quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O que podemos aprender com 007 e por que Roger Moore foi seu melhor intérprete

 

 


Quando dedico meu tempo a assistir algum filme ou ler alguma obra de ficção, faço-o não somente na esperança de obter algum entretenimento, mas também motivado pelo desejo de aprender algo. Com os filmes e livros do agente secreto 007 não é diferente. Mas o que a criação do escritor Ian Fleming teria a me ensinar?

Penso que James Bond representa um ideal de postura masculina que tem se perdido cada vez mais. E se o ensino se dá em grande parte pelo exemplo, então é válido prestar atenção nos exemplos imaginários de conduta e caráter de James Bond. O velho agente britânico ainda se coloca na tradição de heróis ocidentais que incorporam as quatro virtudes cardeais: a inteligência, a coragem, a temperança e a justiça. Talvez alguém possa se surpreender quando associo James Bond e temperança, em razão de sua fama de bon vivant e mulherengo. Mas acredito que essa seja uma interpretação superficial do personagem. É verdade que Bond é um apreciador de vodca martini ("shaken, not stirred") e ávido colecionador de mulheres. Porém, suas predileções privadas não diminuem em nada seu senso de dever: em primeiro lugar vêm sempre os imperativos do “serviço secreto de Sua Majestade”[1].

Bond parece representar o homem que, apesar de suas vocações mundanas, não deixou de cultivar a virtude da sabedoria e, por isso mesmo, embora aceite viver esse mundo e desfrutar dos prazeres que o mesmo oferece, não se esquece que tais prazeres são transitórios, traiçoeiros e volúveis. No capítulo 16 do livro Viva e deixe morrer (Live and let die), escrito por Ian Fleming, Bond tem um momento de introspecção no qual diz a si mesmo: "a vida inteira é um jogo de cartas com a morte". No capítulo 7 de Cassino Royale, Fleming descreve parte da psique de Bond nos seguintes termos: "um dia (e ele aceitava esse fato) ele seria colocado de joelhos pelo amor ou pela sorte. Quando isso acontecesse, ele sabia que também seria marcado pelo mortal sinal de interrogação que reconhecera tão frequentemente nos outros, a promessa de pagar antes de perder: a aceitação da falibilidade". James Bond não afirma este mundo porque está cegado pelo próprio apetite animal de gozá-lo, como no caso da maioria das pessoas. Ao contrário: sua aceitação deste mundo é consciente, calculada e livre de falsas expectativas — e esta é a única aceitação digna de um verdadeiro homem amadurecido. Daí porque se opera em Bond a curiosa síntese entre o bon vivant e o estoico, e porque o agente britânico conserva sua tranquilidade e firmeza aristocráticas tanto nos momentos de cumprimento do dever quanto nos momentos de fruição dos prazeres.

Pois bem: de todos os intérpretes de 007 no cinema, penso que nenhum ator incorporou com tanta naturalidade esta postura do virtuoso aristocrático quanto o ator inglês Roger Moore. Exemplo emblemático do que estou tentando dizer podemos encontrar numa cena em particular do filme Octopussy. Após passar a noite com Magda (que é funcionária do vilão Kamal Khan), o Bond de Roger Moore descobre tarde demais que estava sendo enganado pela moça: ele só tem tempo de observá-la escapar pela janela de seu quarto carregando um item precioso. Qual a reação do 007? Irritação? Estupefação? Fúria? Desejo de vingança? Nada disso: seu semblante é de tranquila ironia [2], e seu comportamento, de frieza e concentração. No fundo, Bond não nutria grandes esperanças em relação à moça. O herói de Ian Fleming sabe o quanto a sorte é traiçoeira e o quão volúveis são as ofertas deste mundo. E Roger Moore esboçava como ninguém em seu semblante esse tipo de percepção. É como se, diante da traição sofrida por James Bond, o ator inglês estivesse tranquilamente nos dizendo sobre a garota (mesmo sem pronunciar uma única palavra naquele momento): “ora, ora… e não é que minhas péssimas expectativas a respeito dela foram confirmadas?”.

Em menor medida, também Sean Connery conseguia representar esse tipo de postura e expressão, e por isso ele é meu intérprete favorito depois de Roger Moore. Em contraste, não tenho muita simpatia pela versão do último Bond, interpretado pelo festejado Daniel Craig. Penso que esse Bond mais moderno está contaminado pelo atual afã de confundir rispidez e seriedade: hoje tudo tem de ser grave e recheado de explosões emocionais, ou, ao menos, temperado por constantes expressões de rancor, pois, do contrário, não se é suficientemente sério ou “realista” (como se a realidade não nos desse motivo para rir de vez em quando) [3]. O Bond de Daniel Craig é por vezes rancoroso demais para mim, como é constantemente rancorosa toda a gentinha juvenil desta geração. Mas o rancor é a típica reação de pessoas que não cultivaram sabedoria suficiente para perceber como este mundo funciona e, por consequência disso, esperam ansiosamente dele aquilo que ele não pode dar, ou aguardam angustiadas que ele se torne aquilo que nunca foi e nunca será. Da ausência daquele tipo de compreensão sobre o mundo resulta a frustração de expectativas fantasiosas, e desse tipo de frustração resulta o rancor. Logo, com sua expressão sempre rancorosa, o Bond de Daniel Craig revela carecer justamente daquela madura e elegante resignação, daquele sarcasmo espirituoso que tanto caracterizam James Bond no imaginário popular e o individualizam em relação a outros aventureiros fictícios que têm nas próprias habilidades físicas e no domínio de armas de fogo a principal fonte de resolução de seus problemas. Sem seu tom altaneiro, sua maturidade, elegância e espirituosidade, no que James Bond se diferencia de um Jason Bourne?

Mas se aquelas qualidades faltam no James Bond de Daniel Craig, elas transbordam no James Bond de Roger Moore, em cuja interpretação sabia alternar naturalmente entre o leve semblante espirituoso, típico do homem experiente que entendeu como este mundo absurdo funciona e por isso não se ressente mais dele, e o sério olhar concentrado (mas jamais virulento) do frio agente que tem um dever a cumprir. Ninguém soube representar de modo tão natural quanto Roger Moore essa mistura aristocrática, em um mesmo homem, da frieza do guerreiro com a espirituosidade do sábio, e penso que é nessa mistura que está a essência de James Bond - ou, ao menos, daquele James Bond que pode nos ensinar algo, na medida em que nos oferece um modelo de conduta masculina ideal: um modelo rico em virtudes e livre de afetações.    

 


Notas
______________________________________

[1] Lembremos do diálogo entre Bond e uma amante sua na icônica abertura do filme O espião que me amava (The spy who loved me): 

- Where are you going?
- Sorry darling, something came up.
- But James... I need you!
- So does England.

[2] No livro Casino Royale, Ian Fleming fornece ao leitor a oportunidade de penetrar na caracterologia de Bond, ao descrever sua expressão facial: "his grey-blue eyes looked calmly back with a hint of ironical inquiry" (capítulo 8). Bond tem uma expressão "calma" com um "traço de inquirição irônica". Essa me parece ser também a expressão facial mais típica de Roger Moore ao interpretar Bond. Essa também é a expressão predominante na interpretação de Connery, Brosnan e Lazenby. Já Timothy Dalton e Daniel Craig transmitem maior apatia e frieza, embora o Casino Royale de Fleming possa, em igual medida, endossar esse tipo de interpretação. Ao conhecer Bond, Vesper diz "he reminds me rather Hoagy Carmichael, but there is something cold and ruthless in his..." (capítulo 5).  

[3] Algumas pessoas, quando querem criticar a fase Moore, mencionam o fato de que o mesmo se fantasiou de palhaço no filme Octopussy. De minha parte, julgo que a cena mais embaraçosa de toda a franquia de 007 não é a do Moore palhaço, mas aquele momento histriônico de Casino Royale, em que Daniel Craig e Eva Green decidem compartilhar suas mágoas abraçados, de roupa, sob o chuveiro ligado – típico exagero dramático que tão bem traduz o pathos excessivamente sentimentalista deste século XXI e que por isso hoje é bastante levado a sério, mas que certamente será ridicularizado pela posteridade.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Algumas reflexões sobre o episódio "Ética", de Jornada nas Estrelas, a Nova Geração

 


O tenente Worf sofre um sério acidente durante um serviço de inspeção na Enterprise, que o deixa paraplégico. Em razão dos costumes de uma raça guerreira como a Klingon, que julga nada ser mais digno do que uma vida dedicada às batalhas, Worf prefere morrer a viver sem poder movimentar suas pernas. Por isso, ele pede ao oficial Riker que o mate em uma cerimônia klingon de execução.

Em linhas bastante gerais, este é o enredo de um dos melhores episódios de Jornada nas Estrelas – a Nova Geração, muito apropriadamente intitulado de “Ética”. Pois toda a história gira em torno de um debate de ordem ética, e cada personagem incorpora um posicionamento ético distinto.

A doutora Crusher assume a posição principiológica. Poderíamos dizer que ela é kantiana. Na visão da doutora, Worf não deve tirar sua própria vida, ainda que esteja bastante descontente com as condições sob as quais terá de viver. Como médica, ela parte do princípio de que deve conservar a vida de Worf a todo custo: não importam as circunstâncias e as consequências... a vida tem de ser preservada. Preservá-la é o dever do médico, é o princípio que dignifica e informa toda a medicina. Preservar a própria vida também é dever do paciente.

Em contraste, temos a doutora Russell, que vem a Enterprise para ajudar Crusher no tratamento de Worf. Russell é uma consequencialista. Ela aceita correr riscos e colocar seus pacientes em risco, desde que o risco tenha por consequência um avanço na pesquisa científica. Russell elabora um brilhante (e ousado) processo cirúrgico que poderá devolver a Worf a capacidade de andar. Entretanto, a chance de sucesso é de apenas 37%, e há um enorme risco de Worf morrer durante a cirurgia. Worf pode morrer, mas, de qualquer forma, a ciência sairá ganhando. Um novo experimento é sempre causa de aperfeiçoamento técnico.

Riker está bastante próximo da doutora Crusher, embora sua reação pareça ser mais emocional do que racional. Riker simplesmente não aceita que Worf desista de sua vida. Riker gosta de Worf, e por isso não quer que Worf morra. Para Riker, a vida e presença de seu amigo klingon são muito mais válidas do que o código de honra que Worf deseja seguir. E, no entanto, Worf implora para que Riker o submeta à cerimônia klingon de eutanásia.

A situação de Riker é difícil, sobretudo porque seu comportamento é guiado por respostas emocionais, e emoções são confusas. Riker não quer ser indulgente ao pedido de Worf porque ele gosta de Worf; mas é igualmente difícil dizer “não” ao amigo de quem você tanto gosta, sobretudo quando este mesmo amigo deixa de pedir, e passa a implorar.

Torturado pelo dilema, Riker pede conselho ao capitão Picard, que assume uma postura relativista, bastante guiada pelo princípio antropológico do relativismo cultural. Picard explica que, na concepção de Riker, o pedido de Worf é descabido; mas na concepção de Worf, o pedido faz todo o sentido. Se Worf quer morrer, então ele tem o direito; se Worf acha que sua vida acabou porque não consegue mais andar, então, naquilo que lhe diz respeito, ele já está morto. Em nenhum momento passa pela cabeça de Picard que o juízo de Worf possa estar corrompido, e que seu próprio ponto de vista possa mudar mais tarde. E de fato, o juízo de Worf está corrompido: é loucura colocar o orgulho –  uma resposta emocional – acima da vida – que é a milagrosa e enigmática condição de toda resposta emocional, incluindo aí o orgulho. Nesse ponto, a ética klingon assemelha-se a um projeto de construção que começa pelo telhado. 

E que o próprio Worf sabe disso, confirma-se pelo fato de que ele recusa a deixar seu pequeno filho Alexander realizar o ritual klingon de eutanasia. Após investigar os costumes klingons, Riker descobre que o ritual de eutanásia só poderia ser realizado pelo parente mais próximo de Worf. Worf já sabia disso. Então descobrimos que Worf não estava interessado em honrar códigos e tradições, mas apenas em ser indulgente consigo mesmo. Seu suicídio era inteiramente egoísta. Entretanto, a perspectiva de que o pequeno e inocente Alexander deveria realizar este ritual tão brutal horrorizou Worf, e o amor por seu filho forçou-o a transcender seu ego e ampliar seu horizonte moral. O amor por Alexander forçou Worf a “sair” de si mesmo, por assim dizer, e ver o “outro”. Em outras palavras, o dispôs ao altruísmo. No fundo, Worf sabia que o suicídio era pura vaidade e orgulho. Vaidade, porque Worf estava preocupado com sua imagem; ele não queria viver como um “aleijado”. Orgulho, porque pra ele nada era mais importante do que sua cumplicidade consigo mesmo, sua fidelidade a suas paixões e idiossincrasias. Pensar em seu filho forçou-o a transcender sua idiossincrasia, e a reencontrar seu próprio senso moral mais profundo.

Mas a conversão de Worf não é total. Ele permanece parcialmente concessivo a sua vaidade klingon. A conclusão é um compromisso, sugerido por Picard, entre a tendência orgulhosa e suicida inicial de Worf e seu senso moral mais profundo: Worf submete-se à arriscada cirurgia idealizada pela doutora Russell, que tem mais chances de matá-lo do que de curá-lo, mas ao menos ele o faz como uma última tentativa de conservar sua vida.

E então segue o momento mais fictício do episódio: como forma de esconder do espectador o quão imprudente e errôneo é esse meio termo sugerido por Picard, Worf sobrevive e começa a andar. Mas e se ele tivesse realmente morrido? E se o jovem Alexander tivesse perdido seu pai, apenas porque Worf ainda estava cedendo, embora mais parcialmente, a sua vaidade klingon? Uma vida se perderia por vaidade; um filho teria perdido seu pai por vaidade... que desperdício.  Em pouco tempo, Worf percebeu que o suicídio direto não era o caminho correto. Com mais tempo, ele certamente teria corrigido inteiramente seu juízo moral superficial em prol de seu senso moral mais profundo, e assim teria optado pela vida em lugar da vaidade, e aquele absurdo compromisso entre vida e vaidade não teria de ocorrer.

Neste episódio, agradam-me Riker, Crusher e o jovem klingon Alexander.

Riker, porque ensinou a Worf – embora este se recusasse a aprender – que o altruísmo é louvável, que o egoísmo é censurável, e que permanecer em vida em condições não-ideais é o mais honrado, porque altruísta, enquanto que o suicídio é o egoísmo: é recusar a vida e a companhia daqueles que nos amam simplesmente porque não se deseja e nem se esforça em desfrutar daquilo que a vida e as pessoas nos oferecem. O suicida é aquele que se coloca acima do amor que as pessoas o oferecem. É como se ele dissesse: “o que vocês me oferecem ainda não é o bastante; eu mereço mais”.

Crusher, porque é uma mulher de princípios, e que por isso não corrompe suas máximas em prol de vagas esperanças de sucesso científico. Para Crusher, o sucesso científico não supera o sucesso moral. É verdade que Crusher participou da arriscada cirurgia, mas o fez bastante contrariada, e seu diálogo final com a doutora Russell comprova isso: apesar do sucesso da cirurgia, Crusher continuou a condenar os métodos de Russell.  

E, por fim, Alexander, porque seu senso moral infantil ainda não tinha sido inteiramente corrompido por costumes e pela vaidade do homem adulto, não havia sido iludido e falseado por convenções, e por isso ele conseguia ver o óbvio: nada era mais importante do que o amor e companhia de seu pai, pouco importando as condições nas quais filho e pai se encontravam. A ingenuidade de Alexander permitia-o ver aquilo que seu pai não conseguia: sobrepor o orgulho e a vaidade à vida implica em um contrassenso, tal como um projeto de engenharia que começa a construir a casa pelo telhado, conforme já dito acima. E isso ilustra uma convicção que cresce cada vez mais em mim: em se tratando de senso moral, a experiência tende mais a corrompê-lo do que aperfeiçoá-lo.


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Algumas reflexões sobre o mito do Superman

 

Os criadores do Superman: Joe Shuster e Jerry Siegel



“Superman was the first crusader for social justice in comics” – Mark Waid 

“Superman was about the immigrant experience in a very powerful way” – Dwayne McDuffy 

Estas duas frases foram ditas no documentário Secret Origin: the Story of DC Comics[1]. O motivo de eu destacá-las é que acredito que as mesmas expressam duas linhas de interpretação do mito do Superman com as quais eu não concordo. Passo agora a expor os motivos de minha discordância.

 

§1. Superman e Justiça Social

Como bem nos ensina Francis Bacon em seu Novum Organum, um dos maiores inimigos da ciência é o uso inadequado das palavras e suas significações. Eu acho que poucas palavras são mais mal utilizadas do que “justiça social”, e um exemplo deste mau uso é-nos dado neste comentário de Mark Waid. Afinal, o que Waid quer dizer com isso? Ele próprio não esclarece. 

A expressão “justiça social”, se não for um mero pleonasmo (pois toda justiça se dá em um contexto de vida social), significa um sentido estrito de justiça; mais precisamente, a justiça no contexto dos deveres jurídicos do Estado em relação aos cidadãos economicamente desafortunados. Neste sentido, podemos nos referir a medidas assistencialistas como “justiça social” (por exemplo: saúde pública, previdência social, direitos trabalhistas). E qualquer um que ler as primeiras histórias do Superman perceberá que o personagem não é sobre este último sentido de “justiça”. Ele não é algo como um sindicalista exclusivamente dedicado a demandar do governo melhores condições de vida e assistência econômica para os mais pobres. É verdade que há uma história dele (publicada em Action Comics n. 8) que pode ser interpretada como um crítica à ausência de políticas públicas de combate à pobreza. Mas meu ponto é o de que este é um episódio particular demais para acabar como definição completa do personagem. Em suas primeiras histórias, o Superman se envolvia em qualquer caso de injustiça, e isto no sentido mais lato da palavra: injustiça como desequilíbrio dos pratos da balança. Sempre que houvesse este desequilíbrio, lá estava ele. Portanto, a justiça do Superman era no sentido de evitar que alguém sofresse qualquer dano imerecido. É o sentido mais universal de justiça, e que pode ser definido na clássica fórmula latina: neminem laedere (“não lesar ninguém”). A única coisa que diferenciava este Superman dos primeiros anos de publicação do Superman que se tornou “clássico” era seu modus operandi. Ele era misterioso, não dava satisfações às autoridades e às vezes era excessivamente agressivo em relação aos criminosos. Em suma, neste aspecto ele não era muito diferente de Frank Castle, o Justiceiro da Marvel Comics. E ninguém chamaria o Justiceiro de “crusader for social justice”.

Por outro lado, é possível perceber um uso mais ideologizado da expressão “justiça social”. A partir daquele seu sentido estrito, muitos distorcem-no para significar algo impreciso como “combater ricos e defender pobres”. Nesse contexto, o termo “justiça social” passa então à condição de chavão empregado no contexto de um discurso classista. É possível que seja este o sentido que Waid atribua à palavra quando diz que o Superman era, inicialmente, um “crusader for social justice”.

Mas vamos analisar as primeiras histórias do Superman, para então concluirmos se o Superman daquelas publicações de 1938 a 1939 pode ser definido simplesmente como um “crusader for social justice”.

Em sua publicação de estreia, Action Comics n. 1, a primeira ação do Superman é a de salvar uma moça que será executada por um crime que não cometeu. Interessante notar que ele não protesta contra a pena de morte, mas simplesmente opõe-se à execução de um inocente, tanto que ele livra a moça inocente entregando a verdadeira culpada (e que certamente será executada). Em seguida, ele salva uma mulher que está sendo espancada pelo seu marido. Ainda na mesma história, ele dá uma lição em valentões mafiosos que capturam Lois após ela se recusar a dançar com um deles.

Em Action Comics n. 2, ele enfrenta lobistas e empresários que queriam envolver os EUA em uma Guerra para financiar a indústria bélica. Em Action Comics 3, ele conscientiza um empresário sobre as péssimas condições de trabalho de seus empregados. Em Action Comics 4, ele combate um treinador de futebol universitário que jogava sujo para garantir seu emprego. Em Action Comics 5, Superman evita acidentes e desastres, e salva Lois de afogar-se. Em Action Comics 6, ele prende um sujeito que comete estelionatos e que tenta matar Lois.  Em Action Comics 7, ele enfrenta um agiota violento que ameaça um empresário dono de um circo. Em Action Comis 8, enfrenta um corruptor de jovens. Em Action Comics 9, escapa de um policial que deseja prendê-lo. Em Action Comics 10, enfrenta um superintendente de uma prisão que tortura prisioneiros. Em Action Comics 11, combate uma quadrilha que aplica golpes no mercado de ações. Em Action Comics 12, enfrenta motoristas que não obedecem às leis de trânsito. Em New York World’s Fair n.1, ajuda em um evento beneficente para crianças que sofrem de paralisia infantil, e depois prende uma quadrilha de ladrões.  Em Action Comics 13, enfrenta um sindicato corrupto que oprime taxistas independentes.

Podemos perceber que estas primeiras histórias do Superman não apresentam qualquer visão unificada sobre o mal que há de ser combatido no mundo. Superman enfrenta gente de todo tipo e em várias circunstâncias completamente distintas entre si. O único elemento comum parece ser o realismo dos problemas enfrentados. O que eu quero dizer é que este primeiro Superman não é ideologicamente orientado, pois enfrenta toda sorte de problemas que fazem parte do cotidiano: violência doméstica, agiotas, mafiosos, patrões insensíveis, ladrões, assassinos, políticos e sindicatos corruptos. Ele não se dedica a resolver um tipo de problema específico e nem a defender uma classe específica de pessoas, como seria de se esperar de um “crusader for social justice”. Ele não está declarando guerra ao capitalismo in abstracto, mas à ganância de indivíduos; não está em uma cruzada contra a pobreza in abstracto, mas contra ações injustas de indivíduos particulares. Em uma história, Superman está enfrentando um empresário corrupto (AC n. 2); em outra, ele está defendendo um empresário honesto (AC n. 7). Em uma história, ele está protegendo meninos pobres moradores de um bairro periférico (AC n. 8), mas em uma outra, publicada no mesmo ano (1939) como tira de jornal, Superman dedica-se a salvar a vida de um rei e de uma princesa de uma nação estrangeira (a história se chama "royal deathplot"). Superman quer proteger os “oprimidos”, e qualquer um que esteja sofrendo algum tipo de injustiça enquanto mostra-se incapaz de lutar contra ela, encontra-se sob esta categoria. Ele não tem um interesse específico nos “pobres” em geral, mas apenas nos “pobres” que estejam sofrendo alguma violência ou injustiça. Do mesmo modo, ele não combate os “ricos” em geral, mas apenas aqueles que, por ganância e maldade, praticam injustiças. A questão não é política e nem ideológica; o problema é moral. Não importa a classe à qual o sujeito pertence, mas sim se ele é justo ou injusto.

Consequentemente, é fácil perceber que Siegel e Shuster não estavam escolhendo os adversários do Superman sob algum critério ideológico unificado e definido, mas estavam apenas reagindo espontaneamente aos problemas reais que eles próprios testemunhavam naquele tempo. Eles se mostravam tão sensíveis ao problema da pobreza que provoca delinquência juvenil (AC 8) – o que é uma causa pela qual um “crusader for social justice” teria simpatia – quanto ao problema da corrupção entre treinadores de futebol em universidades – o que nada tem a ver com o horizonte de questões que preocupam “justiceiros sociais”. Portanto, reduzir o Superman de Siegel e Shuster à fórmula “crusader for social justice” é empobrecê-lo, porque tal definição não abrange suficientemente todos os problemas morais que ocupavam as aventuras daquele herói. Certamente, Siegel e Shuster produziram material que pudesse provocar simpatia entre os adeptos da “justiça social”. Mas eles estavam muito longe de restringir o Superman a apenas isso.

Em suma: meu ponto é o de que não se define o todo pela parte. Dizer que o Superman das primeiras publicações é um “crusader for social justice” é propor uma interpretação empobrecedora do mesmo, porque significa reduzir seu padrão ético a um horizonte ideológico muito restrito. Significa degenerá-lo à condição de herói politizado, em lugar de reconhecê-lo por aquilo que de fato era: um herói moralista, cujas ações apoiavam-se em princípios éticos universais[2].

 

 

§2. Superman e imigração

 E por falar em interpretações empobrecedoras, comentarei agora uma outra linha de interpretação sobre o mito do Superman, e que percebo ter se tornado bastante popular. Trata-se do Superman como fábula do imigrante.

Sim, Superman é de fato um “imigrante”. Mas dizer que ele é “sobre a experiência do imigrante” (tal como sugere D. McDuffy), parece-me ser muito reducionista. Moisés e Jesus também são imigrantes, e ninguém dirá que a vida de ambos “was about the immigrant experience in a very powerful way”.

Aliás, a comparação que faço entre o mito do Superman e a vida de Jesus não é leviana (assim espero), pois penso que ambos trazem consigo uma mensagem bastante próxima: a de que a salvação não vem deste mundo. Em um texto anterior, eu escrevi sobre minha interpretação deste elemento do mito do Superman, que passo agora a transcrever:

 

Nada que é realmente bom pode vir deste mundo. O Super-homem não é um homem nascido na Terra, que se tornou superior após ler “Assim falou Zaratustra”, ou algum texto evolucionista de Herbert Spencer. Ele veio de um mundo “muito, muito distante”. Portanto, em meu modo de interpretar o mito do Superman, penso que ele nos ensina que devemos ser humildes enquanto espécie, e portanto ele afasta aquele humanismo patético que consiste na crença muitas vezes difundida de que somos capazes de realizar toda e qualquer coisa com base em nossa – supostamente profética e onipotente – racionalidade. “Não há limites para o homem!”. Há, sim. E justamente porque somos homens.[3]

 

 

Reduzir este insight de alcance universal a uma circunstancial preocupação político-ideológica com o tema da imigração, é o mesmo que privar o Superman de um dos aspectos mais profundos e fascinantes de sua mitologia. Hoje muitos adoram bancar os psicólogos, para extrair informações pessoais muitas vezes desconhecidas da própria pessoa que eles examinam. É por isso que agora alguns explicam a criação de Joe Shuster e Jerry Siegel como um desdobramento do fato de que ambos projetaram em seu Superman um herói messiânico apto a salvá-los de sua condição de imigrantes assustados (Paul Levitz quase se expressa exclusivamente neste sentido no citado documentário).

Pois eu digo que a ânsia humana por um messias é uma necessidade universal, e o insight de que o salvador não pode vir deste nosso mundo (isto é, não pode ser originariamente um de nós) é igualmente universal. O mito do Superman incorpora estes dois elementos, e é por isso que se tornou imortal e universalmente conhecido. Se o mito do Superman fosse restrito à experiência da imigração, ou que esta experiência fosse sua tônica, então este mito só poderia agradar a imigrantes e só faria sentido para imigrantes.

 

§3. Conclusão

 As duas interpretações que combato têm em comum o fato de que politizam aquilo que deveria estar para além da política.

 A política é a técnica da administração dos meios que conduzem à satisfação de interesses públicos circunstanciais. Um mito, por sua vez, deve elevar-nos para além do local, do circunstancial; deve elevar-nos a uma sabedoria universal. A política faz parte da arte de viver bem neste mundo. Em contraste, o mito verdadeiramente heroico deveria preparar-nos para a superação deste mundo (a começar pela superação de nós mesmos). A política é mais uma técnica de conservação do corpo. Mas a razão de ser do heroísmo mitológico é a de nos proporcionar uma alma.

 Portanto, não deveríamos diminuir a dignidade do mesmo rebaixando-o à condição de componente de um discurso orientado por modismos político-partidários. Fazer isso é o mesmo que destituir o mito de sua universalidade, vale dizer, destituí-lo daquilo que afinal confere-lhe uma extensão mitológica -- o que é uma contradição e, portanto, um erro grosseiro.

 




Notas

[1] Este documentário pode ser assistido neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=N1lSTjClKfs&t=695s

2 Já escrevi algo próximo desta discussão neste blog: https://herosinvictus.blogspot.com/2015/07/grant-morrison-superman-comecou-como-um.html

3 O texto completo pode ser lido aqui: https://herosinvictus.blogspot.com/2015/07/o-que-o-mito-do-superman-pode-nos.html

domingo, 20 de dezembro de 2020

Minhas considerações críticas a “Superman: para o alto e avante”, de Tom King e Andy Kubert

 


A premissa é boa. Superman viaja pelo universo para salvar a vida de uma única criança que fora capturada por uma alienígena cruel. A partir desta simples proposta, podemos deduzir que, em seu curso, Superman deparar-se-á com novos problemas e terá de lidar com outros alienígenas superpoderosos, conhecerá outros seres em apuros e resolverá a situação, até que, enfim, ele possa atingir seu objetivo final, que é o de resgatar a criança e retornar com ela ao planeta Terra. É o tipo de premissa que sempre gerará uma boa história, porque a estrutura do roteiro já é instigante. Trata-se da clássica e universal estrutura de roteiro do viajante aventureiro, e isso vem dando certo desde quando Homero escreveu a Odisseia. Esta mesma estrutura é reutilizada, por exemplo, no Pequeno Príncipe, na antiga série de TV do Incrível Hulk (protagonizada pelo saudoso Bill Bixby), e em Jornada nas Estrelas (principalmente a série clássica). E sempre com sucesso.

 

Portanto, a estrutura é, por si só, praticamente infalível. Tudo o que o escritor precisa fazer é preencher esta estrutura. Não tem como dar errado. Exceto, é claro, se o escritor for Tom King. Quem conhece o trabalho do homem sabe que sua especialidade é a de deprimir seu leitor. E sua fórmula pra isso é bastante simples: ele deprime os heróis que escreve. Na verdade, a fórmula é mais abrangente: trata-se de vulgarizá-los. Se estão tristes, então ficam excessivamente abatidos, resignados, como toda pessoa medíocre. Se os personagens de King não estão deprimidos, então estão exultantes demais, o que expressa afetação. E, infelizmente, com o Superman não é muito diferente. Na maior parte do tempo, King não escreve o Superman, mas um sujeito que eu gostaria de chamar de Simpleman: trata-se de um carinha triste, desanimado, e que geralmente confunde bondade com bonachismo, tal como faz a média da humanidade. Em suma, um tipinho simplório, comum, muito diferente do Superman como deve ser, isto é, superior ao homem ordinário (aliás, o nome do personagem é bastante autoexplicativo neste sentido). Simpleman é como todo sujeitinho comum, com o acréscimo de que ele voa e tem super-força. E usa uma roupa azul com capa vermelha. 

 

Um exemplo do que estou querendo dizer já podemos encontrar nas primeiras páginas. Quando Batman descreve ao Superman um crime ocorrido em Gotham (e que envolve a criança capturada), qual a reação do Superman? Uma atitude combativa, temperante,  e a promessa de resolução da situação? Não; esta teria sido a reação de um verdadeiro Superman. Em vez disso, a atitude do Superman (ou melhor, do Simpleman) é o abatimento e a resignação. “I’m sorry” é sua resposta ao Batman (e ele diz “I’m sorry” com uma expressão facial de “acho que quero chorar”). Na verdade, eu perdi a conta de quantas vezes Superman disse “I’m sorry” durante a história. Ou de quantas vezes Kubert o desenhou com essa cara de chorão derrotista.

 

Aliás, este é um ponto que deve ser sublinhado. Eu tenho percebido que muitos artistas acreditam que desenhar o Superman consiste em fazer um cara fortão em uma roupa azul e capa vermelha. Estes artistas não entendem que, se apenas fazem isso, então estarão desenhando um sujeito fantasiado de Superman, e não o Superman propriamente dito. Eles se esquecem que as expressões corporais e faciais são tão importantes quanto o corpo robusto, a roupa azul e a capa vermelha. Pois não basta desenhar as características extrínsecas de um personagem; é necessário desenhar também suas características intrínsecas. E se o Superman não demonstrar altivez e virtude em sua expressão corporal e facial, então ele se parecerá apenas com um sujeito fortinho vestido de Superman. É por isso que julgo inaceitável o conteúdo da página abaixo:

 


Neste momento, Superman estava em uma espécie de posto telefônico intergaláctico, esperando ansiosamente sua vez para falar com a esposa Lois Lane. Sua expressão corporal – que denota entrega à ansiedade, cansaço, impaciência, nervosismo, aflição – rebaixa-o à categoria de um homem absolutamente comum, que se deixa consumir por emoções vulgares, como o tédio e o desânimo (eu realmente fiquei surpreso por King não tê-lo feito puxar um smartphone do bolso, ligar o Whatssapp ou um joguinho eletrônico, enquanto brinca de fazer bolas de chiclete). Aqui é manifesto o rebaixamento do Superman à condição de Simpleman, o herói favorito de Tom King. Entenda, senhor King: o que faz do Superman “super” não são apenas os poderes físicos, mas sobretudo as virtudes morais. E a temperança é uma das virtudes cardinais. Se o Superman é incapaz de exercê-la, então ele não deveria ser chamado de Superman. Não há nada mais simplório e ordinário do que ser intemperante. Mas o Superman é o oposto do simplório e do ordinário. Ele é “super”, lembra-se? O nome dele é “Superman”, lembra-se?

 

Essa página me faz lembrar de um outro ponto. Há alguns meses atrás, o ator Dean Cain (que interpretou o Superman durante os anos 90 na série Lois and Clark), escreveu no twitter que, se interpretasse o Superman hoje, provavelmente não permitiriam que ele dissesse o lema “truth, justice and American way”. Na ocasião, Tom King escreveu uma resposta a Cain, chamando-o de “motherfucker” (sim, King é um desses valentões de redes sociais[1]), e em seguida mostrando uma página da história aqui comentada, Superman: up in the sky, na qual o sargento Rock diz aquelas palavras. Mas não é o Superman que diz aquelas palavras, o que mantém em pé a acusação feita por Dean Cain. Aliás, na página de “up in the sky” na qual o Superman realmente diz aquelas palavras (quando ele está esparramado como um adolescente preguiçoso na cadeira de espera do posto telefônico intergaláctico) é em um tom de desprezo: “Truth, justice, the American way... I don’t care”. Se ele, o Superman, não conseguir falar logo com sua esposa ao telefone, então que se lasque todos os seus princípios... ele ficará irritadinho. “Truth, justice and American way” tem lá sua importância, mas mais importante é falar ao telefone. O que King nos mostra é que este Superman não consegue manter-se firme em relação aos seus princípios quando suficientemente pressionado pelas circunstâncias e pela sua própria intemperança... assim como todo homem comum. Por isso eu digo: em momentos como este, King não escreve o Superman, mas o Simpleman.

 


Durante a Era de Prata dos quadrinhos, os escritores e os desenhistas projetavam no Superman aquilo que eles acreditavam que deveríamos ser; na atualidade (que eu gostaria de chamar de "A Era de Lata dos quadrinhos"), temos escritores como Tom King que projetam no Superman aquilo que eles próprios já são (ou imaginam que sejam). Isso é sintoma da mais grosseira autoindulgência. Sempre deveríamos inclinar nossa cabeça para o alto, caso pudéssemos ver o Superman. Entretanto, caso pudéssemos, King está nos dizendo que deveríamos encará-lo de frente. Para King, nós já somos o Superman; não porque nos superamos, mas porque o Superman desceu ao nosso nível. Julgo isso um enorme desserviço ao arquétipo do super-herói.

 

Mas para ser justo, devo reconhecer que “para o alto e avante” tem bons momentos. Muito de vez em quando, King resgata o Superman de sua condição de Simpleman, e o heroísmo, a altivez e a bravura retornam às páginas de história em quadrinhos do maior dos super-heróis (de onde nunca deveriam sair). Aliás, King mostra que entendeu o Último filho de Krypton em um ponto fundamental: Superman é sobre heroica compaixão. Tudo o que ele faz nesta história é para salvar uma única garotinha, e este tipo de sacrifício está inteiramente de acordo com aquilo que o personagem representa. A conclusão da história é excelente, e se todo o resto dela não estivesse recheado de inúmeros momentos de sentimentalismo grosseiro, de emoções exageradas, em suma, de situações patéticas com carinhas de choro e lamentação e abraços afetados, eu diria que “Superman: para o alto e avante” até mesmo poderia entrar para o rol das histórias realmente significativas do Superman, eternamente incorporadas ao seu mito.

 

Em particular, devo elogiar a boa sacada de King quando o Superman, questionado pela garotinha se ele venceria o Batman, responde: “O Batman venceria [...] Eu o deixaria vencer [...] Se você conhecesse o Batman, saberia que isso significaria muito para ele [...] Ele passou por muita coisa. Ele merece alguma felicidade”.

 


Isso me fez relembrar do Superman da Era de Prata, em uma aventura sua junto de Batman na cidade engarrafada de Kandor, onde ele não tinha poderes. O plano de Superman era criar uma falsa ameaça em Kandor para que o Batman pudesse resolvê-la e, assim, recuperasse sua autoestima, recentemente abalada após ter sido inútil em sua última aventura na companhia de Superman. Porém, Batman acaba descobrindo todo o plano. Ofendido, o homem-morcego desafia Superman para uma luta dentro das tradições de Kandor (em um ringue, com escudos e espadas), com o objetivo de reaver sua honra. Durante a luta, Superman pensa: “percebo uma brecha na postura de Batman, mas não vou me aproveitar”. Em seguida, Superman é atingido por Batman, pois sua “hesitação é fatal diante da brilhante habilidade acrobática do homem-morcego”, conforme descreve a narrativa(2). Foram maravilhosas histórias como essas que, durante minha infância, fizeram-me transferir minha predileção ao Superman, antes apaixonadamente dedicada ao Batman. Pois o que me encantava no Homem de Aço era essa compaixão, essa nobreza de espírito, esse altruísmo irrestrito, aliados a uma postura absolutamente viril e inquebrantável senso de bravura, heroísmo e coragem. O Superman não tinha tempo para frivolidades como vencer duelos. Mais importante era fazer seu amigo sentir-se bem consigo mesmo.

 


Conclusão: minha opinião sobre “Superman: para o alto e avante” contém alguma ambiguidade. Por um lado, eu aplaudo Tom King por adotar como premissa um dos aspectos mais importantes do Superman: sua heroica compaixão. Por outro, a execução da obra, em sua maior parte, conduz a resultados um tanto perturbadores, pois o heroísmo compassivo do Superman é, em vários momentos, privado de toda altivez e dignidade, degenerando-se em momentos absolutamente patéticos. O bom é muitas vezes convertido em bonachão.

 

“Patético” significa exagero de emoções. E em King, toda emoção é exagerada; por toda parte sempre há abraços acalorados entre os personagens, muitas expressões faciais que denotam abatimento, muita lamentação, enfim, um emotivismo incessante e repetitivo que pode facilmente causar cansaço no leitor avesso à monotonia. O Superman deveria transcender o sentimentalismo, pois, como nos ensinou Aristóteles, tudo que é exagerado é viciado. E um Superman tem de ser a imagem da virtude.



Notas

1 Outro inusitado episódio no twitter envolvendo King foi quando o editor Mark Doyle deixou a DC Comics. Na ocasião, King disse coisas extremamente gentis sobre Doyle: “Mark Doyle, o editor transcendente, visionário, brilhante, está deixando a DC Comics. Eu não teria uma carreira sem ele [...]. Uma verdadeira lenda”. Imediatamente ele recebeu uma resposta de Tom Brevoort: “Não foi você que forçou sua saída dos títulos do Batman e se gabou disso numa entrevista? É odioso chorar pelo corpo quando você ajudou a matá-lo”.

2 Esta história (“The feud between Batman and Superman”) foi publicada em Word’s Finest #143, de 1964, e escrita por Edmond Hamilton e desenhada por Curt Swan (uma de minhas duplas favoritas). Aqui no Brasil, foi publicada no início dos anos 90 no fascículo 16 da coleção Invictus, da editora Nova Sampa, e foi graças a esta publicação que pude lê-la. Desconheço se esta história foi publicada anteriormente no Brasil. Ainda pretendo prestar minhas homenagens à maravilhosa coleção Invictus neste blog. 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Gerry Conway, o lugar do Justiceiro na cultura, e os danos que o partidarismo provoca na mente humana

 

Arte de Mike Zeck

Schopenhauer dizia que o microcosmo reflete todo o macrocosmo, e, por isso, para que você conheça o todo, basta prestar muita atenção em alguma de suas partes. Este tipo de convicção também parece ter orientado a prática antropológica e etnográfica de Malinowski. E é por isso que, por meio deste texto, sinto-me autorizado a tentar concluir algo sobre a humanidade a partir de um fato bastante singular, e que muitos julgariam de pouca importância. Refiro-me às atitudes do escritor de quadrinhos Gerry Conway em relação a uma famosa criação sua, o Justiceiro (ou Punisher).

 

Já expliquei que o símbolo associado ao Justiceiro, a famosa caveira, tornou-se em nossa cultura um sinal de Justiça Retributiva, bem como de outros valores que a ela estão marginalmente associados: a coragem, o fortaleza, a ousadia, e até mesmo a agressividade. Afinal, a Justiça não é uma virtude para pessoas passivas. Sim, desde Platão sabemos que Justiça é harmonia, um estado de ausência de lesividade, e é por isso que ela fora definida na clássica fórmula latina como neminem laedere – “não lesar ninguém”. Entretanto, o justo não é somente aquele “não lesa ninguém”, mas também aquele que busca impor a punição àqueles que lesaram alguém. Afinal, Justiça é sobretudo equivalência, igualdade, proporção, e disso sabemos muito bem desde Aristóteles (que expôs tudo isso muito bem até o ponto em que os preconceitos da época não atrapalharam seu raciocínio, por exemplo, ao supor existir diferente dignidade entre aquele que desempenha cargos públicos e aquele que não desempenha-os).

 

Consequentemente, aquele que destrói aquele estado de harmonia deve ser penalizado por isso, e esta pena deve ser proporcional à gravidade do ato lesivo. Eis aí o ponto que define o Justiceiro e o símbolo de sua caveira: Frank Castle pune os homicidas com a morte, pois somente a vida paga a vida. E, convenhamos, impor a punição estritamente justa não é para qualquer um. É preciso algum rigor espiritual para isso, pois, no caso do homicídio, ser justo significa condenar à morte aquele que matou alguém (ou, para ser mais preciso, significa executar a pena que o próprio homicida se impôs ao tirar a vida de alguém).

 

Claro, a cabeça da maioria das pessoas não articula conscientemente toda esta miríade de conceitos que estão implicados na caveira do Justiceiro, e por isso percebe-os sob noções mais simplórias, ou mesmo através de sentimentos irrefletidos. No fim das contas, toda esta intrincada explicação é resumida na impressão “badass” que aquele símbolo da caveira causa nas pessoas. É por isso que a caveira se popularizou entre aqueles cuja profissão está intrinsecamente associada ao conflito físico ou, ao menos, à possibilidade de esse tipo de conflito ocorrer: soldados e policiais.

 

Exemplo emblemático disso foi o famoso sniper norte-americano Chris Kyle. Durante o tempo em que serviu na Guerra do Iraque, Kyle atuou em uma unidade autointitulada de The Punishers, cujos membros costumavam adornar seus uniformes e equipamentos com o símbolo do Justiceiro (este fato é mostrado no filme sobre a vida de Kyle, American Sniper, dirigido por Clint Eastwood). O próprio Kyle justificou em sua autobiografia a predileção da unidade pelo famoso personagem da Marvel Comics, nos seguintes termos: “ele matava caras maus. Ele fazia com que os criminosos o temessem [...]. Nós pintávamos [a caveira] com spray em nossos Hummers e uniforme, e em nossos capacetes e em todas as nossas armas. Nós a pichávamos em todo prédio ou muro sempre que podíamos, nós queríamos que as pessoas soubessem: ‘nós estamos aqui e queremos acabar com vocês’(1).

 


Na época, Gerry Conway manifestou sua desaprovação: “Eu era uma pessoa contra a guerra. Eu argumentei contra ela, e certamente escrevi contra ela [...] Eu estou pasmo [...] Como criador, é muito difícil pra mim ver isso. Ninguém pediu minha permissão(2). Esta última frase revela um nível de pretensão tão descabido que só podemos considerá-la como um deslize da parte de Conway. Afinal, ninguém precisa pedir permissão a Conway. Os soldados não estavam comercializando produtos com a marca “The Punisher”. Eles estavam homenageando a criação de Conway. É realmente triste constatar que Conway, ao ver sua criação sendo adorada por homens que arriscaram suas vidas para proteger ele e seu país, não possa manifestar nada além de descontentamento e reprovação. Conway não gosta de guerras? Ok. Mas ele criou um personagem que simboliza o aspecto tanto trágico quanto heroico da guerra (3). E certamente lucrou com isso.

 

Depois, tivemos o caso dos policiais norte-americanos. Já comentei sobre isso no texto anterior, e expus a forma um tanto tola como a Marvel Comics lidou com o assunto (o que só serviu para denunciar a própria hipocrisia e petulância de seus escritores e editores). Qual foi a resposta de Conway quando questionado sobre isso? Novamente, críticas:

 

Pra mim, é perturbador sempre que vejo as autoridades abraçando a iconografia do Justiceiro, porque o Justiceiro representa a falha do sistema legal. Ele acusa o colapso da autoridade moral social e a realidade de que algumas pessoas não podem depender de instituições como a polícia ou o exército para agirem.

        O anti-herói vigilante é fundamentalmente uma crítica ao sistema legal, um exemplo do colapso social, então quando policiais colocam a caveira do Justiceiro em seus carros ou quando militares usam patches da caveira, eles estão basicamente indo para o lado de um inimigo do sistema. Eles estão adotando uma mentalidade de fora-da-lei. Não importa se você pensa que o que ele faz é ou não justificado, se você admira ou não seu código moral, o fato é que ele é um fora-da-lei. Ele é um criminoso. A polícia não deveria adotar um criminoso como seu símbolo.

        [...] Meu ponto de vista é o de que o Justiceiro é um anti-herói [...] Se um oficial da lei, representando o sistema de justiça, coloca o símbolo de um criminoso em sua viatura [...] ele ou ela está fazendo uma declaração muito imprudente sobre seu entendimento da lei”.(4)

 

E talvez Conway esteja fazendo uma declaração muito imprudente sobre seu entendimento da mentalidade desses policiais. Eu duvido que eles associem a caveira do Justiceiro ao fato do mesmo ser um “fora-da-lei”. A caveira está associada à valentia, à justiça, e até a sentimentos mais simplórios. Mais ou menos como disse Chris Kyle, a caveira significa para muitos algo como “somos durões e podemos acabar com vocês”. Conway está supondo que esses policiais são aficionados na leitura de The Punisher, o que provavelmente não é o caso. E mesmo que fosse, o Justiceiro não é totalmente contra a lei. Ele vai atrás daqueles que infringem a lei (sobretudo aquela que proíbe o homicídio). Isso demonstra que há cumplicidade entre o personagem e o sistema legal. Ou ao menos uma cumplicidade parcial, uma vez que, sem dúvida, o personagem infringe a lei processual. Além disso, convenhamos... a definição de “criminoso” é simplesmente “aquele que desobedece leis”, ou “fora-da-lei”, como Conway supõe? Considerando a quantidade de leis positivas absolutamente injustas que já foram sancionadas e aplicadas ao longo da história da humanidade, eu diria que aquela definição de criminoso é criminosa.

 

Devo ainda acrescentar que o argumento de que o Justiceiro simboliza a falência do sistema legal, e que policiais servem a este sistema e que, por isso, policiais e a simbologia do Justiceiro seriam totalmente incompatíveis entre si, é extremamente fraco. Sim, policiais servem ao sistema legal. Mas disso não se segue que eles estejam totalmente felizes com o sistema legal. Se os policiais estão frustrados com o sistema, não vejo por que razão eles não podem se manifestar a respeito. No entanto, reitero que eu não acredito que este seja o motivo principal do uso da caveira em suas viaturas. Creio que o motivo seja muito mais simplório, e até mais estético do que filosófico. Eles não estão protestando contra o sistema legal; estão apenas mandando um recado... algo como "criminosos, tremei!".

 

Aqui, alguém pode dizer: “o Conway não gosta que usem o símbolo do Justiceiro simplesmente porque ele não acredita que ele seja um bom exemplo, ponto”. De fato, o próprio Conway disse sobre Frank Castle que, em sua “opinião, ele não é uma boa pessoa”(5). Mas se este é o ponto de Conway, por que diabos ele deseja que o símbolo com o qual ele próprio não simpatiza (apesar de ter ajudado a criar) seja utilizado por pessoas com as quais ele simpatiza? Pois é esta a sua postura adotada relativamente ao movimento Black Lives Matter (BLM). Em sua campanha - iniciada em junho deste ano, e que objetiva associar o símbolo do Justiceiro ao BLM, e conseguir fundos para financiar este movimento – Conway escreve que

 

Por muito tempo, símbolos associados ao personagem que eu co-criei têm sido cooptados por forças de opressão e para intimidar americanos negros. Este personagem e seu símbolo nunca foram criados como um símbolo de opressão. Este símbolo é o de falência sistemática da justiça igualitária [equal justice]. É hora de reivindicar este símbolo para a causa da justiça igualitária [equal justice] e do Black Lives Matter (6).

 

Em outras palavras, agora o Justiceiro não é mais um símbolo que significa o “fora-da-lei”, ou mesmo um “criminoso”. Frank Castle não é mais uma má pessoa. Agora ele é um campeão da “equal justice”. Como explicar isso? Policiais não podem usar a caveira, pois ela significa “crime”. Mas participantes do BLM podem usar a caveira. Ora, então o BLM é um movimento criminoso? Não, não... esqueça a retórica anterior. Agora Conway decidiu que a caveira é sobre justiça, equal justice! Se é assim, por que os policiais e os militares no Iraque não poderiam ostentar um símbolo que se refere a tão belo princípio? Por que policiais e militares não podem ser igualmente favoráveis à equal justice? Porque, naquela oportunidade, Conway só enxergava aspectos moralmente reprováveis no simbolismo do Justiceiro. Mas agora sua interpretação mudou. Como desfazer este imbróglio?

 

Não vejo saída senão admitindo o seguinte: o problema de Conway não era tanto com o personagem, mas com as pessoas que homenageavam o personagem que ele criou. O Ego de Conway não suportava ver o produto de seu trabalho criativo ser homenageado por pessoas cujas atividades ele desgosta. Por ser simpático ao BLM, ele deseja ver o símbolo que ele ajudou a criar associado àquilo que o agrada. Só assim consigo explicar por que a retórica da crítica cedeu espaço à retórica do proselitismo, e Frank Castle, de repente, voltou a ser um cara legal.

 

E agora posso retornar ao ponto que inaugurou deste texto, isto é, sobre como fenômenos microcósmicos podem pôr às claras aspectos macrocósmicos. A conduta dúbia de Conway revela como a mente humana pode se meter em autocontradições, guiada por orientações emocionais muitas vezes ocultas até mesmo para o próprio agente. E, o mais interessante, é o modo como “douramos a pílula”, isto é, o modo como ocultamos estas orientações emocionais através da máscara do moralismo e do discurso aparentemente esclarecido. E, sobretudo, o quanto nosso Ego, nosso amor de si mesmos, funciona como uma força inconsciente no processo de preservação de nossas pretensões narcisistas. No fundo, Conway apenas não quer ter sua imagem refletida em certos espelhos, e eu acho que ele vê algo dele no velho Castle, porque ele é foi um dos criadores do personagem. Daí ele se incomodar tanto ao ver a imagem do personagem ser apropriada por indivíduos atuantes dentro de certos grupos. Não devemos nos esquecer o modo como ele se expressou em sua campanha: o Justiceiro fora "cooptado" ("co-opted") pelo outro grupo, e agora é hora de ele ser "reivindicado" ("it's time to claim this symbol...") por nosso grupo. Sintomático. Talvez este seja o cúmulo do narcisismo: julgar que certos espelhos são indignos de refletirem nossa própria imagem. E, para o ególatra, a imagem refletida é tudo: ela tem prioridade até mesmo em relação à coerência consigo mesmo. É como se Conway dissesse: “não importa o que eu disse antes; eu apenas não quero ver minha imagem refletida naqueles caras, e quero vê-la refletida nestes caras”. Meu palpite é o de que esta não é uma característica exclusiva de Conway, e sim que sua atitude apenas revela um padrão bastante disseminado em nossa espécie. Mas por ora, é só um palpite. A conversão desta constatação em juízo universal demandaria um trabalho de verificação de vários casos particulares que não pretendo executar no momento.

 

Como leitor de quadrinhos de longa data, eu só gostaria de fazer mais duas considerações. Primeiro, registrar minha admiração por Gerry Conway. Apesar do que escrevi até o momento poder ser visto como uma crítica a ele, o fato é que tenho grande admiração por seu trabalho. Não só por ter ajudado a criar o Justiceiro, mas sobretudo por causa das histórias que ele escreveu do Homem-Aranha durante os anos 70 e 80, e que foram as primeiras histórias que tive o prazer de ler. Considero-as a melhor fase do herói aracnídeo. Por isso, Gerry Conway está entre meus escritores favoritos.

 

A segunda coisa que eu gostaria de fazer é manifestar uma preocupação. Espero que o texto escrito por Conway para promover esta artificial e forçada parceria entre Justiceiro e BLM não faça escola entre os escritores da Marvel, que já causaram danos demais a Frank Castle. Não, não estou dizendo que sou contra pessoas utilizarem símbolos do Justiceiro na luta contra práticas racistas. Sou contra os tolos de mente acrítica (aquela turma do “se o criador falou, então está falado”) começarem a restringir o Justiceiro à luta contra racistas, como se o racismo fosse a única manifestação da injustiça.

 

Aliás, a expressão equal justice pode facilmente induzir cabecinhas ideologizadas (que se caracterizam por sua estreiteza de pensamento, já que costumam limitar-se aos lobbies e novilínguas dos grupelhos aos quais pertencem) a imaginarem que o Justiceiro luta apenas por igualdade racial. Na verdade, esta expressão, equal justice, é um pleonasmo pueril. Pois a justiça é sempre sobre igualdade ou proporcionalidade (quando a igualdade literal não é possível) entre crime e castigo. E é por isso que tanto policiais, soldados, ou civis comuns que são vítimas de violência motivada pelo racismo, podem se sentir à vontade junto aos símbolos relacionados ao Justiceiro: ele representa Justiça Retributiva, e esta impõe a proporção correta entre crime e castigo. No contexto deste universo moral, não há negros ou brancos, mas apenas culpados ou inocentes, e a punição proporcional ao dano causado. Esta é uma mensagem universal e por isso pode ser significativa para qualquer um. Restringi-la a uma mania, a um modismo, empobrece-a. Em todo caso, fico feliz que Conway finalmente percebeu que a caveira do Punisher significa justiça. Agora ele precisa perceber que, pelas mesmas razões, o símbolo da caveira é adequado a qualquer um e em qualquer contexto de busca por justiça retributiva, e isso inclui soldados e policiais.

O Justiceiro pode ser vítima daquele mesmo empobrecimento, se restrito a uma luta particular e à perspectiva de um grupo particular. O que torna o Justiceiro extremamente interessante é o fato de que, para ele, o mundo não se divide em cores, mas entre os inocentes que devem ser protegidos e os culpados que devem ser punidos. E estas duas classes podem ser encontradas em qualquer grupo, a depender dos critérios de definição. Do ponto de vista econômico, há os ricos e os pobres; do racial, os negros e os brancos; do religioso, os crentes e os ateus; do político, os direitistas e os esquerdistas. Mas pela perspectiva de Frank Castle, isso tudo é de pouca importância, pois culpados e inocentes estão disseminados e misturados em todos estes grupos, e esta é a única classificação que realmente importa para o Justiceiro: a classificação moral, exclusivamente baseada na escala da culpa e da inocência



Notas

1 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

2 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

3 Desde sua criação, o Justiceiro é mostrado como alguém que acredita na continuidade de sua missão de soldado, antes atuante no Vietnã, agora atuando contra criminosos dentro de seu próprio país. Sua mentalidade de militar em Guerra fica explícita sobretudo no fato de que o mesmo mantinha um “diário de guerra”, no qual registrava sua perspectiva pessoal sobre os acontecimentos que vivenciava.

4 cf. https://www.syfy.com/syfywire/punisher-creator-gerry-conway-cops-using-the-skull-logo-are-like-people-using-the

5 Cf. https://time.com/3819227/punisher-iraq-isis/

6 Cf. https://www.customink.com/fundraising/black-lives-matter-skulls-for-justice-presented-by-gerry-conway

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Mathew Rosenberg: um bom exemplo de como não se deve escrever o Justiceiro





Recentemente, a Panini lançou por aqui o arco “Rua a rua, quadra a quadra”, do Justiceiro, escrito por Mathew Rosenberg e com arte de Szymon Kudranski. Quando fora publicado lá fora há mais ou menos 1 ano atrás, esta história provocou alguma polêmica, pois é nela em que Frank Castle aparece repreendendo policiais que utilizavam adesivos da caveira do Justiceiro em suas viaturas. Na verdade, a mensagem era do próprio Rosenberg, e fora dirigida não a policiais fictícios, mas reais: na época, de fato estava ocorrendo, nos EUA, de policiais fixarem a imagem da caveira em seus carros. Algumas pessoas manifestaram seu repúdio a esta atitude, e Rosenberg também resolveu expressar sua desaprovação, colocando o próprio Frank Castle na posição de porta-voz de sua opinião pessoal.

 




Particularmente, eu nunca entendi qual o motivo de escândalo. Do fato de que alguém veste uma camiseta com a imagem da caveira, não se segue que sairá por aí praticando vigilantismo ao estilo justiceiro. Logo, por que deduzir que o uso de adesivos por policiais terá efeito diferente? Eu penso que o motivo dos policiais se utilizarem da imagem da caveira se deve ao princípio que está associado àquele símbolo, graças à popularidade de Frank Castle na cultura norte-americana. Como eu já argumentei em textos anteriores, o Justiceiro simboliza a Justiça Retributiva, e isso significa: todos devem pagar por seus crimes, na proporção de seus crimes. E este princípio comporta certa latitude. Na prática, ele pode simplesmente funcionar como uma maneira de dar sentido à árdua profissão de policial (e, como muito bem nos ensinou Viktor Frankl, é a busca por um sentido que nos afasta do desânimo, do desespero e da alienação – esta última, um transtorno extremamente comum em nossas relações com as próprias atividades profissionais). É como se através da caveira o policial dissesse: “minha vida faz sentido; eu coopero para que os caras maus sejam pegos e respondam por seus crimes; sou um herói!”. Não significa necessariamente que os policiais praticarão vigilantismo. Do mesmo modo, se os policiais colocassem adesivos do escudo embandeirado do Capitão América (tal como Rosenberg, disfarçando-se de Frank Castle, sugere) isso não significaria que os mesmos estariam dispostos a vestir máscaras coloridas e substituir seus revólveres pelo lançamento de discos. Significaria apenas que eles aderiram ao princípio ínsito àquela imagem, algo lato como “eu sirvo a meu país”. (E, convenhamos... talvez eu esteja indo longe demais aqui. É bem mais provável que as motivações dos policiais sejam mais simplórias. Talvez eles usem a caveira simplesmente porque consideram "badass" a imagem e simbologia que ela representa). 

 

Aliás, isto é o que nos fascina nos símbolos. Eles se referem a princípios que abrangem uma enorme latitude de significados, e por isso não estão restritos à estreiteza de um único padrão de comportamento. Através do símbolo do Capitão América, um policial poderia dizer a si mesmo: “tal como o Capitão, eu também sirvo ao meu país, ainda que à minha maneira”. Do mesmo modo, através da caveira, o mesmo policial poderia dizer: “tal como Frank Castle, eu também honro a Justiça, ainda que à minha maneira”. A razão de os policiais reais terem de fato escolhido a imagem da caveira em vez do escudo do Capitão parece-me óbvia: o Justiceiro é um personagem muito mais contextualizado no mundo real do que o Capitão América. Policiais não enfrentam ameaças alienígenas e vilões fantásticos, e sim a escória que inunda as ruas com assassinato, roubo, estupro, e venda de drogas. Na prática, também não se trata tanto de defender o país, mas de combater indivíduos concretos para proteger indivíduos concretos. E este é o cenário dentro do qual se articula o mito do Justiceiro. Por outro lado, se os profissionais da Marvel Comics são contrários ao elemento cativante que indubitavelmente há no vigilantismo heroico e romantizado, então eles deveriam considerar parar de publicar as aventuras do Justiceiro. Mas algo me diz que esta possibilidade nunca passou por suas cabeças. Isso só pode significar que eles próprios não acreditam realmente em tais polêmicas, ou, se acreditam, então eles não estão dispostos a desistir de uma fonte de lucro em função de seus princípios morais. Ou seja: ou são dissimulados, ou são hipócritas. 

 

Mas vamos ao meu ponto principal: o modo como Rosenberg escreve o Justiceiro, e que eu reprovo totalmente. Na verdade, grande parte daquilo que julgo ser um problema já se encontra nesta cena que comentei até aqui. Quando o Justiceiro rasga o adesivo da caveira e diz ao policial que o exemplo a ser seguido é o Capitão América, o policial responde: “quem você pensa que é? Gostando ou não, você começou uma coisa. Mostrou como se faz. Agora não gosta que outros sigam seu exemplo?”. Claro, aqui Rosenberg promove uma caricaturização das motivações humanas. Como já expliquei, do uso de adesivos da caveira não se segue necessariamente o engajamento em práticas de vigilantismo. (No excelente e divertido arco "Bem-vindo de volta, Frank", de Garth Ennis, os policiais eram mostrados como totalmente simpáticos ao Justiceiro, inclusive recusando-se a investigá-lo, e não se via nenhum problema moral nisso). Mas vamos assumir, por hipótese, que os policiais tenham de fato este tipo de intenção. O policial tem um ponto aqui. É uma afirmação que aguarda um contra-argumento. Mas o que diz Castle em seguida? “Se eu descobrir que estão tentando fazer o que faço, venho pegar vocês dois”. Em outras palavras, Castle não contra-argumenta. Ao contrário: ele rebate o policial com uma ameaça. Qualquer pessoa que tenha estudado algo como a teoria dos códigos de linguagem de Basil Bernstein, sabe que responder uma provocação ao diálogo com um imperativo e um apelo à própria autoridade é um sintoma claro de debilidade intelectual.

 

E é este o problema do Frank Castle escrito por Rosenberg: ele parece um robô (ou talvez um zumbi), destituído de qualquer inteligência ou introspecção. Porém, em minha opinião, não existe modo mais grosseiro de descaracterizar o Justiceiro, pois é exatamente o elemento da introspecção que faz dele um personagem tão fascinante. Desde sua estreia, em Amazing Spider-Man #129, o Justiceiro era mostrado como alguém que tinha consciência de suas razões, e que argumentava em favor das mesmas. Este elemento da introspecção chegou à sua maturidade em Marvel Presents #2, que contém história escrita por Gerry Conway, através da qual o leitor tinha a oportunidade de saber cada pensamento de Frank Castle (que eram registrados em seu “diário de guerra”), e atingindo sua perfeição através do trabalho de escritores como Steven Grant (pra mim, o melhor de todos que já passaram pelo Justiceiro), Mike Baron, Carl Potts, David Lapham (Means and ends é uma das melhores coisas que já li), e Garth Ennis. Através dos trabalhos dos nomes citados, temos a oportunidade de conhecer todos os argumentos, valores e máximas morais que Castle articula em sua consciência. Percebemos que se trata de um homem cônscio de suas razões que, quando confrontado por pontos de vista opostos – sobretudo em seus encontros com o Demolidor – mostra-se plenamente capaz de argumentar em favor de seus próprios princípios e valores (como exemplo, vide Punisher #10, de Mike Baron; Means and ends, de David Lapham; Punisher #3, vol. 3., de Garth Ennis).

 

Em Justiceiro Ano 1, magistralmente escrita por Dan Abnett e Andy Lenning, é mostrado que na base de suas ações estão princípios morais conscientemente assumidos: “por vezes a lei é incapaz de agir [...] por essa razão, de vez em quando é preciso agir à margem da lei, para compensar sua inadequação em obter a punição natural. Eu não falo de vingança. Revanchismo não é um motivo válido [...] Estou falando de justiça”. Este personagem tão rico em introspecção, cuja consciência sempre se mostra preenchida por julgamentos e argumentos morais, em nada me lembra a máquina desalmada (que aparentemente fora literalmente programada para matar por matar) escrita por Rosenberg. E isso é lamentável, pois, para mim, o elemento da introspecção é tão característico do Justiceiro quanto a imagem da caveira que ele ostenta no peito. E, pelos motivos alegados, causa-me estranheza que o Justiceiro não se julgue um exemplo, conforme exposto em seu diálogo com os policiais. Ele não tem convicção de seus princípios morais? Talvez o que ele queria dizer era que os policiais não deveriam jogar fora suas próprias vidas, embarcando em seu ofício suicida e ascético, o que é bastaste correto. Há muitas histórias do Justiceiro que expressam este sentido. Mas nunca saberemos ao certo, pois Rosenberg não nos dá pistas sobre o que Frank Castle estava pensando. Na verdade, a impressão que se tem é a de que o personagem não pensa.

 

Creio que por trás desta desumanização de Frank Castle esconde-se a suposição de que o impulso de punição é intrinsecamente psicopático. Até onde pude notar, esta interpretação é inaugurada por Garth Ennis, a partir de seu trabalho sobre o Justiceiro no selo Max. Interessante notar o quão longe esta interpretação está das histórias clássicas escritas por Grant, Potts e Baron. Nesta que considero a fase de ouro do Justiceiro, suas aventuras tinham um tom mais heroico, e sua personalidade era muito mais natural. Castle sustentava relações de amizade e, eventualmente, até sorria. Neste período, os escritores aparentemente não viam conflito entre o fato de ser um homem e impor a punição àqueles que a merecem. Não havia contradição no fato de que Castle tinha tanto ódio da criminalidade quanto amor pelos inocentes, a começar pela sua família que fora assassinada. Mas Ennis pareceu pensar diferente. Em Born, ele deixa claro que Frank Castle gostava de matar muito antes de sua família ser assassinada. E este processo de desumanização do Justiceiro, que já ocorre parcialmente em Ennis (1), adquire seu apogeu em Rosenberg. O resultado: se substituíssemos o título da revista por “Jason: sexta-feira 13”, talvez fizesse mais sentido.

 

Particularmente, eu prefiro o Justiceiro clássico, definido por Grant, Potts e Baron. A meu ver, é perfeitamente possível pensar que o ódio pelo criminoso cresce na mesma proporção que a compaixão pela vítima (ou pelas vítimas). É por isso que concordo inteiramente com Schopenhauer quando este, em suas teses filosóficas, derivava a Justiça a partir da compaixão. Por outro lado, a amenidade para com criminosos tem de ter por pressuposto alguma ausência de sensibilidade para com suas vítimas.

 

Mas há um ponto positivo naquilo que Rosenberg escreveu, e que, a meu ver, deveria ser definitivamente incorporado à personalidade do personagem e futuramente explorado. Refiro-me ao momento em que, durante o confronto com o Barão Zemo, Castle puxa a máscara do vilão enquanto diz: “máscaras são para covardes”. Esta aversão às máscaras parece-me uma boa premissa. Aliás, sempre achei estranho o fato de heróis como Demolidor e Homem-Aranha darem lições de moral no Justiceiro, considerando que o uso de máscaras é tão contrário à convivência civilizada quanto o fato de Castle fazer de si mesmo acusador, júri e executor. A máscara esconde nossa identidade e, escondendo nossa identidade, liberta-nos do ônus de sermos responsabilizados por nossos atos. E sem responsabilização, não há réu sobre o qual possa incidir o juízo de imputação, essencial ao exercício da jurisdição penal. Em suma: com máscara, sem identificação; sem identificação, não há exercício da jurisdição; sem jurisdição, como poderia haver civilização?

 


Por isso, quando o Demolidor argumenta contra o Justiceiro (na já citada Punisher #10, aqui publicada em Superaventuras Marvel # 92) que, se todos seguissem seu senso de justiça, a sociedade seria um caos, Frank poderia contra-argumentar: “e se todos usassem disfarces como você, a sociedade também seria um caos”. Arrisco até mesmo dizer que o rosto ocultado sob uma máscara é, em seu princípio, muito mais danoso à vida social civilizada do que o comportamento violento, porém franco, do Justiceiro. O potencial destrutivo do anonimato institucionalizado é incalculável. É realmente desconcertante o fato de que o advogado Mathew Murdock também não perceba isso. (2)


Notas

1 Exponho minhas críticas a Ennis neste texto: https://herosinvictus.blogspot.com/2017/08/afinal-o-que-e-o-justiceiro-de-garth.html

2 Sobre o embate ético entre Justiceiro e Demolidor, vide meu texto: https://herosinvictus.blogspot.com/2017/07/a-etica-de-demolidor-versus-justiceiro.html