Arte de Mike Zeck
Schopenhauer dizia que o
microcosmo reflete todo o macrocosmo, e, por isso, para que você conheça o
todo, basta prestar muita atenção em alguma de suas partes. Este tipo de
convicção também parece ter orientado a prática antropológica e etnográfica de
Malinowski. E é por isso que, por meio deste texto, sinto-me autorizado a
tentar concluir algo sobre a humanidade a partir de um fato bastante singular,
e que muitos julgariam de pouca importância. Refiro-me às atitudes do escritor
de quadrinhos Gerry Conway em relação a uma famosa criação sua, o Justiceiro
(ou Punisher).
Já expliquei que o símbolo
associado ao Justiceiro, a famosa caveira, tornou-se em nossa cultura um sinal
de Justiça Retributiva, bem como de outros valores que a ela estão marginalmente
associados: a coragem, o fortaleza, a ousadia, e até mesmo a agressividade.
Afinal, a Justiça não é uma virtude para pessoas passivas. Sim, desde Platão
sabemos que Justiça é harmonia, um estado de ausência de lesividade, e é por
isso que ela fora definida na clássica fórmula latina como neminem laedere – “não lesar ninguém”. Entretanto, o justo não é
somente aquele “não lesa ninguém”, mas também aquele que busca impor a punição
àqueles que lesaram alguém. Afinal, Justiça é sobretudo equivalência,
igualdade, proporção, e disso sabemos muito bem desde Aristóteles (que expôs
tudo isso muito bem até o ponto em que os preconceitos da época não
atrapalharam seu raciocínio, por exemplo, ao supor existir diferente dignidade
entre aquele que desempenha cargos públicos e aquele que não desempenha-os).
Consequentemente, aquele que
destrói aquele estado de harmonia deve ser penalizado por isso, e esta pena
deve ser proporcional à gravidade do ato lesivo. Eis aí o ponto que define o
Justiceiro e o símbolo de sua caveira: Frank Castle pune os homicidas com a
morte, pois somente a vida paga a vida. E, convenhamos, impor a punição
estritamente justa não é para qualquer um. É preciso algum rigor espiritual para
isso, pois, no caso do homicídio, ser justo significa condenar à morte aquele
que matou alguém (ou, para ser mais preciso, significa executar a pena que o próprio homicida se impôs ao tirar a vida de alguém).
Claro, a cabeça da maioria das
pessoas não articula conscientemente toda esta miríade de conceitos que estão implicados na caveira do Justiceiro, e por isso percebe-os sob
noções mais simplórias, ou mesmo através de sentimentos irrefletidos. No fim
das contas, toda esta intrincada explicação é resumida na impressão “badass” que aquele símbolo da
caveira causa nas pessoas. É por isso que a caveira se popularizou entre
aqueles cuja profissão está intrinsecamente associada ao conflito físico ou, ao
menos, à possibilidade de esse tipo de conflito ocorrer: soldados e policiais.
Exemplo emblemático disso foi o
famoso sniper norte-americano Chris Kyle. Durante o tempo em que serviu na Guerra
do Iraque, Kyle atuou em uma unidade autointitulada de The Punishers, cujos membros costumavam adornar seus uniformes e
equipamentos com o símbolo do Justiceiro (este fato é mostrado no filme sobre a
vida de Kyle, American Sniper,
dirigido por Clint Eastwood). O próprio Kyle justificou em sua autobiografia a
predileção da unidade pelo famoso personagem da Marvel Comics, nos seguintes
termos: “ele matava caras maus. Ele fazia
com que os criminosos o temessem [...]. Nós pintávamos [a caveira] com spray em
nossos Hummers e uniforme, e em nossos capacetes e em todas as nossas armas.
Nós a pichávamos em todo prédio ou muro sempre que podíamos, nós queríamos que
as pessoas soubessem: ‘nós estamos aqui e queremos acabar com vocês’”(1).
Na época, Gerry Conway manifestou
sua desaprovação: “Eu era uma pessoa
contra a guerra. Eu argumentei contra ela, e certamente escrevi contra ela
[...] Eu estou pasmo [...] Como criador, é muito difícil pra mim ver isso.
Ninguém pediu minha permissão”(2). Esta
última frase revela um nível de pretensão tão descabido que só podemos
considerá-la como um deslize da parte de Conway. Afinal, ninguém precisa pedir
permissão a Conway. Os soldados não estavam comercializando produtos com a
marca “The Punisher”. Eles estavam homenageando a criação de Conway. É realmente
triste constatar que Conway, ao ver sua criação sendo adorada por homens que arriscaram
suas vidas para proteger ele e seu país, não possa manifestar nada além de
descontentamento e reprovação. Conway não gosta de guerras? Ok. Mas ele criou
um personagem que simboliza o aspecto tanto trágico quanto heroico da guerra (3). E
certamente lucrou com isso.
Depois, tivemos o caso dos
policiais norte-americanos. Já comentei sobre isso no texto anterior, e expus a
forma um tanto tola como a Marvel Comics lidou com o assunto (o que só serviu
para denunciar a própria hipocrisia e petulância de seus escritores e
editores). Qual foi a resposta de Conway quando questionado sobre isso?
Novamente, críticas:
“Pra mim, é perturbador sempre que vejo as
autoridades abraçando a iconografia do Justiceiro, porque o Justiceiro representa
a falha do sistema legal. Ele acusa o colapso da autoridade moral social e a
realidade de que algumas pessoas não podem depender de instituições como a
polícia ou o exército para agirem.
O
anti-herói vigilante é fundamentalmente uma crítica ao sistema legal, um
exemplo do colapso social, então quando policiais colocam a caveira do
Justiceiro em seus carros ou quando militares usam patches da caveira, eles
estão basicamente indo para o lado de um inimigo do sistema. Eles estão
adotando uma mentalidade de fora-da-lei. Não importa se você pensa que o que
ele faz é ou não justificado, se você admira ou não seu código moral, o fato é
que ele é um fora-da-lei. Ele é um criminoso. A polícia não deveria adotar um
criminoso como seu símbolo.
[...]
Meu ponto de vista é o de que o Justiceiro é um anti-herói [...] Se um oficial
da lei, representando o sistema de justiça, coloca o símbolo de um criminoso em
sua viatura [...] ele ou ela está fazendo uma declaração muito imprudente sobre
seu entendimento da lei”.(4)
E talvez Conway esteja fazendo
uma declaração muito imprudente sobre seu entendimento da mentalidade desses
policiais. Eu duvido que eles associem a caveira do Justiceiro ao fato do mesmo
ser um “fora-da-lei”. A caveira está associada à valentia, à justiça, e até a
sentimentos mais simplórios. Mais ou menos como disse Chris Kyle, a caveira
significa para muitos algo como “somos durões e podemos acabar com vocês”.
Conway está supondo que esses policiais são aficionados na leitura de The Punisher, o que provavelmente não é
o caso. E mesmo que fosse, o Justiceiro não é totalmente contra a lei. Ele vai
atrás daqueles que infringem a lei (sobretudo aquela que proíbe o homicídio).
Isso demonstra que há cumplicidade entre o personagem e o sistema legal. Ou ao
menos uma cumplicidade parcial, uma vez que, sem dúvida, o personagem infringe
a lei processual. Além disso, convenhamos... a definição de “criminoso” é
simplesmente “aquele que desobedece leis”, ou “fora-da-lei”, como Conway supõe?
Considerando a quantidade de leis positivas absolutamente injustas que já foram
sancionadas e aplicadas ao longo da história da humanidade, eu diria que aquela
definição de criminoso é criminosa.
Devo ainda acrescentar que o argumento de que o Justiceiro
simboliza a falência do sistema legal, e que policiais servem a este sistema e
que, por isso, policiais e a simbologia do Justiceiro seriam totalmente incompatíveis entre si, é extremamente fraco. Sim,
policiais servem ao sistema legal. Mas disso não se segue que eles estejam
totalmente felizes com o sistema legal. Se os policiais estão frustrados com o
sistema, não vejo por que razão eles não podem se manifestar a respeito. No
entanto, reitero que eu não acredito que este seja o motivo principal do uso da
caveira em suas viaturas. Creio que o motivo seja muito mais simplório, e até mais estético do que filosófico. Eles não estão protestando contra o sistema legal; estão apenas mandando um recado... algo como "criminosos, tremei!".
Aqui, alguém pode dizer: “o Conway
não gosta que usem o símbolo do Justiceiro simplesmente porque ele não acredita
que ele seja um bom exemplo, ponto”. De fato, o próprio Conway disse sobre
Frank Castle que, em sua “opinião, ele não é uma boa pessoa”(5). Mas se este é o ponto de Conway, por
que diabos ele deseja que o símbolo com o qual ele próprio não simpatiza
(apesar de ter ajudado a criar) seja utilizado por pessoas com as quais ele
simpatiza? Pois é esta a sua postura adotada relativamente ao movimento Black
Lives Matter (BLM). Em sua campanha - iniciada em junho deste ano, e que
objetiva associar o símbolo do Justiceiro ao BLM, e conseguir fundos para
financiar este movimento – Conway escreve que
Por muito tempo, símbolos associados ao
personagem que eu co-criei têm sido cooptados por forças de opressão e para
intimidar americanos negros. Este personagem e seu símbolo nunca foram criados
como um símbolo de opressão. Este símbolo é o de falência sistemática da
justiça igualitária [equal justice]. É hora de reivindicar este símbolo para a
causa da justiça igualitária [equal justice] e do Black Lives Matter (6).
Em outras palavras, agora o
Justiceiro não é mais um símbolo que significa o “fora-da-lei”, ou mesmo um
“criminoso”. Frank Castle não é mais uma má pessoa. Agora ele é um campeão da
“equal justice”. Como explicar isso?
Policiais não podem usar a caveira, pois ela significa “crime”. Mas
participantes do BLM podem usar a caveira. Ora, então o BLM é um movimento
criminoso? Não, não... esqueça a retórica anterior. Agora Conway decidiu que a
caveira é sobre justiça, equal justice!
Se é assim, por que os policiais e os militares no Iraque não poderiam ostentar
um símbolo que se refere a tão belo princípio? Por que policiais e militares
não podem ser igualmente favoráveis à equal
justice? Porque, naquela oportunidade, Conway só enxergava aspectos
moralmente reprováveis no simbolismo do Justiceiro. Mas agora sua interpretação
mudou. Como desfazer este imbróglio?
Não vejo saída senão admitindo o
seguinte: o problema de Conway não era tanto com o personagem, mas com as
pessoas que homenageavam o personagem que ele criou. O Ego de Conway não
suportava ver o produto de seu trabalho criativo ser homenageado por pessoas
cujas atividades ele desgosta. Por ser simpático ao BLM, ele deseja ver o
símbolo que ele ajudou a criar associado àquilo que o agrada. Só assim consigo
explicar por que a retórica da crítica cedeu espaço à retórica do proselitismo,
e Frank Castle, de repente, voltou a ser um cara legal.
E agora posso retornar ao ponto
que inaugurou deste texto, isto é, sobre como fenômenos microcósmicos podem pôr
às claras aspectos macrocósmicos. A conduta dúbia de Conway revela como a mente
humana pode se meter em autocontradições, guiada por orientações emocionais
muitas vezes ocultas até mesmo para o próprio agente. E, o mais interessante, é
o modo como “douramos a pílula”, isto é, o modo como ocultamos estas
orientações emocionais através da máscara do moralismo e do discurso
aparentemente esclarecido. E, sobretudo, o quanto nosso Ego, nosso amor de si
mesmos, funciona como uma força inconsciente no processo de preservação de
nossas pretensões narcisistas. No fundo, Conway apenas não quer ter sua imagem
refletida em certos espelhos, e eu acho que ele vê algo dele no velho Castle,
porque ele é foi um dos criadores do personagem. Daí ele se incomodar tanto ao ver a imagem do personagem ser apropriada por indivíduos atuantes dentro de certos grupos. Não devemos nos esquecer o modo como ele se expressou em sua campanha: o Justiceiro fora "cooptado" ("co-opted") pelo outro grupo, e agora é hora de ele ser "reivindicado" ("it's time to claim this symbol...") por nosso grupo. Sintomático. Talvez este seja o cúmulo do narcisismo:
julgar que certos espelhos são indignos de refletirem nossa própria imagem. E, para o ególatra, a
imagem refletida é tudo: ela tem prioridade até mesmo em relação à coerência
consigo mesmo. É como se Conway dissesse: “não importa o que eu disse antes; eu
apenas não quero ver minha imagem refletida naqueles
caras, e quero vê-la refletida nestes
caras”. Meu palpite é o de que esta não é uma característica exclusiva de
Conway, e sim que sua atitude apenas revela um padrão bastante disseminado em
nossa espécie. Mas por ora, é só um palpite. A conversão desta constatação em
juízo universal demandaria um trabalho de verificação de vários casos
particulares que não pretendo executar no momento.
Como leitor de quadrinhos de
longa data, eu só gostaria de fazer mais duas considerações. Primeiro,
registrar minha admiração por Gerry Conway. Apesar do que escrevi até o momento
poder ser visto como uma crítica a ele, o fato é que tenho grande admiração por
seu trabalho. Não só por ter ajudado a criar o Justiceiro, mas sobretudo por causa das
histórias que ele escreveu do Homem-Aranha durante os anos 70 e 80, e que foram
as primeiras histórias que tive o prazer de ler. Considero-as a melhor fase do
herói aracnídeo. Por isso, Gerry Conway está entre meus escritores favoritos.
A segunda coisa que eu gostaria
de fazer é manifestar uma preocupação. Espero que o texto escrito por Conway
para promover esta artificial e forçada parceria entre Justiceiro e BLM não faça escola
entre os escritores da Marvel, que já causaram danos demais a Frank Castle.
Não, não estou dizendo que sou contra pessoas utilizarem símbolos do Justiceiro
na luta contra práticas racistas. Sou contra os tolos de mente acrítica (aquela
turma do “se o criador falou, então está falado”) começarem a restringir o Justiceiro à luta contra
racistas, como se o racismo fosse a única manifestação da injustiça.
Aliás, a expressão equal justice pode facilmente induzir
cabecinhas ideologizadas (que se caracterizam por sua estreiteza de pensamento,
já que costumam limitar-se aos lobbies e novilínguas dos grupelhos aos quais
pertencem) a imaginarem que o Justiceiro luta apenas por igualdade racial. Na
verdade, esta expressão, equal justice,
é um pleonasmo pueril. Pois a justiça é sempre sobre igualdade ou
proporcionalidade (quando a igualdade literal não é possível) entre crime e castigo. E é por isso que
tanto policiais, soldados, ou civis comuns que são vítimas de violência
motivada pelo racismo, podem se sentir à vontade junto aos símbolos
relacionados ao Justiceiro: ele representa Justiça Retributiva, e esta impõe a
proporção correta entre crime e castigo. No contexto deste universo moral, não
há negros ou brancos, mas apenas culpados ou inocentes, e a punição
proporcional ao dano causado. Esta é uma mensagem universal e por isso pode ser
significativa para qualquer um. Restringi-la a uma mania, a um modismo,
empobrece-a. Em todo caso, fico feliz que Conway finalmente percebeu que a caveira
do Punisher significa justiça. Agora
ele precisa perceber que, pelas mesmas razões, o símbolo da caveira é adequado
a qualquer um e em qualquer contexto de busca por justiça retributiva, e isso
inclui soldados e policiais.
O Justiceiro pode ser vítima daquele mesmo
empobrecimento, se restrito a uma luta particular e à perspectiva de um grupo
particular. O que torna o Justiceiro extremamente interessante é o fato de que,
para ele, o mundo não se divide em cores, mas entre os inocentes que devem ser
protegidos e os culpados que devem ser punidos. E estas duas classes podem ser
encontradas em qualquer grupo, a depender dos critérios de definição. Do ponto
de vista econômico, há os ricos e os pobres; do racial, os negros e os brancos;
do religioso, os crentes e os ateus; do político, os direitistas e os
esquerdistas. Mas pela perspectiva de Frank Castle, isso tudo é de pouca
importância, pois culpados e inocentes estão disseminados e misturados em todos
estes grupos, e esta é a única classificação que realmente importa para o
Justiceiro: a classificação moral, exclusivamente baseada na escala da culpa e
da inocência