão de Moebius para o Surfista Prateado é uma das melhores que
já vi. Além disso, Moebius possui uma impressionante capacidade de transmitir,
por meio de sua arte, uma complexa mistura entre simplicidade e profundidade
espiritual. Como estou tratando aqui de uma impressão estética, faltam as palavras mais adequadas para explicar... na verdade, não há o que explicar: o trabalho de Moebius é simplesmente belo. Posso
apenas dizer que a arte de Moebius é oposta à arte de gente como Todd
Mcfarlane, Jim Lee ou Rob Liefeld: enquanto os traços de Mcfarlane e cia. esbanjam
sombras e minuciosos garranchos, em Moebius todos os traços são claros e
simples; e enquanto Mcfarlane e cia. faz tudo parecer infantil e superficial,
Moebius confere à história um intenso tom de profundidade poética e espiritual.
Basta olhar a capa de “Parábola” – com as belas expressões de Galactus e do
Surfista Prateado – para o leitor saber que esta não é uma história em
quadrinhos comum.
O Surfista Prateado de Moebius.
O Surfista Prateado de Moebius.
E assim chegamos ao outro elemento que faz esta HQ tão
especial: a história, ou, mais precisamente, os diálogos. Se a arte de Moebius
transmite profundidade, assim também fazem os diálogos escritos por Stan Lee. Na
verdade, parece-me que aquilo que Moebius realiza esteticamente – com seus
traços simples, mas ao mesmo tempo portadores de profunda riqueza espiritual –
Lee realiza intelectualmente, com diálogos por vezes ingênuos, mas carregados
de intensa sabedoria, intuição filosófica, e até mesmo beleza poética. E é
exatamente este último ponto que mais me impressiona: a intuição filosófica de
Stan Lee sobre o caráter geral da humanidade. Como na maioria das histórias do
Surfista Prateado (talvez em todas elas) escritas por Stan Lee, também em
“Parábola” vemos o mais nobre herói da Marvel diante de uma espécie humana predominantemente
ignorante, estúpida e selvagem. Discordando inteiramente da tradição filosófica
do Iluminismo, baseada na concepção segundo a qual o ser humano é, acima de
tudo, um ser racional, o Surfista Prateado de Stan Lee sustenta a triste
convicção de que o homem, apesar de possuidor de alguma racionalidade, ainda é
quase inteiramente dominado pelas suas paixões irracionais. Por este motivo,
quando o gigantesco Galactus chega à Terra, toda a humanidade se curva
fanaticamente diante do mesmo, e passa a venerá-lo como um deus. Como o próprio
Surfista Prateado constata, a raiz da veneração humana por Galactus não é a
busca pela virtude ou excelência moral, mas a malévola e insana idolatria pelo
poder. Pois Galactus é justamente isso: poder destituído de moralidade. E como o desejo de Galactus é a total corrupção e destruição da
humanidade, sua primeira ordem é o “façam o que quiserem”, e os fiéis, cegados
pelo próprio fanatismo, logo põem em prática a máxima de seu novo deus,
revogando a ordem social e instaurando em seu lugar o estado de pura mixórdia.
E o mundo, que já não era bom, torna-se ainda pior.
Antes que alguém possa concluir de maneira precipitada que “Parábola” seja algum tipo de crítica simplória às religiões, crítica esta cuja finalidade seria a de professar o ateísmo raso ao assumir máximas otimistas do tipo "são as religiões que cegam o homem e o predispõem à
irracionalidade"¹, devo dizer a semelhante intérprete que a mensagem da história é outra. Na verdade, “Parábola” é
uma verdadeira defesa do sagrado e do espírito divino. Não se pode assumir outro ponto de vista na medida em que o próprio protagonista, o Surfista Prateado, é uma representação de nossos arquétipos messiânicos, e, em especial, de Jesus Cristo. A afinidade entre Norrin Radd e Jesus Cristo não fica evidenciada apenas na moralidade totalmente cristã defendida pelo herói cósmico, mas até mesmo na ambiguidade comportamental assumida pelo Surfista diante da humanidade. Tal como o Cristo descrito em nossos evangelhos, também o Surfista Prateado alterna, com relação aos homens, entre sentimentos de severa condenação e profunda compaixão. Assim, em Mat. 17-17, Cristo se irrita: "Ó gente incrédula e perversa! Até quando deverei ficar convosco? Até quando terei de suportar-vos?". Também temos em Mat. 21-12 a famosa passagem na qual Jesus, furioso, expulsa violentamente todos os comerciantes do Templo, e destrói seus bens e mercadorias. Mas em Luc. 23-34, mesmo após o crucifixo, ele sente pena da humanidade: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem". De modo bastante parecido, o Surfista Prateado também mistura juízos de condenação² ("sinto pouca compaixão por eles... seus ferimentos são todos autoinfligidos") e de estoica tolerância motivada pela compaixão ("não são maus... apenas não pensam"). Logo, como poderia o Surfista Prateado, um personagem profundamente religioso, ser utilizado para fins antirreligiosos? Certamente ele não poderia. Portanto, a crítica de "Parábola" não pode recair sobre a religião, mas sim sobre o fanatismo religioso (do qual o próprio Cristo foi uma grande vítima).
Em razão do forte enraizamento na moralidade cristã, "Parábola" também exibe uma forte e explícita crítica ao hedonismo – uma vez que a máxima de Galactus é justamente “faça o que tu queres...” – e, mais sutilmente, ao relativismo moral – nas palavras do próprio Galactus: “não existe nada errado! Não existe pecado! Prazer é tudo!”³. O fanatismo religioso certamente pode levar uma massa de indivíduos à prática de semelhantes máximas e ideias. Mas a ausência completa de religião e de ligação com o sagrado também pode conduzir os indivíduos ao mesmo estágio de falência moral. Portanto, entre os extremos do fanatismo religioso e da descrença radical, “Parábola” propõe a fé racional. Daí a advertência do Surfista Prateado: "fé sem juízo apenas degrada o espírito divino".
A crítica de Stan Lee parece não atingir apenas o comportamento moral do ser humano, mas também, por extensão, seu comportamento político. É bastante digno de nota o fato de que as pessoas parecem venerar Galactus pelo fato de seu discurso libertino soar como um discurso de "liberdade" - justamente a liberdade favorita do populacho, consistente em poder fazer tudo o que se deseja de acordo com os próprios desígnios pessoais. Galactus oferece à humanidade um mundo no qual todos têm direitos, e nenhum dever. Eventualmente, esta denúncia do populismo e da curta inteligência das massas torna-se mais direta, quando, por exemplo, o Surfista observa que "não há multidão agressiva que ouça uma voz sensata solitária".
“Parábola” também se opõe àquela outra tendência tão irmanada ao relativismo moral: o utilitarismo. Se o relativista defende a ideia de que não há critérios absolutos de avaliação moral, e que, portanto, qualquer ato pode ser igualmente considerado moral ou imoral, sem a menor contradição; o utilitarista, imbuído do mesmo espírito, dirá que um ato é moralmente bom apenas porque suas consequências são úteis ou desejáveis, e moralmente ruim apenas porque suas consequências são inúteis ou indesejáveis. Contrariando inteiramente as concepções utilitaristas, o Surfista Prateado não se importa com a utilidade que seus atos heroicos produzem: ele sabe que tentar defender a humanidade de sua própria loucura, selvageria e idolatria irracional pode ser algo bastante inútil e infrutífero, mas ele prossegue em sua missão heroica sem hesitação. Como o próprio herói se expressa: “que nosso objetivo seja sempre o que nos leva em frente, e não as chances de sucesso”.
Em diálogos como este, fica evidente a ética
não-utilitarista assumida pelo Surfista Prateado de Stan Lee.
Em razão do forte enraizamento na moralidade cristã, "Parábola" também exibe uma forte e explícita crítica ao hedonismo – uma vez que a máxima de Galactus é justamente “faça o que tu queres...” – e, mais sutilmente, ao relativismo moral – nas palavras do próprio Galactus: “não existe nada errado! Não existe pecado! Prazer é tudo!”³. O fanatismo religioso certamente pode levar uma massa de indivíduos à prática de semelhantes máximas e ideias. Mas a ausência completa de religião e de ligação com o sagrado também pode conduzir os indivíduos ao mesmo estágio de falência moral. Portanto, entre os extremos do fanatismo religioso e da descrença radical, “Parábola” propõe a fé racional. Daí a advertência do Surfista Prateado: "fé sem juízo apenas degrada o espírito divino".
"Fé sem juízo apenas degrada o espírito divino", diz o Surfista Prateado.
O "deus" Galactus professa a religião do hedonismo e relativismo moral (não seriam precisamente estas as "religiões" com maior número de adeptos na atualidade?)
O "deus" Galactus professa a religião do hedonismo e relativismo moral (não seriam precisamente estas as "religiões" com maior número de adeptos na atualidade?)
A crítica de Stan Lee parece não atingir apenas o comportamento moral do ser humano, mas também, por extensão, seu comportamento político. É bastante digno de nota o fato de que as pessoas parecem venerar Galactus pelo fato de seu discurso libertino soar como um discurso de "liberdade" - justamente a liberdade favorita do populacho, consistente em poder fazer tudo o que se deseja de acordo com os próprios desígnios pessoais. Galactus oferece à humanidade um mundo no qual todos têm direitos, e nenhum dever. Eventualmente, esta denúncia do populismo e da curta inteligência das massas torna-se mais direta, quando, por exemplo, o Surfista observa que "não há multidão agressiva que ouça uma voz sensata solitária".
“Parábola” também se opõe àquela outra tendência tão irmanada ao relativismo moral: o utilitarismo. Se o relativista defende a ideia de que não há critérios absolutos de avaliação moral, e que, portanto, qualquer ato pode ser igualmente considerado moral ou imoral, sem a menor contradição; o utilitarista, imbuído do mesmo espírito, dirá que um ato é moralmente bom apenas porque suas consequências são úteis ou desejáveis, e moralmente ruim apenas porque suas consequências são inúteis ou indesejáveis. Contrariando inteiramente as concepções utilitaristas, o Surfista Prateado não se importa com a utilidade que seus atos heroicos produzem: ele sabe que tentar defender a humanidade de sua própria loucura, selvageria e idolatria irracional pode ser algo bastante inútil e infrutífero, mas ele prossegue em sua missão heroica sem hesitação. Como o próprio herói se expressa: “que nosso objetivo seja sempre o que nos leva em frente, e não as chances de sucesso”.
Em diálogos como este, fica evidente a ética
não-utilitarista assumida pelo Surfista Prateado de Stan Lee.
E, infelizmente, em um dos desfechos mais tristes e trágicos já apresentados em
uma história em quadrinhos, o Surfista Prateado, que consegue enfim expulsar o
todo-poderoso Galactus do planeta Terra, no entanto não é capaz de expulsar do
coração e mente humanos toda a sua baixeza moral e intelectual. A ignorância e
loucura humana não cedem nem mesmo diante do exemplo e do heroísmo do Surfista
Prateado, e, por isso, ao herói resta apenas recolher-se, resignado, na solidão
espacial. Sim, o herói fracassa. Ironicamente, o único a reconhecer os sacrifícios do Surfista
Prateado é justamente um dos vilões da história, o corrupto líder religioso
Candell, o qual, ao final, conclui desesperado que a humanidade é moralmente indigna: "Por que fez isso? Você podia ter tudo! Podia ser um deus! Jogou tudo fora... só por nossa causa! E o mais trágico é que... nós não merecemos!". Esta parábola seria uma grande calúnia
dirigida à humanidade... se não fosse profundamente verdadeira.
Notas:
¹Sim, otimista, pois por trás de semelhante máxima se esconde a crença (muito mais absurda do que qualquer crença religiosa!) na perfectibilidade e inocência da raça humana, pois quando se afirma semelhante máxima, está se afirmando com isso que a baixeza humana é "efeito" de uma "causa" externa à própria humanidade. Isto é, julga-se que a humanidade é naturalmente e essencialmente boa, embora seja corrompida por inimigos externos, tais como o "fanatismo religioso". Mas é óbvio que o fanatismo e idolatria irracional - sobretudo por figuras que representam poder - não é resultado de uma imposição externa (sabe-se lá de quem!), mas é emanação direta da própria imperfeição intelectual e moral inerentes à raça humana. Stan Lee defende este ponto de vista ao inserir a seguinte reflexão na cabeça do Surfista Prateado: "eles têm sede de liderança como um bebê anseia pelo leite materno... certamente é por isso que são presas tão fáceis de tiranos e ditadores". Como um bebê que anseia pelo leite materno - logo, estamos diante de uma inclinação humana originária, radical e congênita, tal como o desejo instintivo pelo leite materno.
²Na terceira edição de sua primeira série solo (escrita por Stan Lee e desenhada por John Buscema), o Surfista Prateado perde totalmente a paciência com a humanidade, lembrando muito a passagem de Mat. 21-12. Vale lembrar que esta edição ficou marcada pela primeira aparição de Mefisto, cujo maior desejo é corromper a alma pura do Surfista. Qualquer semelhança com Mat. 4 (onde Cristo é tentado no deserto pelo diabo) não pode ser mera coincidência.
³Alguém poderia me objetar dizendo que a frase "não existe nada errado! Não existe pecado! Prazer é tudo", não reflete posições relativistas, mas apenas hedonistas ou moralmente niilistas. Mas dizer que um mesmo ato pode ser relativamente bom ou relativamente mau, é o mesmo que dizer que não existe nada que seja bom em si, ou mau em si, ou intrinsecamente bom, ou intrinsecamente mau, etc. Ora, do ponto de vista semântico, a mensagem de Galactus é justamente esta: "não existe nada errado (em si)! Não existe pecado (em si)!". O relativismo moral é apenas hedonismo e niilismo disfarçado.
Notas:
¹Sim, otimista, pois por trás de semelhante máxima se esconde a crença (muito mais absurda do que qualquer crença religiosa!) na perfectibilidade e inocência da raça humana, pois quando se afirma semelhante máxima, está se afirmando com isso que a baixeza humana é "efeito" de uma "causa" externa à própria humanidade. Isto é, julga-se que a humanidade é naturalmente e essencialmente boa, embora seja corrompida por inimigos externos, tais como o "fanatismo religioso". Mas é óbvio que o fanatismo e idolatria irracional - sobretudo por figuras que representam poder - não é resultado de uma imposição externa (sabe-se lá de quem!), mas é emanação direta da própria imperfeição intelectual e moral inerentes à raça humana. Stan Lee defende este ponto de vista ao inserir a seguinte reflexão na cabeça do Surfista Prateado: "eles têm sede de liderança como um bebê anseia pelo leite materno... certamente é por isso que são presas tão fáceis de tiranos e ditadores". Como um bebê que anseia pelo leite materno - logo, estamos diante de uma inclinação humana originária, radical e congênita, tal como o desejo instintivo pelo leite materno.
²Na terceira edição de sua primeira série solo (escrita por Stan Lee e desenhada por John Buscema), o Surfista Prateado perde totalmente a paciência com a humanidade, lembrando muito a passagem de Mat. 21-12. Vale lembrar que esta edição ficou marcada pela primeira aparição de Mefisto, cujo maior desejo é corromper a alma pura do Surfista. Qualquer semelhança com Mat. 4 (onde Cristo é tentado no deserto pelo diabo) não pode ser mera coincidência.
³Alguém poderia me objetar dizendo que a frase "não existe nada errado! Não existe pecado! Prazer é tudo", não reflete posições relativistas, mas apenas hedonistas ou moralmente niilistas. Mas dizer que um mesmo ato pode ser relativamente bom ou relativamente mau, é o mesmo que dizer que não existe nada que seja bom em si, ou mau em si, ou intrinsecamente bom, ou intrinsecamente mau, etc. Ora, do ponto de vista semântico, a mensagem de Galactus é justamente esta: "não existe nada errado (em si)! Não existe pecado (em si)!". O relativismo moral é apenas hedonismo e niilismo disfarçado.